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INTRODUZINDO A ETNICIDADE NO PROJECTO DE CONSTRUÇÃO NACIONAL

ETNICIDADE E IMPÉRIO: O TEMPO DA PSEUDOMORFOSE

INTRODUZINDO A ETNICIDADE NO PROJECTO DE CONSTRUÇÃO NACIONAL

No capítulo dedicado ao romance Mayombe assinalou-se o modo como a presença em Angola de uma pluralidade das formações sociais capazes de mobilizar sentimentos identitários parcelares foi entendida, nesses inícios da década de 1970, sobretudo como um entrave à prossecução da luta armada. Propôs-se então ver no romance um apelo à dissolução das entidades colectivas depreciativamente apelidadas de “tribos” numa nação angolana cujas fronteiras delimitadas pelo colonizador o MPLA adoptou. Sugeriu-se que subjazeria ao romance a sugestão de que a inflexão em direcção a uma organização política nacionalista e revolucionária proporcionaria a substituição dos laços étnicos pela lealdade à nação – uma substituição operada, ainda durante a luta de libertação, pelos guerrilheiros mais instruídos. Nesse romance detectou-se um apelo à transferência de lealdades para a nação, na medida em que a incorporação das etnias na nação exigiria a diluição das formas de identidade étnicas na categoria da identidade nacional.

Relativamente a esse romance, Lueji apresenta-se como uma obra de viragem, na medida em que nele se torna perceptível uma alteração substancial do papel que é atribuído às identidades colectivas parcelares no processo de formação da identidade nacional. Erigido em torno da reconstituição ficcional do mito fundador do Império Lunda, o romance proporciona o que pode

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perceber-se como uma reflexão complexa acerca da articulação entre nação e etnias. Ao estabelecer como profícuas as relações entre esse passado longínquo e a actualidade, de certo modo assume que a construção da identidade nacional passa pela dignificação, e não pelo apagamento, da memória colectiva de grupos que preservam a sua particularidade sociocultural e a sua identidade parcelar. Para compreender a forma que toma a reabilitação das etnias no discurso ficcional de Pepetela sobre a nação, tal como ele é articulado em Lueji, abre-se aqui um parêntesis teórico sumário.

Recuperar o conceito de pátria para a discussão sobre a nação – parêntesis breve

Uma distinção muitas vezes encontrada em estudos dedicados à nação e ao nacionalismo é aquela entre nação cívica e nação orgânica, ou étnica. Hans Kohn, que foi o responsável pela sua popularização, sugere a existência de uma oposição entre estes conceitos, sendo ele próprio um dos mais conhecidos defensores da ideia de que a partilha de formas políticas seria capaz de sustentar o compromisso mútuo dos cidadãos uns para com os outros – o chamado “nacionalismo cívico”.10 Sem querer negar a importância dos valores ditos

“cívicos” ou “constitucionais” para a manutenção da coesão nacional, 11 pode no

entanto sugerir-se que esta dependa também de elementos que podem apelidar-

10 Craig Calhoun resume o modo dicotómico como Hans Kohn compreende o nacionalismo: “A ideia de nacionalismo, na visão de Kohn, desenvolveu-se especificamente no Ocidente como parte da tentativa de atingir uma ordem social baseada na razão e na justiça universais. Foi central ao liberalismo e o liberalismo constituiu uma parte central dele – até ter sido apropriado e transformado, sobretudo no Leste, por românticos, tradicionalistas, místicos irracionalistas e todos os que buscavam uma raison d’État diferente, regida não por ideias universais mas pelo desejo de reclamar um lugar igual, ou até dominante, no mundo reconstruído pelo Ocidente” (2007: 118).

11 Mais recentemente a posição de Kohn foi retomada por Jürgen Habermas, quando argumentou a favor de um “patriotismo constitucional” (1998). A proposta do autor alemão vai no sentido do desenvolvimento de um tipo específico de solidariedade nacional, baseada na lealdade dos cidadãos às instituições políticas. Craig Calhoun, que prefaciou a obra maior de Hans Kohn, The Idea of Nationalism, nota que Habermas, ao defender o patriotismo constitucional, usa precisamente os termos do teórico checo (2007: 139).

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se de “orgânicos”. Em vez de uma oposição, haveria então uma relação de interdependência entre a “nação cívica” e a “nação orgânica”.

Esta hipótese, avançada por teóricos como Margaret Canovan e Craig Calhoun,12 é sustentada de forma muito consistente por Fernando Catroga, que

procura compreender a questão na “longa duração”, o que o leva a recuar até à antiguidade romana e a um termo longamente afastado das discussões em torno da nação e do nacionalismo – o de pátria. De acordo com Catroga, o campo semântico de pátria “engloba, tanto o enraizamento natálico, como a fidelidade a uma terra e a um grupo humano identificado por uma herança comum, real ou fictícia” (2008: 9), sendo o termo muito anterior ao de nação. 13 A anterioridade

da pátria relativamente à nação ficaria patente na dicionarização de ambos os termos, à qual o teórico das ideias se dedica, concluindo que “não foi por acaso que o uso e a dicionarização de palavras como „nacionalista‟ e „nacionalismo‟ vieram muito mais tarde do que as de „pátria‟, „patriota‟, „patriotismo‟” (2008: 30).

12 Calhoun sustenta que não se veja uma oposição entre as componentes “cívica” e “orgânica” do nacionalismo, mas antes se tente compreender o modo como estas duas acepções se relacionam uma com a outra. Nas palavras do autor norte-americano, “não é que a distinção entre cívico e étnico não faça sentido. O problema reside é em usar esses termos para definir tipos opostos de nacionalismo. Isto obscurece o modo como as dimensões „cívica‟ e „étnica‟ se interligam em cada caso, embora em proporções variadas. Também encoraja a incompreensão das construções culturais sobre as quais repousam os nacionalismos que se crêem totalmente cívicos” (2007: 145-146). Vale a pena acrescentar que a preocupação central de Calhoun é mostrar os paradoxos do nacionalismo liberal de Kohn, recuperado recentemente por Habermas. Um projecto também abraçado do lado de cá do Atlântico pela britânica Margaret Canovan no esclarecedor Nationhood and Political Theory, de 1996.

13 Daqui decorreria uma consequência relevante: “Será a partir da ideia e do sentimento de pátria que comunidades e grupos narram a história que os identifica (e os constrói) como famílias alargadas e como comunidades étnico-culturais. Compreende-se. É que, se estas implicam a compartilha de características comuns (os mesmos mitos de origem, a mesma língua, um mesmo território, a mesma memória colectiva), é indiscutível que a sua pedra de toque se situa na ancestralidade. Bem vistas as coisas, como „terra dos pais‟ (e os seus respectivos mitos) a „pátria‟ é a origem de todas as origens, húmus sacralizado que, se gera, também filia e se impõe, quase holisticamente, como uma herança e como um dever de transmissibilidade, ou melhor, como um destino, ou mesmo como uma vocação” (Catroga 2008: 10).

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Não seria, porém, apenas cronológica a antecedência da pátria relativamente à nação, mas também lógica e ontológica (Idem: 9, 21-22). É que, para Catroga, o muito antigo conceito de pátria teria sido de alguma forma incorporado naquele mais recente de nação, à medida que se desenvolvia e afirmava, ao longo dos séculos XVIII e XIX, o Estado-nação. Neste sentido, a nação teria funcionado como “instância de conexão” entre as ideias de pátria e de Estado, “caldeando a „frieza‟ deste com a „quentura‟ que a conotação daquela irradia” (Idem: 20).14 A absorção do conceito de pátria pelo de Estado-nação teria

sido então responsável pela oscilação, nos séculos XIX e XX, do campo semântico de “nação”, cujo entendimento como “corpo moral „construído‟, ou de origem pactual secular (contrato social), foi sendo secundarizado a favor de uma caracterização étnico-linguística” (2008: 20).

A conclusão do autor português aponta para a inadequação das várias tentativas de definir a nação em termos estritamente “cívicos” e salienta a interdependência entre os elementos “cívico” e “orgânico” da nação. Debruçando-se sobre estes conceitos, Catroga traça a sua genealogia até ao pensamento romano republicano, onde encontra a ideia da existência de duas pátrias, uma por natureza, outra por cidadania, a patria loci e a patria civitatis:

Se o primeiro nível de patriotismo tem um cariz comunitarista, o segundo é polarizado, dominantemente, por valores jurídico-políticos, perspectiva que, reactualizada, virá a ser fundamentadora da ideia do patriotismo cívico de raiz contratual e, por extensão e transformação, do conceito moderno de „nação cívica‟. Por sua vez, embora a primeira

14 Catroga explicita a dicotomia entre pátria e Estado, acima definida em termos de “quentura” e “frieza”, argumentando que “no significado de pátria, a população e, em certa medida, o território tendem a sobrepor-se à faceta institucional, e a sua funcionalidade é dita numa linguagem lírica, afectiva e maternal, que antropomorfiza, tanto o território, transformando-o em paisagem, como a população, que se metamorfoseia numa comunidade fraternal de com/patriotas. Por sua vez, o Estado alude, dominantemente, à dimensão institucionalizada do poder que se exerce sobre uma população – que ele divide entre governantes e governados – e sobre um dado território, lugar onde a sua soberania traça e defende „limes‟ externos, ao mesmo tempo que procura eliminar os internos” (2008: 20) .

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acepção pudesse coabitar com a segunda, ela funcionará, sobretudo, como o molde por excelência, quer da concepção mais holística, étnico-cultural e territorial dos sentimentos de pertença, quer da sua expressão mais totalizadora como „nação orgânica‟. (2008: 13, ver também 21-22)

Sendo distintos – e Catroga defende a necessidade de distinguir tanto entre as duas dimensões de pátria como entre as de nação – os conceitos de “patria loci”e “patria civitatis”, bem como os de “nação cívica” e “nação orgânica”, interpenetram-se, referindo Catroga a possibilidade de detectar “a existência de características transversais às duas dimensões de pátria, já que a

patria iuris explorará, igualmente, a analogia com a patria loci, naturae, ao mesmo

tempo que porá em acção uma similar „gramática‟ apelativa que o discurso político romano levará às suas últimas consequências” (2008: 14).

Note-se que esta entrada da “pátria” na discussão em torno da nação e do nacionalismo se dá afastando dela um conceito relativamente recente que muito se presta a confusões, o de “etnia”.15 E que de algum modo Catroga

retoma, com recurso a uma argumentação distinta, a asserção várias vezes reafirmada de Anthony Smith acerca da dependência profunda dos modernos Estados-nação relativamente às formações que o autor britânico apelida de

ethnies.16 A aproximação à posição de Smith é aliás assumida por Catroga, que

15 Henriques especifica que o conceito de etnia é de cunhagem muito recente – teria sido usado pela primeira vez em 1896, por Vacher de Lapouge (1997: 176).

16 Anthony Smith especifica os elementos que considera essenciais para que possa falar-se de uma ethnie: a presença de um nome colectivo que sumarize “a sua „essência‟”; a posse de um mito das origens comum que junte as ideias de viver juntos e ser semelhantes na cultura com a de uma ascendência comum; a consciência de ter uma cultura partilhada distinta, que una os membros da comunidade enquanto os separa dos outros; a associação a um território específico, seja aquele em que se reside seja outro que constitua uma memória poderosa; e finalmente um sentido de solidariedade activa, que em épocas de perigo se sobreponha às diferenças de classe e regionais dentro da comunidade (Smith 1993 [1986]: 23-31). Para Smith, estas ethnie seriam não apenas essenciais ao processo de formação da nação, como também o factor responsável pelas diferenças entre nações. Afastando-se de perspectivas mais essencialistas, bem como da ideia da modernidade da nação, salienta que as revoluções do capitalismo industrial, do estado burocrático e da educação de massas secular não obliteraram as culturas e sentimentos de

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cita uma passagem de A Identidade Nacional (1997 [1991]) para sustentar que “para se afirmar como um „nós‟, ela [a nação] ter-se-á de narrar como um destino sacral, ditado pelas origens Por isso, todos os mitos estruturantes das identidades nacionais reivindicam uma „linhagem como fase da comunidade política‟” (2008: 21).

Esta argumentação desenvolvida por Catroga pode ajudar a esclarecer certos aspectos de Lueji, na medida em que no romance é possível detectar uma valorização de traços da identidade colectiva passíveis de serem interpretados como orgânicos, os quais transparecem na ligação das personagens às várias terras e às suas gentes. Sentimentos que surgem no romance associados aos laços de pertença étnicos. Pode aliás intuir-se em Lueji uma espécie de distinção funcional entre etnia e nação: à etnia caberia a função de actualizar os laços mais orgânicos, à nação caberia integrar as etnias num todo entendido como cívico. Neste sentido, às identidades colectivas parcelares, antes vistas como entraves à nação, caberia em Lueji um papel não negligenciável, que a partir da reflexão de Catroga pode compreender-se como uma abertura aos aspectos mais orgânicos da identidade nacional.

Orgulhosamente exibidos pelas personagens, os laços étnicos surgem em

Lueji como elementos que reforçam a identidade angolana, aliando-se e não

substituindo-se a ela. Este é o caso de Lu, cujo sentimento de pertença ao território da Lunda,17 de onde seriam provenientes os seus antepassados, é

reforçado por um laço de cariz mítico-genealógico, já que a sua avó seria “descendente dos Muatiânvua, quer dizer da Lueji” (L: 45). 18 Do mesmo modo,

também Marina proclama com orgulho a ligação ao Leste, reforçada pelo sentimento de pertença à linhagem dos imbangala, já que reclama Tchinguri, o

identidade preexistentes, embora as tivessem modificado. Vão ser estas culturas e sentimentos

os responsáveis pelas qualidades distintas das nações emergentes (Idem: 3, também ix-x).

17 De visita à Lunda, onde nunca tinha estado, Lu sente-se em casa (L: 354), graças a uma “indefinível ligação mágica” (L: 356).

18 Reforçando o laço ancestral, Lu invoca Lueji chamando-lhe “centavó” (L: 124, 288 e outras). E a directora da companhia de bailado apelida a bailarina de Lu-Lueji (L: 292, também 472).

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mítico fundador do Reino de Cassanje, como seu ascendente. 19 E Cândido,

cujos traços fisionómicos e comportamentais levam o narrador a identificá-lo com os cuvale do Sul, de quem teria o “orgulho da raça” (L: 427), é ainda mais enfático no modo como assume a ligação ao território, recusando-se a abandonar a Serra da Chela e a profissão de professor do centro de formação de técnicos agrários, que o mantêm em permanente ligação com o modo de vida do seu povo.20 Também de Jaime se menciona elogiosamente ser um “puro

kaluanda” (L: 471), enquanto Uli se agarra com orgulho aos preceitos de tipo ético transmitidos pelas famílias de pescadores da Ilha, marcas da sua identidade muxiluanda. E é apenas em relação a Afonso Mabiala, o compositor de origem bakongo, que se sugere que a integração na sociedade angolana implique um apagamento da prévia ligação identitária – uma exclusão que já foi assinalada a propósito de Yaka, constituindo uma constante na obra de Pepetela. 21

Harmonizando simbolicamente a pluralidade

Relativamente a esta valorização dos laços de tipo orgânico ou pátrio – sentimentos que são apresentados como desenvolvendo-se no âmbito das identidades colectivas parcelares – detectável no tratamento das personagens que povoam em Lueji a Angola ficcionada do futuro, nota-se que, ao contrário do que acontecia noutras obras de Pepetela, e especialmente em Mayombe, a pluralidade surge aqui, não como motivo de conflito, mas como elemento

19 “Marina vinha de Malanje, mas era natural de mais a Leste, da terra dos Imbangala, como gostava dizer. O meu pai é descendente de Kinguri, o chefe-fundador dos Imbangala, que parece deram trabalho aos portugueses… A todos” (L: 45).

20 A forte identidade cuvale de Cândido não chega, porém, a pôr em risco a sua identidade angolana. Isto fica claro logo aquando da sua apresentação, ao referir-se a participação da família na “lendária guerrilha dos Cuvale contra os ocupantes” (L: 428) – sendo, note-se, os ocupantes o exército Sul-africano então apoiante da UNITA e integrando tropas deste movimento.

21 Afonso Mabiala “voltou com a independência, aprendeu o português, esqueceu o lingala, e se integrou. Hoje ninguém mais lembrava que fora um „regressado‟, adjectivo quase pejorativo que numa dada fase era utilizado em Luanda” (L: 122). Mabiala regressou a Angola vindo do Congo, onde o lingala é usado como língua franca – um destino comum a muitos bakongo que, após os massacres de 1961 e a sua subsequente repressão, se refugiaram naquele país (ver cap. 3).

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propiciador da unidade. Uma unidade na pluralidade que o romance justifica a partir do mito da formação do Reino da Lunda, que é reelaborado no sentido de salientar certos traços que o tornam mais apto a constituir uma estância de conexão entre vários grupos. Relativamente a esta base mítica, a historiadora Isabel Castro Henriques refere ser amplamente aceite, quer por historiadores quer por antropólogos, a “existência de laços privilegiados entre um número importante de grupos, saídos do molde político e cultural dos Lundas centrais”, laços esses que os mitos de origem retêm, embora de modo aproximativo (1997: 155-156). É sobre esta base que Lueji é elaborado, tomando do mito a concentração num espaço de tempo relativamente breve de acontecimentos que podem ter ocorrido de forma muito dispersa, mas também reconstruindo-o ficcionalmente no sentido de reforçar as ligações entre os grupos que Henriques denomina de “lundaízados”, e estendendo mesmo essas ligações a outros grupos fora da influência da Lunda.22

O mito de Lueji, que surge no romance, num primeiro tempo, como narrativa fundacional dos lundas, logo se derrama em várias direcções. Por intermédio da personagem de Ndumba ua Tembo, que na versão recolhida por Rodrigues Neves em 1854 surge como um dos “macota” que teriam seguido Kinguri (Vansina 1962a: 49; Henriques 1997: 197), o mito é estendido na direcção dos tchokue,23 de quem o caçador teria sido chefe.24 Através do

22 Vale a pena, sobre esta utilização do mito de Lueji, mencionar uma afirmação de Smith a propósito dos novos Estados africanos: “a nação que pretenda tornar-se numa „comunidade política‟ de acordo com o modelo territorial e cívico ocidental, deve, paradoxalmente, procurar criar os mitos de origem, as memórias históricas e a cultura comum que formam, juntamente com a solidariedade mútua, o sentimento de pertença étnico” (1993 [1986]: 147). Numa nota que ganha todo o sentido quando o objecto de análise é a obra de Pepetela, sugere então que nestes países, em alternativa ao predomínio de uma etnia sobre as outras, se construa uma nova cultura política a partir do legado de várias etnias, “combinando mitos e símbolos, procurando denominadores comuns no passado (colonialismo, discriminação racial) e até inventando distantes origens comuns” (Idem: 149).

23 Utilizo a variante gráfica que é utilizada por Pepetela em Lueji – “tchokue” – estando porém consciente da multiplicidade de nomes que foram atribuídos a este povo. Marie-Louise Bastin recolhe mais de quarenta variantes (1961: 21), e Merran MacCulloch, citada por Henriques,

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belicoso Tchinguri confirma-se no romance a bem conhecida ligação entre o Império da Lunda e o “grande Estado dos Imbangala, perto do Cuango, mais tarde conhecido por Reino de Cassanje, em que os chefes se chamavam Jaga” (L: 470).25 Por intermédio da personagem de Chinyama, o preguiçoso mas

inteligente irmão de Lueji, cruza-se o mito fundador da Lunda com o de um povo mais a Sul, os luvale, amantes da paz e das “estórias moralistas” (L: 470).26

Finalmente, personagens como Mai, Kandumba e Kamexi são em Lueji enviados pela própria rainha a formar Estados que ficarão na dependência do poder

cerca de vinte (1997: 431). Em geral, os textos portugueses referem-se a este povo como

“quiocos”.

24 Ndumba ua Tembo é apresentado em Lueji como “futuro grande chefe dos Tchokue” (L: 379), os quais não teria, porém, conseguido reunir “num Estado” (L: 433). A referência a Ndumba ua Tembo como chefe dos tchokue surge em Capello e Ivens (1996 [1881], vol. I: 172), quando reproduzem o discurso do “soba” N‟Dumba-Tembo a propósito da origem da sua família, que seria proveniente da Lunda, e cuja migração este chefe relaciona com a figura de Lucoquessa (uma das variantes do nome de Lueji). Esta associação feita por N‟Dumba-Tembo entre a origem do próprio grupo e os mitos fundadores dos “lundas centrais” segue, afirma Henriques, a explicação mais usual entre os tchokue, segundo a qual “um ramo lunda, replicando às mudanças registadas nas regras de sucessão, teria abandonado o seu território original, para se instalar num nicho ecológico que se transformara nos anos e séculos subsequentes no espaço central dos Quiocos” (1997: 432).

25 Sendo bem conhecida a relação comercial e política entre o Reino de Casanje e a Lunda, já os pormenores e datas referentes à instalação dos descendentes de Tchinguri nesse espaço são alvo de discussões académicas, motivadas em parte pelo mistério constituído pelos “jagas” a que se referem certos textos antigos. Henriques proporciona em Percursos da Modernidade em Angola um