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2. O GARANTISMO COMO ORDENADOR DAS PRESCRIÇÕES

3.5 MORALIDADE NAS CONSTITUÇÕES E NAS NORMAS JURÍDICAS

4.1.2 As Principais Noções de Direito como Sistema

O estudo do Direito enquanto sistema é necessário não só por ser o Direito uma área do conhecimento voltada para a sociedade, mas, principalmente, pela necessidade de identificação de parâmetros de objetividade voltados para a própria qualidade das normas jurídicas como instrumento de gestão a disposição do Estado. Entretanto, não é possível tomar de empréstimo a teoria sistêmica de Luhmann para aplicar ao Direito, pois o problema epistemológico desta elaboração teórica tornaria problemática sua incidência no campo jurídico, haja vista que é premissa fundamental para qualquer aplicação sistêmica do Direito a

consideração preliminar da especificidade coercitiva das normas jurídicas (por alguns teóricos, chamada de coerção qualificada), não encontrada em nenhuma norma de regulação do comportamento humano.

Dentre as primeiras elaborações sistêmicas especificamente voltadas para o Direito, destacam-se as contribuições de Savigny, que, como recorda Mello (2011, p. 36-37), conseguiu promover a primeira grande virada fundamental para a cientificidade do Direito: a ruptura com a racionalidade dedutivo-axiomática fechada do Jusnaturalismo. Isto porque Savigny compreendia o Direito como inexoravelmente sistemático pela própria funcionalidade diferenciada das normas jurídicas de guias do comportamento humano.

Ora, na teoria de Savigny, a formação das prescrições jurídicas se dá por um processo que combina historicidade e filosofia de forma que as normas jurídicas mais essenciais, primeiro, consolidam-se via acumulação de normas de conduta incorporadas ao longo dos anos por cada sociedade; e, em um segundo momento, a produção, aí sim via método dedutivo, das demais normas jurídicas secundárias dá-se por derivação do conjunto de preceitos valorativos extraídos daquelas normas originárias. É por tal razão que Savigny vê o Direito como invariavelmente sistêmico, rechaçando a possibilidade de compreendê-lo como um produto de geração espontânea (ou seja, sem influências sociais), mas, na verdade, não só como originariamente fruto do meio social (com o qual mantém constante ligação, inclusive sob pena de fossilização), e, principalmente, apropriando-se da lógica organicista/evolucionista da vida social para seu crescimento.

Kelsen, por sua vez, buscou fundar a sistematicidade das normas jurídicas apenas pela lógica formal, sem qualquer relação com seu conteúdo (notadamente, para distanciar o Direito da moral e da ética, visando uma suposta pureza matematicista). Assim, recorda Soares (2016, p. 166) que, partindo da dupla e complementar análise do ordenamento sob um ponto de vista estático (as normas em si mesmas) e outro dinâmico (normas em conjunto), Kelsen buscou consolidar que a ordenação e unidade do Direito se processa de forma piramidal.

A estrutura piramidal do ordenamento kelseniano funda-se na premissa da existência inata de uma norma hipotética fundamental que atuaria como primeiro fundamento de validade de todas normas jurídicas em si mesmas (visão estática), que, em um segundo momento, quando em conjunto, as normas passariam a servir também de preceito para validade umas das outras (viés dinâmico). Neste sentido, a distinção entre a teoria de Kelsen e

as demais é que o austríaco fundamenta a unidade e integração do Direito na norma hipotética fundamental. A opção de Kelsen em usar um produto artificial como único ponto de validade de todo o ordenamento jurídico passou a evidente mensagem de que, para ele, o Direito é um sistema dinâmico fundado apenas na força criativa da atividade legiferante, que encontra legitimidade na qualidade de representante do povo (sendo este também a justificativa para sua coercibilidade).

Assim, com a sistematização, as normas jurídicas, diante da definição de limites de incidência, recebem um reforço de legitimidade, já que a estipulação de espaços definidos de aplicação sinaliza também como respeito ao componente axiológico do garantismo. Desse modo, a aplicação da lógica sistêmica cria vínculos tanto formais quanto materiais, atuando como contributo intensificador da eficácia coercitiva das normas jurídicas. Por conseguinte, a ordenação sistêmica do Direito é instrumento de elaboração e produção dos preceitos objetivos e subjetivos que atribuem a uma norma jurídica a qualidade de legítima.

Norberto Bobbio (1995, p. 22), por outro lado, disse que a própria definição do Direito tem seu ponto de partida no ordenamento jurídico, porque considerava que cada norma jurídica isoladamente não seria capaz de cumprir a função de coerção institucionalizada. Assim, Bobbio debruçou-se em elaborações teóricas para garantir que o sistema de normas jurídicas funcionaria como um todo ordenado, ou seja, seu foco de estudo partiu da premissa de que o Direito forma efetivamente um sistema, que, porém, pode ou não ser um ordenamento jurídico, porquanto este último demanda a existência também de uma peculiar dinâmica nas relações entre as normas jurídicas. Neste sentido, Bobbio (1995, p. 34-35) traz três atributos que um sistema jurídico deve ter para também ser ordenado: unidade, coerência e completude.

Enquanto a completude poderia ser solucionada com as técnicas de integração e a unidade dos critérios temporal, da especialidade e da hierarquia, Bobbio (1995, p. 112-113) diz que a coerência é, no entanto, aquele atributo relativo à qualidade de sistema, haja vista que, através da busca pela coerência, é possível eleger quais normas são válidas, extirpando aquelas que não o são. Então, para Bobbio, haveria uma “relação continente-conteúdo” (MELLO, 2011, p. 45) entre ordenamento jurídico e sistema jurídico, de modo que normas jurídicas comporiam um sistema ordenado caso guardassem compatibilidade lógica entre si, sendo esta a relação de validade que o ordenamento conferiria a umas normas e a outras não.

Assim, colocando em segundo plano a necessidade de respeito a formalidades específicas no processo de produção, Bobbio defendeu que primordial é o sucesso nos testes lógicos de coerência, de modo que um sistema de normas jurídicas será também ordenado se for tanto formal quanto materialmente compatível.

Outra concepção sobre o Direito enquanto sistema é de Canaris e Larenz, que o compreendiam “como uma ordem teleológica de princípios gerais” (MELLO, 2011, p. 48). Assim, estes teóricos defendem que o Direito é um sistema quando for materialmente voltado para a sua própria realização no plano fático, sendo de pouca (ou nenhuma) relevância haver compatibilidade formal e material se não houver concretização das normas jurídicas. É, portanto, uma concepção de sistema jurídico que chama a atenção para a necessidade de uma vinculação de 3º nível (formal, material e valorativo/axiológico) entre as normas jurídicas.

Neste sentido, o Direito assumirá um viés sistêmico se realizar as promessas legislativas expressas em suas prescrições, deixando claro que esses teóricos consideram como mais relevante a aplicação da norma jurídica que esteja sintonizada com os valores do ordenamento jurídico, em lugar daquele que apenas respeite a uma lógica formal. Sugerem, ainda, uma forma de concretizar os valores legislativamente tutelados: através dos princípios, que, por terem conteúdos fluídos e generalistas, adequam-se às mais diversas configurações fáticas.