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NAÇÃO, MEMÓRIA E VIOLÊNCIA

PRESTANDO CULTO A UMA ASCENDÊNCIA GUERREIRA: O TEMPO DA NAÇÃO

NAÇÃO, MEMÓRIA E VIOLÊNCIA

Ao tratar Mayombe, chamou-se a atenção para a presença nesse romance de elementos que remetem para uma mundivisão influenciada pelo que com grande prudência se designou de marxismo-leninismo. Mencionou-se então a possibilidade de discernir, embutida na narrativa ficcional, uma crença na existência de um sentido da história, que progrediria dialecticamente e de forma inexorável rumo a um futuro de contornos socialistas.

Ao comparar Mayombe com Yaka torna-se desde logo perceptível o modo como neste último romance certos aspectos dessa mundivisão são postos de parte, e mesmo renegados, nomeadamente na crítica aos projectos políticos entendidos como radicais que é realizada através da personagem de Olívia, a feia neta de Alexandre Semedo. Descrita pelo avô, que lhe chama “madreca” (Y: 334), como uma histérica religiosa que a certa altura troca o cristianismo pelo comunismo (Y: 335 e 385), é à mal-amada Olívia que cabe realizar uma pseudo- crítica ao MPLA. Esta baseia-se no que é descrito como um afastamento do que Olívia considera o ideal revolucionário, nos “muitos aspectos impuros” (Y: 337) e nos discursos mais brandos que, explicados por Joel como tácticas para “desarmar o máximo de inimigos potenciais”, não passam, segundo ela, de oportunismo (Y: 337). Fiel ao que é no romance descrito como ortodoxia – uma ortodoxia que pode associar-se às críticas ao governo de Neto feitas por elementos conotados com Nito Alves –, Olívia despreza o povo que nas ruas aclama o MPLA, apodando-o de “proletariado sem consciência de classe” (Y:

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367) e defende que, ao tomar a capital, o MPLA deveria ter imediatamente decretado a revolução, o que poria do seu lado “as massas populares que estão ansiosas pela revolução socialista” (Y: 339).

Associada à religião, de que constituiria um sucedâneo, a ideologia que ainda em Mayombe surgia como libertadora é em Yaka ostensivamente rejeitada. Esta rejeição expressa coexiste, porém, com a sobrevivência de certos traços marcantes dessa ideologia, sendo possível intuir neste romance a persistência de uma visão teleologicamente orientada, patente na crença num sentido da história. Só que este sentido parece agora ser orientado, não para a realização de uma sociedade sem classes, mas para a concretização da nação angolana, na qual pode adivinhar-se a nova, e paradoxalmente territorial, utopia. Senão preste-se atenção ao modo como essa nação assume em Yaka o carácter de essência – pelos discursos da estátua percebe-se que ela existe em embrião desde um passado remoto, estando destinada a cumprir-se. Novo motor da dialéctica, é o espírito da nação que em Yaka faz avançar a história, sendo também ele que move os indivíduos, que cumprem o seu destino ao participar no cumprimento do destino nacional. Daí que os heróis-guerreiros, mais do que como campeões da liberdade ou da emancipação, sejam apresentados como catalisadores da nação. E se em Mayombe eles vergavam os deuses à sua vontade, em Yaka pelo contrário procuram cumprir os desígnios dos antepassados, de quem são instrumento, encontrando o destino de heróis na medida em que ajudam a profecia da estátua yaka a cumprir-se. Encarnando uma ambivalência muito característica do pensamento nacionalista, os heróis-guerreiros encontram o sentido da sua acção no passado e na “tradição” ao mesmo tempo que se constituem em vanguarda, na medida em que são capazes de discernir o sentido da história e de guiar as populações sob a sua tutela em direcção a um futuro no qual esta se concretiza na nação. Vista em Yaka como guiada por uma lógica inexorável, a da construção da nação, a história não se cumpre porém, e mais uma vez, sem o recurso à violência.

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Lembrar e esquecer – a violência como recurso de consolidação identitária

Em meados da década de 1980, o Estado moçambicano empenhou-se fortemente, na pessoa do seu então presidente Samora Machel, no reconhecimento de Ngungunhane como herói nacional. Momento central deste processo foi a transladação (simbólica) para Maputo, em 1985, dos restos mortais do antigo Imperador de Gaza. Encerrados numa urna esculpida pelos artistas Malangatana e Paulo Come, os restos mortais foram conduzidos em marcha lenta através da cidade, sendo depois depositados no Salão Nobre do Conselho Executivo. Ao cortejo seguiu-se um discurso no qual a figura de Ngungunhane foi apresentada como importante “reforço da nacionalidade” (Lima Garcia 2008: 144-145).

Esta apropriação nacionalista da história do Império de Gaza parece não ter sido, porém, incondicionalmente abraçada. O romance Ualalapi, do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Kohsa (1998 [1987]), pode efectivamente ser lido como uma rejeição da tentativa oficial de mostrar o Império de Gaza como forma antepassada da nação moçambicana. É que a conquista, empreendida pelo povo nguni em finais do século XIX, daquele que é actualmente o território do Sul de Moçambique, deixou traços duradouros na memória das populações, tornando problemática a aceitação das narrativas que propõem o chefe dessa formação guerreira, Ngungunhane, como herói fundador. As campanhas lideradas pelo chefe nguni parecem não estar suficientemente esquecidas para poderem ser lembradas como “fratricídio tranquilizador”, para usar a expressão certeira de Anderson (2005 [1991]: 261-263).

Mais recentemente o tema foi retomado – agora em tom aparentemente humorístico – por Mia Couto, em O Outro Pé da Sereia (2006). Aqui, a tentativa do político Casuarino de transmitir a um antropólogo americano uma memória colectiva da escravatura por ele considerada correcta, esbarra na incompreensão das outras personagens. Num diálogo de grande efeito cómico, os habitantes da pequena Vila Longe onde decorre a acção estabelecem uma ligação entre a

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escravatura e o Império de Gaza, e não, como pretendia Casuarino, com o domínio colonial português:

– Queríamos que nos dissessem tudo sobre a escravatura, desses tempos de sofrimento…

– Ah, sim, sofremos muito com esses vangunis, disse Matambira.

Os olhos do americano brilharam enquanto procurava uma caneta para anotar no seu caderno de pesquisa. […]

– Deixe-me anotar. Portanto, era esse o nome que davam aos traficantes de escravos?

– Exacto.

– E diga-me: há lembrança do nome dos barcos que eles usavam?

– Barcos? Eles não vinham de barco, vinham a pé. – Como a pé? Como é que transportavam a carga humana lá para a terra deles?

– A terra deles era aqui, eles nunca saíram daqui. Nós somos filhos deles. (Couto 2006: 173-174; também 153-154)

A distância e a incerteza, as “brumas”, que envolvem o tempo definido como das origens, revelam-se de importância primordial no jogo da lembrança e do esquecimento, constituindo um verdadeiro recurso no processo de afirmação e consolidação das identidades nacionais. De tal modo que a incompreensão desta necessidade de esquecimento pode provocar a rejeição da ficção unificadora.93

93 Já Ernest Renan salientava a existência de um paradoxo no que à memória das nações respeita. Numa passagem bem conhecida diz o filólogo francês que a essência de uma nação reside no facto “de todos os indivíduos terem muitas coisas em comum, mas também de todos terem esquecido bastantes coisas” (2000 [1882]: 11). Partindo explicitamente da premissa de que toda e qualquer formação de tipo político se impõe, pelo menos num primeiro momento, pelo uso da violência, Renan afirma que, não obstante, o tempo pode curar as feridas daí resultantes, sendo a memória histórica capaz de obliterar acontecimentos que, se lembrados em toda a sua crueza, inviabilizariam o sentido de unidade requerido pela nação. Para continuar a citar uma personagem de Mia Couto, o esquecimento revela-se essencial “porque sempre estivemos todos juntos, todos misturados: vítimas e culpados” (2006: 323).

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Se a violência original precisa de ser em grande medida esquecida e purificada dos seus aspectos potencialmente desagregadores, ela constitui ainda assim um importante recurso de consolidação identitária. Isto acontece seja no que diz respeito à violência infligida, seja relativamente àquela sofrida Como salientam Marvin e Ingle, o derramamento de sangue – “violent blood sacrifice” é a expressão que usam – “torna coesos os grupos” (1999: 1).94 Uma afirmação

que de certo modo vai ao encontro da asserção de que “o sofrimento em comum une mais do que a alegria”, expressa há mais de cem anos por Ernest Renan (2000 [1882]: 19), bem como da proposta do historiador Marc Ferro de compreender o ressentimento colectivo – o sentimento de injustiça, acrescido do sentido de ser impotente para a reparar – como motivo de coesão:

No indivíduo, como no grupo social, na origem do ressentimento está sempre uma ferida, uma violência sofrida, uma afronta, um traumatismo. Quem se sente vítima não pode reagir, por impotência. Rumina a sua vingança que não pode pôr em marcha e que constantemente o atormenta. Até que acaba por explodir. Mas esta espera pode também ser acompanhada de uma desqualificação dos valores do opressor e revalorização dos seus, dos da sua comunidade que até aí não os defendera conscientemente, o que dá uma força nova aos oprimidos, segrega uma revolta, uma revolução ou então uma regeneração. É aí que se estabelece uma nova relação no contexto do que segregou essa revolta ou essa renovação. A experiência de voltar a viver a ferida do passado é mais forte [do] que a vontade de esquecer. E assim a existência do ressentimento mostra como é artificial o corte entre o passado e o presente, que deste modo vivem um no outro, tornando-se o passado um presente mais presente [do] que o presente. (2009: 12)

94 Para Marvin e Ingle o sacrifício de sangue constitui o elemento mais determinante na formação das nações: “nós afirmamos que a nação é a memória partilhada de sacrifícios de sangue, periodicamente renovados. Aqueles que partilham tais memórias partilham também, muitas vezes, mas não sempre, uma linguagem, um território, ou uma etnia. O que eles partilham sempre e cultivam é a memória do sacrifício de sangue (1999: 4). Um autor como Smith é mais cauteloso neste ponto, sugerindo que só o derramamento de sangue que é enquadrado numa narrativa moral pode contribuir para a coesão nacional (1993 [1986]: 76).

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Note-se, relativamente a esta lembrança da experiência do sofrimento em comum, que ela pode ser potenciada através da arte, que a torna mais durável no tempo. Nesse sentido, os mitos e lendas versando feitos heróicos, bem como momentos de resistência, “podem, no longo prazo, revitalizar uma solidariedade enfraquecida”, como argumenta Anthony Smith:

Um poema de Simonides sobre o massacre dos espartanos nas Termópilas, um discurso de Shakespeare sobre o significado de Agincourt, uma lamentação de Jeremias sobre a queda do (primeiro) Templo, até o testemunho de Tolstoy sobre Borodino, podem ser muito mais efectivos no modo como moldam gerações subsequentes de famílias etnicamente conscientes, do que os próprios acontecimentos, e muito mais potentes agentes de solidariedade do que vitórias e derrotas que podem, na altura, ter feito pouco para remediar fraccionamentos e clivagens internos. (1993 [1986]: 38)

O parêntesis sobre a importância da violência enquanto recurso de consolidação identitária justifica-se por ser precisamente em torno de alguns dos momentos de maior violência, tanto infligida como sofrida, da história de Angola que se desenrola Yaka. É que se o romance se estrutura em torno das sucessivas gerações da família de Alexandre Semedo, não é nas ocasiões mais representativas desse percurso que se detém, mas antes naquelas em que o poder colonial se confronta com as populações indígenas. Ao mesmo tempo, são ignorados os momentos em que esse confronto assumiu a forma de uma resistência cultural, como nos movimentos de tipo messiânico.95 O romance

95 Influentes autores como Roger Bastide e Ronald Chilcote consideraram, em artigos escritos nos anos de 1960 e 1970, que os movimentos messiânicos constituíram importantes estâncias de afirmação identitária na África colonizada. Roger Bastide, num texto em que sumariza a então recente mudança de perspectiva no mundo académico relativamente aos movimentos ditos messiânicos – destacando o papel de Georges Balandier nessa mudança –, defende que estes sejam entendidos como primeiros focos efectivos de resistência, como elementos de consciencialização identitária, e até como “primeira manifestação consciente de nacionalismo, ainda que velada” (1966 [1961]: 472). Uma posição que Ronald Chilcote afirma partilhar, quando salienta ter a resistência ao colonialismo muitas vezes passado pelas organizações de natureza religiosa, especialmente aquelas de cariz sincrético. E o autor enfatiza o cariz

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privilegia os momentos em que a resistência assumiu contornos de luta armada, momentos que são, eles próprios, representados de forma violenta. Assim, à representação da violência junta-se a violência da representação, para usar a certeira expressão do geógrafo Gerry Kearns.96

Este aspecto de Yaka torna-se perceptível no primeiro capítulo, que é atravessado pelas notícias das sucessivas campanhas militares destinadas a conquistar os territórios do interior angolano, sendo aí dado grande relevo ao relato da famosa derrota do exército português no Vau de Pembe às mãos dos guerreiros cuamatos. O massacre das tropas coloniais é descrito com grande pormenor, desde a imobilização forçada numa zona pantanosa até à descoordenada e desesperada fuga, passando pelo fraco desempenho dos responsáveis militares (Y: 86-93). O sentido trágico das mortes é escondido sob o efeito do ridículo, conferido pelos pormenores: os mosquitos que aos soldados iam “picar a bunda” (Y: 89), o capelão que sofria de disenteria (Y: 89-90), os adjectivos de “burro” e “cretino” com que são qualificados os responsáveis militares (Y: 92) e o alcoolismo do portador da notícia.97

progressista desses movimentos: “em vez de entender a resistência como oposição à mudança,

o protesto como forma de minar o consenso, ou a crise como uma ameaça à estabilidade, sugerimos que estes fenómenos contribuam positivamente para o desenvolvimento social e económico” (1972: 302). Este tema é abordado também por Margarido, num texto em que analisa a Igreja Tokoísta de Angola. E o que sobressai dessa análise é a dualidade da posição dos discípulos de Simão Toko no que respeita ao nacionalismo: se por um lado ostensivamente o rejeitam, por outro são levados a “participar no desenvolvimento de uma consciência nacional angolana” pelo facto de desenvolverem formas legais de protesto (1972: 51). Também Castro Soromenho, no romance A Chaga, publicado postumamente, desenvolve esta ideia através da personagem de Vasco Serra, que afirma: “o negro refugiou-se nas associações secretas e nos movimentos profético-messiânicos. Eles resistem” (2008 [1970]: 205). Já Douglas Wheeler menciona apenas de passagem este tema, salientando porém o cariz de contestação política que assumiram os movimentos proféticos dos quatro Simões, S. Kimbangu, S. M‟Padi, S. Zéphirin Lassy e S. Toko (2009 [1971]: 224-228).

96 Tomo esta expressão do tema da palestra proferida por Kearns a 19 de Setembro de 2008 no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra – “A representação da violência e a violência da representação”.

97 Note-se a diferença face à descrição do mesmo acontecimento por Pélissier, que vê nele um massacre (1986, vol. II: 190-192).

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O tom de desprezo relativamente à violência infligida àqueles que são considerados os inimigos da nação, sejam eles militares ou civis, mantém-se no segundo capítulo, levando a que do massacre da população de Novo Redondo apenas se retenha o exagero do relato do fazendeiro Sô Agripino de Sousa, ridicularizado por Ernesto Tavares, que comenta que “já tinham morrido mesmo mais brancos no Amboim do que os que havia em Angola inteira” (Y: 142).98

Se o tom é de desprendimento quando é feita alusão às mortes dos portugueses e seus descendentes, ele altera-se substancialmente quando são as populações africanas as vítimas da violência, neste caso os camponeses do Seles sobre quem se abate a fúria vingadora dos militares e, sobretudo, dos colonos. Apesar de participante, Tuca descreve os violentos acontecimentos que presenciou de forma compungida, não deixando de lamentar a morte indiscriminada de mulheres, crianças e prisioneiros de guerra (Y: 156-161).

Tal como os anteriores, também o terceiro capítulo de Yaka se organiza em torno de um conjunto de acções de extrema violência. Através de Aquiles, o brutamontes filho de Alexandre Semedo que, no meio de uma caçada, matou Tyenda, o filho mais velho de Vilonda só para ver “como era afinal um mucubal” (Y: 226), somos introduzidos à chacina dos cuvale por um “pássaro grande que vomitava fogo” (Y: 201), sendo o drama desta etnia de pastores depois repetido em pormenor com a família de Vilonda.99 E a atenção aos

98 Chama-se novamente a atenção para a distância entre a narrativa de Yaka e a descrição do mesmo acontecimento por Pélissier, que apresenta números elucidativos de uma chacina generalizada. Afirma o historiador que “os revoltosos, com matanças selectivas, eliminaram em dois meses – e quase sempre de maneira selvática – uns quarenta brancos e perto de 90 filhos mestiços seus. Antes da revolta do Noroeste de 1961, não há exemplo de tal morticínio de brancos e mestiços em Angola” (1986, vol. II: 54).

99 É assim que se assiste à investida do exército português contra a onganda de Vilonda, uma companhia inteira, trinta homens, contra “três e só com flechas” (Y: 241). A bravura da defesa, somada ao medo atávico aos guerreiros cuvale (Y: 242), leva o combate a um impasse que só se resolve com a chegada do avião, proporcionando então uma das descrições mais chocantes do romance: “os orgulhosos cuvale aguentaram o primeiro ataque do pássaro estranho que deitou fogo e balas na onganda. Os meninos fugiram para o seio das mães, não choraram”; mas as “bolas que rebentaram mesmo no meio da onganda” tudo aniquilaram (Y: 246-247).

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momentos de violência prossegue no capítulo seguinte que, centrado nos acontecimentos de 1961, repete a dualidade de critérios já detectada: enquanto a chacina das famílias de colonos e de trabalhadores contratados por toda a região Noroeste de Angola é apresentada como primeiro sinal da “chuva”, constituindo um benfazejo indício da chegada da almejada unidade nacional, já a desproporcionada repressão de “terroristas” um pouco por todo o território em 1961 é descrita nos seus pormenores mais chocantes e devidamente lamentada (Y: 311-317).

Da preservação da memória da violência ao seu culto

Já se referiu que a preservação, e até a exaltação, da memória dos momentos de violência e sofrimento, pode consolidar as identidades colectivas. Analisando sobre este ponto de vista Yaka – romance que inscreve a violência armada na própria essência da nação – é possível porém levantar a questão da existência de limites para esta exaltação, limites para além dos quais cessa o necessário culto dos heróis para ter início o culto da violência em si.

Esta interrogação é suscitada pelo modo como de em Yaka a preferência pelos momentos de violência é acompanhada pelo que pode ver-se como a atribuição a essa mesma violência de uma função legitimadora. Sugeriu-se, quando se tratou a representação dos principais movimentos rivais do MPLA, a FNLA e a UNITA, que a participação na luta armada possa ser entendida em

Yaka como factor de legitimação política, assim se invertendo a asserção inicial –

ainda bem presente em Mayombe – segundo a qual era por representarem a nação que estes movimentos podiam com legitimidade realizar acções de luta armada. Da violência justificada pela necessidade de construir a nação passa-se então para a violência como fonte de representatividade e legitimação política. Um argumento que foi sancionado pelas próprias estâncias do poder internacional quando, em finais de 1974, limitaram aos três principais movimentos de guerrilha a participação nas conversações de Mombaça e no processo eleitoral

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daí decorrente, por os considerarem os únicos legítimos representantes do povo angolano.100

Este entendimento do uso das armas como, em si mesmo, legitimador, perdurou no tempo, inquinando não só o processo de paz como também as primeiras eleições livres realizadas após os Acordos de Bicesse de 1991, na medida em que nestas novamente se depositou a esperança da paz nas mesmas figuras e movimentos que eram responsáveis pela guerra, como bem argumenta Benedict Schubert.101 No mesmo sentido, Messiant refere que “a bipolarização

que constitui o cerne e a substância dos acordos de Bicesse, ao dar a „prioridade política‟ aos dois „partidos armados‟, de facto legitima e reforça o seu duplo monopólio sobre a transição” (1994: 207). Partidos armados cuja “conversão à democracia é” – sublinha – “recente e formal”, constituindo estes aparelhos “político-militares dominados por lógicas e ambições hegemónicas” (Idem: 209).

A violência pode ser, em Yaka, vista como força legitimadora e também,