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2. O GARANTISMO COMO ORDENADOR DAS PRESCRIÇÕES

3.3 MORALIDADE E O NEOCONSTITUCIONALISMO

Promovendo um incremento da força normativa dos princípios, o neoconstitucionalismo trouxe um conjunto valores que vão além da qualidade de normas escritas: são também vetores hermenêuticos. Dentre tais preceitos, um deles foi a moral crítica

aplicada à coisa pública, alçando este valor a um patamar mais qualificado que a mera tutela legal, passando a clara mensagem de que o direito à probidade no trato da coisa pública é expressão da dignidade humana do cidadão de cada Estado.

É verdade que, como recorda Barboza (2002, p. 16), desde os primeiros documentos constitucionais (que formaram os primeiros Estados-nação), o constitucionalismo sempre flertou com a ideia de que a moralidade pública seria um direito fundamental, porém, de início, com previsões tímidas (muitas delas sequer diretas). Por exemplo, na Constituição Americana e também na Inglesa, ambas conferem ao povo o direito de participar do governo e, ainda, o de não ser alvo de arbitrariedades dos agentes públicos.

Ocorre que tais previsões eram informadas por um cunho nitidamente individual, e não sintonizado com a verdadeira gênese da previsão normativa de tutela da moralidade pública, qual seja a moralidade exigida do agente público enquanto direito fundamental individual que se desdobra coletivamente. Assim, a defesa da moralidade pública expressa-se ao mesmo tempo como uma garantia individual (limitando interferências na esfera individual que não fossem pautadas pelo interesse público, e demandando a criação de efetivos espaços para cada indivíduo se informar sobre qualquer assunto público) e coletiva (promovendo a fiscalização coletiva e pública da conduta dos agentes públicos e, ainda, restringindo qualquer atuação dos órgãos públicos que não voltada ao interesse público).

Na ordem jurídica neoconstitucional, um ordenamento jurídico (e um agir estatal) que se pretenda jurídico-constitucional (em que pese a aparente redundância) deve pugnar por uma atuação dos agentes públicos segundo um código de condutas pré-estabelecido, uma moral previamente definida por representantes escolhidos pela população. E, via o princípio da supremacia da constituição, é possível transmitir esse conjunto de valores morais também para as normas infraconstitucionais que já existem, ordenando todo o conjunto de regras jurídicas não só sob os ditames das normas constitucionais clássicas, mas também através de valores de grande repercussão coletiva como a moralidade pública.

Essa moralidade instrumentalizada como valor constitucional estimula, como diz Comparato (2006, p. 320), os cidadãos a firmarem uma relação única e diferenciada com o ente estatal: singular no sentido de não ser regida pelas normas gerais da vida privada, mas, em verdade, por uma moral “superior”, que, inclusive, remonta ao nascimento contratual do Estado. Sofistica-se, portanto, o modelo de Estado Clássico com o incremento da busca pelo interesse público via positivação, no documento constitucional, de um código de conduta dirigido aos agentes públicos. A moralidade, então, como diz Cammarosano (2006, p. 67),

recordando Hely Lopes Meirelles, passa a ser fundamento de legitimidade e validade de qualquer ato do Estado.

Sbardelotto (2001, p. 43) defende que, diante da nova configuração da moralidade pública (agora direito fundamental), o próprio Estado, enquanto instrumento democrático, passa a ser obrigado a desempenhar esforços para a realização material da moral como bem jurídico. Consolida-se a máxima de que um Estado Democrático de Direito, para sê-lo, pressupõe “a realização de certos princípios constitucionais, tais como o princípio da juridicidade, da constitucionalidade, da separação dos poderes, dos direitos fundamentais” (SBARDELOTTO, 2001, p. 43). Portanto, sofisticando a emancipação produzida pelo positivismo jurídico, o neoconstitucionalismo trouxe a exigência da moralidade pública muito além da mera limitação à atuação dos agentes públicos, mas, precisamente, como uma forma de condução moral exigida para o desempenho adequado das próprias funções do Estado, ligando diretamente o prejuízo coletivo à responsabilidade individual do agente público que descumpre a moralidade.

A relevância dessa transformação expressou-se, notadamente, através do crescimento dos instrumentos de tutela coletiva, haja vista que muitos dos bens e direitos coletivos deveriam ser providos exatamente pelo Estado, que, porém, não entregava tais realizações exatamente pelo uso privado da coisa pública pelos agentes públicos. Assim, com a moralidade pública no status constitucional, a exigência de um comportamento moral do agente público tornou-se fundamento para demandar do Estado o provimento do direito coletivo negligenciado, afinal toda não satisfação de um direito da coletividade está necessariamente aliada ao mau uso da coisa pública graças a uma negligente atuação ou a uma intencional apropriação privada.

Para Barboza (2002, p. 129-130), é possível, então, extrair três funções do princípio constitucional da moralidade (ou “dimensões eficaciais”): a primeira, uma função conformadora e orientadora da atividade administrativa, de viés preventivo; a segunda repressiva e punitiva, voltada aos agentes públicos e aos particulares que violarem a moralidade; e a última corretiva, com foco no ato administrativo em si produzido pelos violadores (correção da ordem jurídico-administrativa).

Ademais, a força centrípeta do documento neoconstitucional criou uma congruência normativa tão robusta em torno dos valores-expressão da dignidade humana, como a

moralidade pública, que incrementou a própria coercibilidade e eficácia de sua tutela jurídica, inclusive criando uma categoria de incompatibilidade mais qualificada que a legal: a inconstitucionalidade. Ora, tais preceitos de validade (ilegalidade e inconstitucionalidade) são fundamentais, posto que a ausência de discordâncias evidentes entre as previsões jurídicas de um ordenamento permite a não-dispersão da força coativa do Direito, proporcionando uma coesa e consistente atuação protetiva e promotora de direitos. É como ensina Prado:

De semelhante, assegura ela uma unidade material de sentido ao ordenamento jurídico – unidade normativa-material – sobre a base de um contexto valorativo. Aliás, a especificidade constitucional reside exatamente no fator de ser uma norma portadora de determinados valores materiais, que lhe dão sentido próprio e presidem sua interpretação e aplicação. (PRADO, 2009, p. 77)

A clareza e unidade da ordem jurídica neoconstitucional, entretanto, tem sido, muitas vezes, comprometida pelo excessivo recurso ao principiologismo, posto que são normas jurídicas que demandam uma densificação interpretativa que fica a cargo do aplicador. Acaso houvesse a delimitação do espaço interpretativo, não haveria prejuízo à segurança jurídica, porém não foi essa a opção do neoconstitucionalismo, que optou por chancelar ilimitado espaço de construção conceitual ao intérprete. Ocorre que ausência de parâmetros positivados de limitação ao exercício da atividade interpretativa do magistrado dá azo para uma densificação conceitual conforme a individualidade do intérprete, o que, por óbvio, conduz a uma multiplicidade de conteúdos decisórios (não raro diametralmente opostos), malferindo o preceito da segurança jurídica e, por sucedâneo lógico, possibilitando arbítrios violadores da dignidade humana.

Como instrumentos de correção desses excessos, a moralidade pública e o garantismo exercem a função de limitar o panprincipiologismo neoconstitucionalista, posto que exigem do intérprete a fundamentação objetiva de suas escolhas aplicativas que respeitem o código de conduta moral e os direitos-expressão da dignidade humana, sempre visando apenas a satisfação do interesse público.