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2. O GARANTISMO COMO ORDENADOR DAS PRESCRIÇÕES

3.4 MORALIDADE E O GARANTISMO

No entendimento de Mello (2009, p. 40), a dignidade humana representa o valor máximo do mínimo existencial do ser humano, pois implica em reconhecer sua concepção e

reconhecimento pelo simples fato de existir. Com isso, “perder a condição humana significa ser jogado na vala comum das coisas e dos animais, transformar-se em objeto; deixar de ser um fim em si mesmo para ser um fim para alguém; deixar de ser um valor para ter um valor” (MELLO, 2009, p. 40).

A dignidade humana expressa-se, assim, seja na busca por uma atuação dos agentes públicos segundo a moralidade, seja através da consolidação de garantias do indivíduo frente ao exercício despersonalizado do poder estatal. Ora, enquanto a moral crítica tem como destinatário imediato o agente público, o garantismo está voltado para o indivíduo tanto ao estipular rígidas regras para autorizar a interferência na esfera individual quanto ao exigir a realização de certas prestações materiais. Neste sentido, não só na função limitativa, mas, principalmente, no autorreforço mútuo, garantismo e moralidade caminham lado a lado para realização do Estado Democrático de Direito.

A moralidade é valor informador do garantismo enquanto modelo político, já que os preceitos garantistas, com o fim de impedir arbitrariedades (excessos e abusos de poder), buscam nos valores morais os fundamentos para a estipulação de regras de conduta exigíveis pelo Estado de seus próprios agentes. O garantismo, ainda, para Prado (2009, p. 80), recorre à moral crítica para demonstrar que o único móvel a guiar o Estado, ao desempenhar as prestações voltadas à satisfação da igualdade material e da universalidade de acesso, deve ser o valor humano.

Especificamente, no que diz respeito à tutela jurídica, o garantismo informa a própria construção de bem jurídico da moralidade pública através de seus preceitos filosóficos, que nada mais são que uma seleção de preceitos morais, que, quando positivados, convertem-se em garantias do ser humano frente ao Estado. A filosofia garantista teve o mérito, portanto, como salienta Prado (2009, p. 67), de institucionalizar um plexo de direitos e liberdades como inatos ao indivíduo, e o fez com o subsídio racional de inerência à condição humana, o que garantiu a inderrogabilidade deste fundamento, ao menos, enquanto preceito jurídico- filosófico para a universalidade e a igualdade.

A função do garantismo como veículo de valores morais é especialmente relevante no controle da atividade de persecução penal, haja vista que, no espaço jurídico-penal, fica mais gritante a necessidade de respeito à moralidade pública (diante da possível violação à liberdade ambulatorial), coibindo em absoluto qualquer uso por agente público da estrutura penal para fins privados. Ora, como é no âmbito do Direito Penal que pode ser restringida a liberdade ambulatorial, indiretamente, através da sua supressão, também podem ser

restringidos outros direitos individuais, de modo que o indivíduo fica, por completo, à disposição dos agentes públicos.

Em que pese a possibilidade de tutela penal da moralidade pública (o que, efetivamente, é uma realidade na grande maioria dos ordenamentos jurídicos atuais), o garantismo e os próprios preceitos morais exigem do legislador que se porte segundo o interesse público na elaboração de normas jurídicas, notadamente as penais, graças à óbvia razão de impor graves restrições à esfera individual. Neste sentido, como leciona Prado (2009, p. 85), diante da ausência de previsões constitucionais sobre quais bens são penalmente tuteláveis ou não, a moralidade pública e o garantismo assumem as vezes de freios limitadores da atividade legiferante: representam ambos um conjunto de valores e bens que não podem ser transpostos pelo legislador.

O controle da atividade legiferante penal via garantismo ganha ainda mais destaque nos sazonais períodos legislativos de expansionismo penal, porque são atropeladas premissas conceituais essenciais à legítima tutela penal. Essa produção legislativa penal de emergência afronta os direitos individuais e, ainda, desvirtua os caracteres clássicos do Direito Penal, como a subsidiariedade, a ultima ratio e a fragmentariedade. Ora, como tanto os preceitos garantistas quanto aqueles que diferenciam as normas penais das demais têm assento constitucional, a legiferância penal de ocasião fica, então, destituída de legitimidade jurídica e, também, moral (afinal, não há atingimento nem busca do interesse público no desrespeito aos valores constitucionais).

Outras não são as palavras de Sanchís:

O Direito se apresenta assim como um conjunto de direitos e garantias, e o Direito do Estado constitucional se caracteriza justamente pela definição de garantias que não são transpostas conforme o livre arbítrio do legislador, mas, na verdade, existe uma obrigação constitucional, como qualquer outra obrigação, pode ser satisfeita ou não ser, no todo ou em parte. Assim, resta evidente que a falta de garantias não pode ser atribuída a um elemento externo nem a alguma circunstância filosófica ou política, mas é a não satisfação de um compromisso interno atribuído à ciência do Direito9. (SANCHÍS, 2011, p. 45)

Por conseguinte, em respeito à moralidade pública e ao garantismo, ambos voltados para a realização da dignidade humana, o Direito Penal, dada a gravosidade de sua atuação,

9 “El Derecho se presenta así como un entremado de derechos y garantías, y el Derecho del Estado constitucional

se caracteriza justamente porque el establecimiento de las garantías no queda al libre arbitrio del legislador, sino que supone una obligación constitucional que naturalmente, como toda obligación, puede satisfacerse o no satisfacerse, en todo o en parte. De ahí que denunciar la falta de garantías no sea ya una tarea externa o filosófico-política, sino un compromisso interno que compete a la ciencia del Derecho.”

deve ser uma ferramenta auxiliar do respeito aos preceitos morais aplicados na esfera pública. Isto porque, graças à relevância da moralidade pública, o esgotamento prévio dos outros instrumentos legais confere maior consistência e coercibilidade à tutela penal da própria moralidade pública, visto que a inefetividade dos ramos extrapenais no refreamento de condutas afrontosas a este bem jurídico demonstra a imperiosidade da criminalização.

Neste sentido, a maior legitimidade é deferida exatamente pelo respeito aos valores garantistas e ao manejo residual da tutela pena, já que ressalta que a atuação estatal está mais voltada à preservação de importante bem jurídico: o foco deixa de ser o infrator enquanto pessoa física, mas sim enquanto agente público violador da norma de conduta de desempenhar sua função visando apenas o interesse público. Assim, a aplicação subsidiária da sanção penal para o mau desempenho da função pública passa a exata mensagem de tutela do bem jurídico da moralidade pública, porque sua incidência volta-se para coibição da violação do código de ética.

Assim, os preceitos morais enquanto regras de conduta voltadas à satisfação da dignidade humana, que é o verdadeiro interesse público, encontram complementação no garantismo, recebendo, notadamente, um reforço em sua legitimidade, visto que ambos combatem diretamente os arbítrios e são, também, valores e bens jurídicos constitucionais. Vê-se, então, uma mútua fundamentação que acaba por repercutir na ordem jurídico- constitucional, mobilizando a população e as instituições na busca pela realização da dignidade humana através de um Estado que se volte apenas para o interesse público.

3.5 MORALIDADE NAS CONSTITUÇÕES E NAS NORMAS JURÍDICAS