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2. O GARANTISMO COMO ORDENADOR DAS PRESCRIÇÕES

2.2 GARANTISMO COMO FILOSOFIA

O garantismo, como já dito, não se limita apenas a uma forma de organização do poder político, expressando-se também como um feixe de princípios que se desdobram do valor- fonte da dignidade humana. Não se trata de uma ética ou de uma moral, mas, na verdade, de um modo racional de estruturar e justificar a aplicação desta ou daquela regra com fundamento na busca pela melhor efetivação da dignidade humana. Assim, do conjunto de

6 “[...] significa que: a) se refiere a los procedimientos y derechos que aseguran que las decisiones sobre derechos

y valores se adoptarán democráticamente; b) contiene y garantiza una forma de gobernarse y no una ideología concreta; y c) no debe de contener derechos ni proclamar valores de corte sustancial, ya que este tipo de determinaciones ha de ser efectuado por los representantes elegidos por los ciudadanos [...]”

direitos e garantias fundamentais podem ser deduzidos os pressupostos interpretativos generalistas da igualdade (material e formal), da liberdade e da legalidade.

O princípio axiológico da igualdade, em sua acepção formal, busca que todos os indivíduos sejam vistos apenas e tão somente em razão de sua condição humana, de modo que cada indivíduo seja respeitado em suas especificidades e, ao mesmo tempo, receba o mesmo tratamento independente delas. A igualdade enquanto preceito garantista demanda uma conduta absenteísta não só frenando interferências que não sejam motivadas por razões gerais e vedando aquelas provocadas por condições pessoais (vedação às discriminações direta e indireta), mas também impulsionando um agir voltado a possibilitar o mesmo acesso a direitos para todo ser humano através de políticas públicas que promovem uma igualação via

discrímen positivo proporcional (ações afirmativas).

Outro pressuposto filosófico garantista é o princípio da liberdade, que confere o direito a todo indivíduo de agir livremente em busca da plena satisfação da sua dignidade, inclusive lhe sendo possível acessar os meios para tanto. Por conseguinte, o preceito da liberdade, no garantismo, nada mais é que permitir ao indivíduo ser livre na expressão da sua personalidade, direito este, porém, limitado pela não-violação à coletividade e aos direitos de outros indivíduos. Neste sentido, enquanto a igualdade é diretriz voltada para o Estado, a liberdade é dirigida ao indivíduo, sendo ambas voltadas à concretização da dignidade humana. Por sua vez, a legalidade enquanto princípio garantista determina que a atuação do Estado seja apenas aquela autorizada e definida em lei, de modo que, diferente da legalidade dirigida a todo e qualquer indivíduo (“permitido tudo aquilo que a lei não veda”), ao ente estatal, em caso de lacuna ou omissão da lei, não é permitido atuar. Ademais, como recorda Zaffaroni (2002 p. 112), a legalidade do garantismo não se restringe à sua acepção autorizadora (legalidade positiva, estrita ou administrativa), expressando-se, ainda, como reserva legal, que determina que apenas a lei, substrato material elaborado por procedimento previamente definido, pode criar obrigações ao indivíduo e prescrever qualquer sanção ou restrição.

O valor da legalidade exerce, portanto, uma função instrumental em relação aos dois anteriores, pois, através da lei, dada sua qualidade de meio regulador institucionalizado, a efetividade dos preceitos da igualdade e da liberdade atinge contornos vinculantes gerais. É fundamental aclarar que a legalidade enquanto valor não se confunde com o modelo jurídico legalista, pois o conteúdo axiológico da legalidade diz respeito à eficácia sancionatória que

destaca a lei das demais normas reguladoras da vida humana, de modo que o pressuposto filosófico da legalidade é, assim, eminentemente informativo-estruturante, visto que:

[...] pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito. E equivale à assunção, para os fins da legitimação e da perda da legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo. (FERRAJOLI, 2002, p. 685)

Há que se acrescer, ainda, o princípio da publicidade que, complementando a função dos três já elencados, garante, através da publicização dos atos públicos, não só o controle, mas principalmente a construção da legitimidade do teor decisório exatamente graças à impressão do emblema da transparência nos atos estatais. Neste sentido, ao conferir validade aos outros princípios, a publicidade apresenta-se como um meio que permite o desempenho da funcionalidade da tríade de princípios/valores já elencados, garantindo a efetivação concreta e a autoridade cogente das ações restritivas da liberdade individual processadas pelo Estado em nome da coletividade.

A conjugação dos quatro princípios da filosofia do garantismo traduz-se, então, em meio para concretização dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, que, com o neoconstitucionalismo, foi colocado na condição de fundamento axiológico interpretativo e de validade de todas as normas jurídicas. Esta dupla funcionalidade do garantismo enquanto filosofia o coloca como instrumento (des)legitimador da aplicação de prescrições normativas, permitindo, por conseguinte, reconhecer o ordenamento como um sistema jurídico. Conclui- se, assim, que o garantismo filosófico é uma teoria de justificação ou legitimação do Estado e, também, do Direito, de modo que ambos, acaso sejam obedecidos esses quatro valores meta ou pré-jurídicos, podem ser validamente usados como ferramentas de gestão da vida social.

No campo do Direito Penal, em que é destacada a importância do garantismo, a legalidade como fundamento valorativo se expressa, como diz Busato (2015, p. 157), sob a forma de garantias materiais individuais (nullum crimen sine lege ou garantia criminal, nulla

poena sine lege ou garantia penal, nemo damnetur nisi per legale iudicium ou garantia

jurisdicional, e legalidade da execução ou garantia execucional) e de requisitos das normas jurídico-penais (lex scripta, lex praevia, lex certa e lex sctricta).

Os outros três princípios valorativos, juntamente com a legalidade, resultam, segundo Ferrajoli (2002, p. 74-75), nos 10 axiomas garantistas penais, os quais dizem respeito às garantias penais e processuais fundamentais para uma legítima responsabilização penal: 1)

nulla poena sine crimine ou princípio da retributividade/consequencialidade da pena; 2) nullum crimen sine lege ou princípio da legalidade; 3) nulla lex poenalis sine necessitate ou

princípio da necessidade do direito penal; 4) nulla necessitas sine injuria ou princípio da lesividade/ofensividade; 5) nulla injuria sine actione ou princípio da materialidade/exterioridade da ação; 6) nulla actio sine culpa ou princípio da culpabilidade/responsabilidade pessoal; 7) nulla culpa sine judicio ou da princípio da jurisdicionariedade; 8) nullum judicium sine accusatione ou princípio acusatório; 9) nulla

accusatio sine probatione ou princípio do ônus da prova; e 10) nulla probatio sine defensione

ou princípio do contraditório/defesa/falseabilidade.