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“AS RAÍZES PROFUNDAS DO NACIONALISMO ANGOLANO”

PRESTANDO CULTO A UMA ASCENDÊNCIA GUERREIRA: O TEMPO DA NAÇÃO

“AS RAÍZES PROFUNDAS DO NACIONALISMO ANGOLANO”

Quase década e meia depois de Mayombe, Pepetela apresenta em Yaka mais uma das narrativas com que vai tecendo o que pode descrever-se como uma etnohistória de Angola, a partir do termo cunhado por Anthony Smith para distinguir a história profissional, institucionalizada e mais ou menos desinteressada, da actividade de consolidação, transmissão e constante reinterpretação das memórias e mitos a partir dos quais as comunidades imaginam o seu passado e o usam para actualizar e fortalecer as suas identidades.15 No seu primeiro romance, que decorria num passado muito

próximo, a acção era conduzida por um grupo de exemplares guerrilheiros provenientes e representativos de vários grupos socioculturais angolanos. Desta feita a personagem principal é o pouco heróico Alexandre Semedo, um descendente de portugueses nascido em Angola, cuja vida se estende desde finais de oitocentos até 1975. Tendo em atenção este centramento no grupo colonizador, Yaka já foi lido como “uma espécie de justificação histórica e ideológica para os brancos angolanos” (Pires Laranjeira 2001a: 29), e também como uma justificação de Pepetela para o seu percurso pessoal (Venâncio 2009: 104). Duas leituras que tentam pôr em evidência o distanciamento de Yaka relativamente à tendência, dominante nas obras da literatura angolana do pós- independência, para abordar a figura do colonizador de forma linear e

15 Anthony Smith chama a atenção para o facto de esta etnohistória não ser exclusiva da época do nacionalismo, mas antes uma actividade praticada nos mais diversos tempos pelos mais variados povos – ou, pelo menos, por aqueles que se organizaram em comunidades estáveis, que o autor apelida de ethnies. Refere certeiramente Smith que é possível “discernir um padrão recorrente de formação de mitos e de memória, que apenas em parte é um artifício consciente” (2003: 171). A título de exemplo, apresenta como etnohistória os mitos da Grécia clássica e os seus heróis, “para os quais a maior parte dos gregos da época clássica olhavam com respeito, e até com reverência, exceptuando uns poucos como Xenofonte e os Sofistas. […] A Idade de Ouro homérica serviu de estímulo ao orgulho cívico e à excelência artística das poleis em constante competição, tal como os atletas dos jogos Olímpicos procuravam emular, pelo menos de acordo com as odes de Píndaro, os feitos heróicos de Hércules ou de Aquiles” (2003: 175- 176).

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estereotipada, enquanto denunciam as relações de dominação características do período colonial.16

Em Yaka é efectivamente possível detectar uma tendência para resgatar certas personagens de origem portuguesa do grupo dos colonos. Paralelamente, porém, o romance desvenda aspectos de uma sociedade profundamente estratificada, marcada por uma separação entre brancos e negros que não cessa de acentuar-se à medida que, na sequência da Conferência de Berlim, de diversos tratados que então delinearam as fronteiras das colónias portuguesas17 e das

campanhas militares destinadas a conquistar efectivamente o território,18 se

configurou uma viragem económica e ideológica na política colonial.19

16 Esta propensão para reduzir a figura do colono ao estereótipo poderá ter-se originado no impulso para reproduzir o tema e o estilo dos consagrados autores que escreveram ainda sob domínio colonial. Autores que, como Luandino Vieira, gizaram de forma vaga a figura do colono para melhor salientarem a subalternidade do colonizado. Depois da independência, esta linha voltada para a denúncia conheceu ainda grande voga. Veja-se, a título de exemplo, Memória de Mar, publicado em 1980 por Manuel Rui, um escritor de referência que, tal como Pepetela, tomou parte no processo de independência de Angola ao lado do MPLA.

17 Valentim Alexandre refere que a fronteira Sul de Angola é definida com a Alemanha em 1866; em 1891 é acordada a fronteira Sudeste com a Grã-Bretanha (negociações completadas em 1905); as fronteiras Norte e Nordeste são definidas em 1891 com o Rei Leopoldo da Bélgica (2000a: 154).

18 Foi na sequência da conferência de Berlim, bem como dos diversos tratados que delinearam as fronteiras das colónias portuguesas, que se realizaram as campanhas militares destinadas a conquistar efectivamente o território de Angola, tornando-se a partir de então mais sistemático o envolvimento militar, facilitado por tecnologias como a navegação a vapor e a maior precisão das espingardas, bem como pela fragmentação dos grandes reinos do interior angolano (Alexandre 2000a: 236). Assim, foi apenas na década de 1880 que se assistiu à instalação do domínio directo português na linha Luanda-Ambaca e ao reforço da presença no Congo e no planalto Sul. Fizeram-se campanhas contra os Dembos nos anos de 1870 e, já no século XX, contra os cuanhama, o Cuamato e os ovimbundu (idem: 157; também Neto 2000: 177; para uma descrição pormenorizada ver Pélissier 1986).

19 Esta viragem decorreu da imposição de pautas alfandegárias altamente proteccionistas e configurou retrocesso em relação às medidas de cariz humanista que tinham levado, nos anos de 1870, à extinção do trabalho servil no ultramar, pela lei, pouco acatada, de 29 de Abril de 1875, a partir de um projecto de Sá da Bandeira (Alexandre 2000a: 150). A necessidade de trabalhadores para as plantações e minas conduziu à publicação de um novo regulamento impondo o trabalho forçado, garantido a entidades públicas e particulares pelas autoridades. Embora na prática pouco alterasse a situação que de facto se vivia nas colónias, o texto do regulamento de 9 de Novembro de 1899, publicado na Antologia Colonial Portuguesa de 1946, é

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Decorrendo a acção na cidade de Benguela, o romance não limita o seu âmbito à vida urbana, nem às preocupações sentidas pelos crescentemente prósperos colonos que constituem o círculo social de Alexandre. Como num jogo de espelhos, a narrativa familiar vai mostrando outras, assumindo especial importância a da conquista militar e colonização do hinterland pelos portugueses, à qual se contrapõe uma história antagónica de resistência das populações africanas.

Ao fazer confluir na personagem de Alexandre Semedo um feixe de relatos, o romance transforma-se numa narrativa mítica e simbólica da fundação, que é percebida simultaneamente como uma refundação, da nação angolana. Através da transformação ficcional de mitos e memórias, em Yaka expande-se uma galeria imaginária de figuras heróicas que incluía já o Comandante Sem Medo de Mayombe e os heróis-guerrilheiros de As Aventuras de Ngunga. Agora, esta galeria alarga-se noutras direcções, e se os guerrilheiros do MPLA continuam a ser apresentados como heróis nacionais e modelos a seguir, eles aparecem apenas como os representantes mais recentes de uma estirpe que remonta aos guerreiros yaka e se manifesta em várias das figuras históricas responsáveis, no Sul do espaço angolano, pela resistência armada ao avanço militar português das últimas décadas do século XIX e inícios do século XX: Mutu-ya-Kevela, que lançou e por algum tempo liderou a coligação africana que pôs a ferro e fogo, entre 1902 e 1904, a região do Bailundu; os guerreiros cuanhama que no Vale de Pembe emboscaram em 1904 o exército português, infligindo-lhe a baixa, considerada astronómica, de trezentas vidas; as populações do Seles e do Amboim que em 1917, na sequência de outros levantamentos, se revoltaram muito violentamente contra o avanço das fazendas

revelador da mudança oficial de atitude face ao trabalhador “indígena”: “o Estado, não só como

soberano de populações semibárbaras, mas também como depositário do poder social, não deve ter escrúpulo de obrigar e, sendo preciso, forçar a trabalharem, isto é, a melhorarem-se pelo trabalho, a adquirirem pelo trabalho meios de existência mais feliz, a civilizarem-se trabalhando, esses rudes negros de África, esses ignaros párias da Ásia, esses meio selvagens da Oceania” (citado em Alexandre 2000: 160; veja-se também Bender 1980 [1978]: 189-192).

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de café; finalmente, os altivos e esquivos nómadas cuvale que em 1940 se tornaram no alvo preferencial de um exército colonial decidido a castigar “as últimas faúlhas da independência africana numa colónia em que havia já dezenas de anos nenhum povo reerguia a cabeça”, para usar as palavras de René Pélissier (1986, vol. II: 268).

Neste processo de revelação de uma ascendência, a realidade pluriétnica de Angola parece ser abraçada – ou, pelo menos, a do Sul de Angola, já que os grupos que colhem a atenção de Pepetela em Yaka, sendo aí identificados como antepassados da nação angolana, pertencem todos, com excepção dos yaka, a essa região. Uma selecção que deixa de fora algumas das populações que mais duramente se bateram contra a imposição do domínio colonial, nomeadamente bakongo e ambundu. 20

Em busca da ancestralidade

Neste ponto surge o que pode ser visto como um paradoxo: os diferentes grupos do espaço angolano, que em Yaka são identificados como antepassados da nação futura, estão não só divididos pela língua e pela cultura, como também por antagonismos de tipo económico, social e político. Em Yaka pode mesmo assinalar-se um entendimento das relações entre as diferentes etnias de Angola que salienta a animosidade, manifesta nos confrontos que ocorrem quer directa quer indirectamente, através de alianças pontuais com os portugueses. 21 Neste sentido é feita alusão às incursões dos ovimbundu para

20 Pélissier é claro na atribuição das “palmas da resistência”, as quais, tendo em linha de conta a duração da reacção armada, vão para as populações bakongo, e considerando o número de efectivos mobilizados pelos portugueses vão para os ambundu (1986, vol. I: 240-241). O autor é peremptório nas suas conclusões: “foram os Bakongo e os Ambundos os que se bateram mais demoradamente contra o invasor, sem todavia conseguir alguma vez as condições de ameaçar repelir os Portugueses para o mar” (Idem: 242).

21 Também na História de Angola, depois da descrição dos movimentos que levaram os vários grupos a determinadas zonas, se afirma que “havia frequentes guerras entre esse povos. Os que chegaram mais tarde eram obrigados a entrar em guerra com os que já lá se encontravam” (Centro de Estudos Angolanos s/d [1965]: 40). Uma visão alternativa a esta é apresentada pela historiadora Isabel Castro Henriques em Percursos da Modernidade em Angola, onde ao enfoque nos

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angariar escravos (Y: 46), bem como às razias dos cuamatos contra os muílas e os ovimbundu (Y: 87-88). Logo no primeiro capítulo refere-se que em 1917 o Governador de Benguela, utilizando em seu proveito “ódios antigos”, enviou soldados bailundu para dominar a revolta dos sumbes e dos seles (Y: 144). Mais à frente, numa referência a uma rebelião no interior, Tuca comenta que os bailundu “têm ódio aos seles e aos sumbes. [...] Mas os soldados portaram-se bem, foram leais, sobretudo porque a revolta não era deles, era dos sumbes e seles e amboins” (Y: 158).

Estas diferenças são ficcionalmente ultrapassadas através de um elemento que, atravessando toda a narrativa, estabelece a ligação, não só entre as diferentes etnias, como também entre os tempos, passado, presente e futuro – a estátua yaka que dá nome ao romance. É através desta estátua, tornada personagem ao ser dotada de voz, que o passado é constantemente recordado, e é também através dela que esse passado ganha contornos nacionais. Através da narrativa de carácter mítico que se desenrola nas suas falas pode adivinhar-se a existência de uma nação, por ela entrevista nos meandros aparentemente desconexos da história. Elemento de união, a estátua seria uma criação dos yaka (Y: 35), apresentados no início do livro como fundadores de um proto-Estado angolano:

Yaka, Mbayaka, jaga, imbangala? Foram uma mesma formação social (?), nação (?) – aos antropólogos de esclarecer. Certo é que agitaram a já tremeluzente História de Angola, com

conflitos se prefere o desenrolar das complexas relações de poder entre os grupos que

habitaram o espaço angolano, e entre estes grupos e os portugueses, as quais envolveram dominação mas também cooperação. Vale a pena mencionar que Henriques presta grande importância a este aspecto, criticando Pélissier (sobretudo Les Guerres Grises. Résistance et Révoltes en Angola, de 1978) pelo facto de ele apresentar a história de Angola como uma sucessão de lutas. Uma crítica que talvez não seja totalmente justa, visto a proposta do autor francês, apresentada na sua “Introdução à edição portuguesa”, ser nesse sentido bastante explícita – ele pretende fazer, não uma “história económica, cultural e social de Angola que tentasse acompanhar as interacções de portugueses e africanos desde meados do século passado”, nem tampouco uma “etno-história dos Angolanos”, mas antes uma “história dos conflitos e dos atritos” (1986, vol. I: 18).

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as suas incursões ao Reino do Congo […]. Na Matamba, deram força à legendária Rainha Njinga (ou Nzinga), que empurrou o exército português até no mar. […] Os ditos guerreiros, que por comodidade chamo de yaka, desceram para o sul […]. Tiveram influência certa no dito Reino de Benguela, formaram chefias nas terras dos Muila, Gambo, já bem no Sul, irrequietamente voltaram a subir, formaram chefias no Planalto Central, em Caconda, Huambo, Bailundo, Bié... E o círculo yaka ficou fechado nesses séculos antigos. Criadores de chefias, assimiladores de culturas, formadores de exércitos com jovens de outras populações que iam integrando na sua caminhada, parecem apenas uma ideia errante, cazumbi antecipado da nacionalidade. (Y: 13)

Pela sua origem, a estátua torna presente este grupo guerreiro que, através da conquista e da assimilação, alegadamente teria unificado o território angolano num momento, embora remoto, do passado. E chama-se a atenção para o modo como Pepetela identifica, ou melhor, confunde nesta passagem, as populações yaka do Norte com os guerreiros “jaga” que povoam os relatos portugueses, bem como com os imbangala do Reino de Cassanje.22

Para melhor compreender este ponto, vale a pena recorrer muito brevemente a um dos mais importantes teóricos da nação e do nacionalismo. Já se mencionou que os autores apelidados de modernistas postulam uma cisão entre a época pré e a época pós-industrial, bem como o carácter falsificado das histórias consideradas nacionais. Os cambiantes entre eles são, porém, significativos. Eric Hobsbawm, que defende a ideia da modernidade das nações, concede grande atenção aos elementos que constituem a herança cultural de

22 A identificação dos conhecidos jaga com a população denominada yaka ou baiaca do vale do rio Cuango foi estabelecida ainda em finais da década de 1940 por Gladwyn Childs (1949: 181- 189). A sobreposição no romance entre uns yaka apresentados como ex-libris da angolanidade e os jaga revela-se, porém, quase irónica, já que esses jaga constituíram durante muito tempo um importante contingente militar ao dispor dos portugueses. Do mesmo modo, também a associação dos yaka aos imbangala revela uma estranha ironia, já que o reino de Cassanje, ou Kasanje, cujo chefe assumia o título de jaga, floresceu como intermediário do tráfico de escravos com os portugueses, então instalados apenas na costa.

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cada Estado, nos quais vê laços de identificação colectiva que chama de proto- nacionais (1998 [1990]: 47). Segundo Hobsbawm, o mais importante destes vínculos seria a consciência de pertencer ou ter pertencido a uma unidade política duradoura (Idem: 67). Reconhecendo embora que a ligação entre estas entidades e as modernas nacionalidades é difícil de estabelecer, considera que “a pertença a um Estado histórico (ou actual), presente ou passado, pode agir directamente sobre a consciencialização do povo comum para produzir um protonacionalismo” (Idem: 69), o que tornaria compreensível a preocupação dos movimentos nacionalistas em estabelecer ligações entre os povos da actualidade e antigas formações estatais (Idem: 70).

Em Yaka pode perceber-se uma tendência para identificar o difuso domínio dos yaka-jaga como uma forma embrionária de unidade política, ou mesmo como nação histórica antepassada da actual Angola. O espírito deste grupo teria perdurado na estátua, de modo que, para além de testemunha de um passado de unidade, ela se apresenta também como garante de uma promessa de futuro nacional, várias vezes referida em monólogos carregados de simbolismo (Y: 24-25, 94-96, 99, 164-166, 271-272). Oráculo da nação a haver, Yaka projecta em direcção ao futuro as imagens do passado glorioso, e constantemente busca nos acontecimentos os sinais da “chuva de música” anunciada (Y: 96), quiçá aquela chuva que “ninguém impedirá” augurada por Agostinho Neto num poema de 1960:

Aqui no cárcere

a raiva contida no peito espero pacientemente o acumular das nuvens ao sopro da História Ninguém

impedirá a chuva 23

23 Escreveu Agostinho Neto enquanto preso na cadeia da P.I.D.E., a polícia política do Estado Novo, em Luanda: Aqui no cárcere/ eu repetiria Hikmet/ se pensasse em ti Marina/ e naquela casa com uma avó e um menino// Aqui no cárcere/ eu repetiria os heróis/ se alegremente

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Os monólogos da estátua podem então ser vistos como imbuindo de um “sentido providencial do destino” (Cauthen 2004: 19) aqueles acontecimentos, levantamentos regionais, constituição de coligações, repressão pelo exército, que a narrativa centrada em Alexandre Semedo e nos diferentes membros da sua família vai revelando. A resistência em nome do passado – a “odisseia da resistência”, para usar a expressão de Maria Aparecida Santilli, uma estudiosa da obra de Pepetela (2002: 128) – revela-se capaz de abrir os caminhos do futuro, já que, através de uma leitura dos factos passados à luz da concretização de um futuro de unidade, nesses acontecimentos pode ver-se um prenúncio da desejada nação. Na resistência das populações contra a dominação colonial a estátua intui a nação a haver, transformando acontecimentos dispersos, no tempo e no espaço, numa narrativa de construção nacional.

Ficcionando uma longa marcha no tempo

Os guerreiros envolvidos na resistência ao poder colonial podem, em

Yaka, ser vistos como representando um duplo papel: por um lado eles são os

depositários de um suposto legado de unidade dos yaka; por outro são os executores da promessa de futuro por eles augurada. Herdeiros de um passado heróico e arautos de um futuro nacional, tanto os guerreiros como os grupos socioculturais que representam assumem, na narrativa mítica da estátua yaka, a forma de heróis nacionais: Mutu-ya-Kevela, líder da revolta dos bailundu de 1902, é apresentado como um precoce unificador;24 os cuamatos que no Vau de

cantasse/ as canções guerreiras/ com que o nosso povo esmaga a escravidão// Aqui no

cárcere/ eu repetiria os santos/ se lhes perdoasse/ as sevícias e mentiras/ com que nos estralhaçam (sic) a felicidade// Aqui no cárcere/ a raiva contida no peito/ espero pacientemente/ o acumular das nuvens/ ao sopro da História// Ninguém/ impedirá a chuva (citado em Santos E. 1975: 115-116).

24 Seguindo em muitos aspectos a descrição que dele faz Pélissier (1986, vol. II: 84-89 e 93-94; note-se que a versão francesa data de 1978), Pepetela ficciona em Yaka um Mutu-ya-Kevela que se revela um líder moderado (Y: 61) e, mais importante, um unificador dos vários reinos do Planalto (Y: 54, 61), o que lhe vale ser lembrado pela estátua Yaka como o primeiro dos anunciadores da “chuva” (Y: 272). Importa chamar a atenção para um jogo de relações que pode estabelecer-se entre Yaka e Les Guerres Grises, bem como entre este livro e a História de

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Pembe rechaçaram um exército português de “mais de dois mil homens” (Y: 87) são mostrados como um exemplo de orgulho pátrio e capacidade militar;25 os

agricultores do Seles, revoltados e duramente reprimidos em 1917, tornam-se, na visão da estátua yaka, um modelo de persistência pela sua insubordinação sempre latente;26 e finalmente os cuvale, “cactos sempre erectos no deserto” (Y:

322), surgem como exemplarmente resistentes, já que apesar de chacinados na sequência do que é descrito como uma questiúncula de gado (Y: 201), apesar de destituídos dos seus bois e do seu orgulho, serão capazes de recuperar, ao longo dos anos, tudo o que perderam (Y: 322), de tal modo que no capítulo final de

Yaka surgem a participar ao lado do MPLA na guerrilha que expulsa de

Benguela os sul-africanos (Y: 394). 27

Não estando unidos entre si, os grupos apresentados sucessivamente pela estátua yaka partilham uma memória de luta, dispersa embora, contra a imposição do domínio colonial. Uma atitude de resistência que permite à estátua identificá-los como herdeiros dos belicosos yaka e do glorioso reinado de Jinga (o romance apresenta a famosa rainha como pertencente a essa etnia), de quem

Angola do CEA, que Pélissier conhecia, tendo contactado pessoalmente os elementos deste