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2. O GARANTISMO COMO ORDENADOR DAS PRESCRIÇÕES

2.1 O GARANTISMO ENQUANTO MODELO POLÍTICO

Os contornos iniciais do garantismo começam ainda com as primeiras noções de legalidade, antes, portanto, do constitucionalismo moderno: os pensadores clássicos das Antigas Grécia e Roma já se debruçavam sobre noções de direitos naturais e inerentes à condição humana, notadamente no que diz respeito ao exercício de competências

fiscalizadoras e arrecadatórias pelo Estado. Com a finalidade de tutelar o indivíduo para não estar sujeito a excessos nem arbítrios por qualquer um que agisse na qualidade de Estado, os pensadores da antiguidade viram na positivação em língua escrita das situações e formas de exercício de qualquer competência estatal (arrecadatória, judicante, punitiva, etc.) a saída para o conhecimento prévio e adequado do limite e da extensão do modo como poderiam ocorrer as interferências estatais na vida de cada indivíduo.

Mais do que uma pré-noção de como seriam as “regras do jogo”, a positivação, neste momento da história, representou uma contratualização coletiva das violações admissíveis à dignidade humana em dada sociedade, permitindo, por conseguinte, um controle público com vistas à restauração do status quo ante àqueles que fossem objeto de excessos ou de ingerências indevidas. Neste sentido, como diz Ferrajoli (2002, p. 690), trata-se de um acordo prévio entre o Estado e os indivíduos cujas tratativas vão definir como a máquina estatal poderá se mover e agir para a harmoniosa convivência coletiva, evidenciando, por conseguinte, que o desrespeito às garantias deste ou daquele indivíduo não representa uma afronta tão somente à sua liberdade individual, mas, na verdade, uma violação à própria coletividade.

A legalidade como espaço das garantias foi importante para a criação de uma atuação estatal fundada apenas e tão somente em um dever ser, ou seja, um agir estatal autorizado pelo que estivesse prescrito em normas jurídicas (uma legalidade positiva). Assim, a lei enquanto escudo de cada indivíduo, e também da própria coletividade, diz respeito a muito mais que determinar preceitos de quando e como agir, mas, essencialmente, como disse Mir Puig (2011, p. 67), reveste-se de cunho protetivo para impedir que haja excessiva interferência na esfera individual de modo não previamente consentido ou contrário àquilo que fora definido como aceitável pelo coletivo.

Portanto, o conjunto de preceitos garantistas, para além de ser um rol de direitos e garantias individuais, trata-se de um modelo consentido coletivamente de Estado, e tal afirmação é didaticamente aferível quando se verificam os Estados totalitários: nos regimes ditatoriais, as prescrições garantistas são reduzidas ao mínimo, permitindo ao dirigente completa discricionariedade no manejo da máquina estatal. Assim, para Gracia (2006, p. 88), um Estado que se pretende garantista deve ser necessariamente um Estado democrático, pois a democracia reflete a vontade da maioria e, ainda, satisfaz os interesses e necessidades vitais de todos, revelando-se como um Estado de Direito dotado de garantias efetivas e, também, como um Estado político representativo (sob o fundamento do princípio da maioria). Essas

vinculações entre legalidade e garantismo e entre democracia e garantismo permitem concluir que quanto mais garantista for uma sociedade, mais democrática e pautada pela legalidade estrita ela o será.

Ocorre que o modelo legalista tem inúmeras limitações, notadamente a característica de segmentação em áreas especializadas, o que impede uma aplicação generalista e mais cunhada com a dimensão do ser humano enquanto indivíduo plural. Não bastasse o fato de que a lei não é o documento jurídico que funda um Estado (mas sim a Constituição), essa fragmentariedade do modelo jurídico legalista enfraquece as garantias, visto que podem ter facetas distintas a depender da conveniência para a sistematização do segmento especializado.

Por exemplo, o direito à ampla defesa no âmbito administrativo tem expressão diminuída (com exclusão da necessidade de defesa técnica inclusive) quando comparado com sua expressão no direito penal, no das execuções penais e até mesmo no direito civil. Ora, em se tratando de um direito fundamental, a expressão deveria ser a mesma em qualquer área jurídica, sendo tal restrição indevida fruto precisamente de um modelo jurídico eminentemente cunhado na supremacia da lei, que é fragmentária por si mesma em razão do princípio da especialidade.

Por conseguinte, foi preciso evoluir o modelo jurídico positivista para o constitucionalismo, o que não significa dizer que, como bem recorda Ferrajoli (2011, p. 05- 06), haja uma oposição entre positivismo e constitucionalismo, mas, na verdade, existe uma relação de progressividade histórica entre um e outro com vistas ao incremento das garantias já existentes. A relação de continuidade é mais que evidente quando se percebe que o constitucionalismo se utiliza da mesma premissa básica de limitação/condicionamento do Estado à lei, acrescentando, porém, a vinculação da própria lei a um procedimento legalmente definido de sua produção e, também, no neoconstitucionalismo, ao conjunto de valores gerais presente em todo o texto constitucional. A submissão da lei ao próprio regime legal é, portanto, um aditivo trazido pelo constitucionalismo ao modelo positivista, reforçando, assim, as garantistas positivistas já deferidas ao indivíduo frente ao Estado.

Com o constitucionalismo moderno e uma nova dimensão de direitos fundamentais, são incrementados os mecanismos de limitação e controle do exercício do poder estatal. Para otimizar estes limites, decorrentes das novas funções atribuídas ao Estado, passa-se a veicular, no documento constitucional, as garantias e direitos individuais. Assim, além do uso do suporte legal como veículo das garantias, os preceitos garantistas, com o constitucionalismo, são elevados à qualidade de prescrições constitucionais. Isto representou não só a criação de

amarras mais definidas ao ente estatal, bem como significou, ainda, a atribuição da qualidade de fundamento a ser realizado no plano também material e por todas as normas infraconstitucionais (ainda que não diretamente voltadas à tutela da dignidade humana).

Assim, para servir como suporte normativo aos direitos e garantias fundamentais cria- se, com o constitucionalismo, um bloco de regras e valores encartados nas Constituições e que, por isso, devem ser respeitados por todo o ordenamento jurídico. O garantismo, então, como é composto de normas material e formalmente constitucionais, ganha ares de filtro do agir do Estado e das normas que o estruturam. É por tal razão que Gracia (2006, p. 86) diz que, para Ferrajoli, o verdadeiro Estado garantista é aquele que situa na Constituição os direitos e garantias individuais como normas fundamentais, obrigando, portanto, o ente estatal, que é movido pela legalidade apenas permissiva ou positiva, a vincular-se legalmente, do ponto de vista formal e material, ao garantismo:

[...] Se o princípio da legalidade formal se limita a exigir que o exercício de qualquer poder tenha como fonte a lei como condição formal de legitimidade, o princípio de legalidade substancial exige que a própria lei esteja sujeita a conteúdos materiais – direitos humanos – para que seja legítima e válida.5 (GRACIA, 2006, p. 86)

Dentre as normas penais, que instrumentalizam a atuação estatal mais gravosa, sempre houve, desde o modelo legalista, prescrições-garantia, seja pelo seu objeto de estudo, o crime, que promove grande desestabilização social, seja pelas consequências gravosas que sua incidência implica sob o infrator criminal (possibilidade de segregação da liberdade física, estigmatização, reincidência, etc.). Assim, quando se trata da aplicação das normas penais, o respeito às garantias alcança seu patamar de maior relevância, de modo que, como recorda Busato (2015, p. 144), toda incidência do direito penal, enquanto coerção institucionalizada, somente será legítimo se o for segundo as normas coletivamente construídas.

Neste ponto, ressalta Trindade (2012, p. 06) que seria equivocado vincular o garantismo apenas ao Direito Penal, isto porque se trataram de uso retórico e exemplificativo as recorrências constantes ao Direito Penal na teorização garantista de Ferrajoli (em que pese a maior problemática que se expressa no Direito Penal quando violadas as garantias individuais, haja vista a possibilidade de privação da liberdade ambulatorial), sendo, por isso, distorção teórica grave a limitação do garantismo a uma área específica do Direito, além de

5 “[...] Si el principio de legalidad formal se limita a exigir que el ejercicio de cualquier poder tenga por fuente la

ley como condición formal de legitimidad, el principio de legalidad sustancial exige que la propia ley esté sujeta a contenidos materiales – derechos humanos – para que pueda ser considerada legítima y válida.”

ter severas implicações na prática democrática a não aplicação do garantismo incorporada à realidade jurídica geral. Notadamente, no ordenamento jurídico regido pela CF/1988, que colocou os direitos e garantias fundamentais em seu texto logo nos primeiros artigos, jamais se pode conceber qualquer norma jurídica, penal ou não, dissociada de uma leitura à luz dos direitos e garantias individuais.

O ponto nevrálgico do garantismo é, por conseguinte, o respeito estatal ao recorte pactuado coletivamente quanto às restrições admissíveis, de modo que nenhuma norma infraconstitucional pode ser aplicada alheia ao filtro axiológico dos valores garantistas. Ver o garantismo como um condicionante da forma de estruturar as características estatais é uma visão que privilegia o Estado como destinatário das normas garantistas, redundando, então, no preceito de que o agir de qualquer instituição e Poder estatal deve estar condicionado tanto pelo respeito aos direitos e garantias fundamentais quanto pela concretização do acesso a estes por qualquer indivíduo. O garantismo como teoria política é, por conseguinte, como recorda Gracia (2006, p. 89), uma teoria heteropoiética: o Estado é um meio legítimo apenas se atuar para garantir os direitos fundamentais do cidadão e um instrumento politicamente ilegítimo se não os garantir ou se os violar.

Portanto a democracia, enquanto modelo de exercício e estruturação do Estado proposto pelo garantismo de Ferrajoli, como recorda Greppi (In: CARBONELL et al, 2005, p. 342), não diz respeito apenas à lei como proteção do indivíduo mais vulnerável (seja por uma viés restritivo, seja pelo de criador de condições materiais), mas, notadamente, versa sobre a estruturação de uma mentalidade social (não apenas estatal) pautada pelo valor da participação de todos neste processo metodológico. Assim, o garantismo democrático significa que não se pode ver a ruptura dos direitos e garantias individuais como momentos jurídicos de crescimento, mas, na verdade, como retrocessos e violações ao consenso coletivo. O desrespeito ao garantismo não se trata apenas do rompimento de vínculos jurídicos protetivos coletivamente contratados, mas, principalmente, por sê-lo mais do que uma forma de desempenhar ou distribuir o Direito, significa transgressão à própria democracia como valor e fundamento da vida em coletividade.

Por conseguinte, o conceito de governo político garantista para Ferrajoli é de um Estado que exerça o governo de leis de forma acessível a todos, razão pela qual pode-se afirmar que o modelo democrático garantista representa, então, a única forma possível de Estado que se propõe a verdadeiramente encontrar fundamento nos direitos e garantias individuais. Ademais, o garantismo enquanto democracia, como já dito, não admite jamais

retroceder a modelos políticos outros que não a democracia, nem mesmo reduzir, ainda que apenas formalmente, qualquer direito ou garantia essencial à democracia. Assim, um Estado se pretende legitimamente (externa e internamente) guiado por preceitos e valores garantistas deve ser necessariamente democrático, não bastando apenas sê-lo organizado/limitado segundo normas jurídicas. É como preceitua Peña Freire (2003, p. 40), que identifica a noção de democracia garantista com a clássica conceituação de democracia de Hart, que sintetizou as seguintes características da democracia:

[...] significa que: a) se refere aos procedimentos e direitos que asseguram as decisões sobre direitos e valores serão adotados democraticamente; b) conteúdo e garantia são uma forma de governo e não uma ideologia concreta; e c) não se deve restringir os direitos nem proclamar apenas valores substanciais, já que este tipo de prescrição deve ser feito pelos representantes eleitos pelos cidadãos. (PEÑA FREIRE, 2003, p. 40)6

O garantismo enquanto informador de um modelo de democracia política e de estruturação do Estado demanda, ainda, o complemento de seus desdobramentos filosófico e jurídico, haja vista o singular papel do Direito, desde o constitucionalismo moderno, na estruturação do Estado e na transformação da mentalidade social. Assim, enquanto o garantismo filosófico delineia os fundamentos irradiadores de todas as Ciências Sociais Aplicadas (inclusive, o Direito), a concepção garantista de Direito exige que as normas jurídicas sejam verdadeiros instrumentos de efetivação da dignidade humana em sua inteireza.