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O LUGAR DOS COLONOS NA NAÇÃO ANGOLANA

PRESTANDO CULTO A UMA ASCENDÊNCIA GUERREIRA: O TEMPO DA NAÇÃO

O LUGAR DOS COLONOS NA NAÇÃO ANGOLANA

Como já se referiu, a narrativa de Yaka estrutura-se em torno da trajectória de uma família de ascendência portuguesa em Angola, tendo por eixo central o percurso de vida do seu patriarca, Alexandre Semedo. Dotado de uma personalidade ambígua, Alexandre pouca influência exerce sobre os comportamentos, ideias ou atitudes dos seus filhos e netos, que ilustram todo um leque de possibilidades de relacionamento entre descendentes de portugueses e africanos. O enredo de traços parcialmente autobiográficos, como reconhece Pepetela em entrevista a Venâncio,34 acentua que diferentes caminhos

se abrem à família Semedo no advento da independência angolana, inclusivamente o da integração na nação. Pode porém questionar-se se a população por ela representada tem verdadeiras possibilidades de ser aceite como angolana.

Instrumentalizando a terra e as gentes

Esta população de origem portuguesa ficcionada em Yaka, essencialmente composta por fazendeiros e comerciantes, é antes de mais desprezada pela sua origem. Logo nos capítulos iniciais, através da personagem de Acácio, o barbeiro anarquista, é lembrado que, nesse final do século XIX, todos os que chegavam de Portugal eram antigos condenados, fossem eles colonos ou militares. 35 Mesmo quando faz referência a gerações posteriores de

34 “Entrevistador: Até que ponto podemos considerar Yaka, a saga duma família europeia em Angola, como uma autobiografia? / Pepetela: Directamente não é, isto embora a minha família tenha muito dessa família de Yaka. Há um ou outro elemento da minha família que eu integrei no livro. Sei lá... a família da minha mãe, por exemplo, fundou a cidade de Moçâmedes; o meu pai foi a certa altura, para Benguela... Nisso há alguma ligação, embora as personagens não tenham a ver directamente com pessoas minhas conhecidas, nem com a história da minha família. De qualquer modo, a família de Yaka representa as famílias antigas, as famílias dos colonos que foram para Angola no século passado, que se integraram na sociedade e que depois, em 1975, com a independência, se dividiram” (Venâncio 1992: 97).

35 Tal é o caso dos comerciantes Sô Lima e de Sô Lopes (Y: 40, 57), mas também de Óscar Semedo que, apesar de descender de uma família aristocrática, foi degredado por um crime brutal, “acusado de ter morto a mulher à machadada” (Y: 18). Relativamente a estas origens vergonhosas, diz Acácio, usando a ironia, que “se não mandassem os degredados de direito-

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emigrantes, que não chegam a Angola acusados de quaisquer crimes, Pepetela não deixa de salientar em Yaka as suas origens humildes: Donana, a mulher de Alexandre Semedo, era em Portugal simplesmente a Aninhas, criada de uma família da nobreza; Bartolomeu Espinha fugira de uma vida miserável nas ruas de Lisboa; o próprio Alexandre é desprezado pelo seu nascimento em Angola, que o torna, à luz do preconceito metropolitano, “branco de segunda”.

O passado humilde e por vezes vergonhoso não impede, no entanto, a presunção de uma maioria dos colonos a serem, na grosseira expressão de Sô Agripino de Sousa, “os civilizadores desta negralhada” (Y: 107). Em Yaka salienta-se, ao invés, a existência de um complexo de superioridade, que se apresenta na forma de desdém pelos valores culturais africanos – bem patente no modo como a família Semedo, excepção feita a Alexandre, despreza os objectos que corporizam essa cultura, sejam eles peças de escultura ou de mobiliário. 36

Transparece também no romance a ideia de que a relação da generalidade dos colonos, não só com a cultura, mas também com a terra angolana, se pauta pelo desapego. Se a ganância os leva a trabalharem o solo para dele tirarem o máximo partido, a relação que daí evolui é de pura instrumentalidade, não se desenvolvendo qualquer afeição entre os colonos, sejam eles fazendeiros, comerciantes ou funcionários públicos, e o território. Esta relação de desafecto pode perceber-se na ironia com que a estátua yaka comenta a expressão pelos colonos de quaisquer sentimentos de apego a Angola. No seu longo monólogo,

comum, quase não havia brancos em Angola. Não havia civilização para os indígenas. Vivam os

de direito-comum, civilizadores dos cafres!” (Y: 57)

36 A devoção de Alexandre aos objectos da tradição africana é motivo de discussões com a mulher, Donana: “Todo o mobiliário do salão era de verga e palhinha. Feita localmente por um velho lunda especialista em verga, Donana queria poltronas de couro mas Alexandre recusou: só verga” (Y: 206; também 215 e 233). A tentativa de mostrar em Yaka o desprezo dos colonos pelo artesanato africano cai, porém, numa curiosa contradição, já que na descrição da ponte aérea que levou estes mesmos colonos de volta para Portugal em 1975, no último capítulo, é largamente referido o apego destas pessoas a todo o tipo de estatuetas e mobiliário africanos, que insistem em transportar consigo – sendo então este apego apresentado como roubo cultural (Y: 379).

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ela descreve as revelações de amor pela terra angolana dos “homens importantes donos de impérios” (Y: 322) como estratagemas para tentar manter o poder uma vez iniciado o processo de independência: “despertaram da letargia provocada pelo estupor do trovão, começando a se agitar em conciliábulos secretíssimos, criando partidos, movimentos, grupos que depois eram anunciados pela rádio, todos falando no amor dos homens importantes pela terra portentosa” (Y: 322).

Instrumental é também a relação dos colonos com a população africana que o romance ficciona. Desde a persistência do tráfico de escravos para o Arquipélago de S. Tomé e Príncipe e para o Brasil, 37 até ao roubo sistemático de

gado, passando pela expropriação de terras para o plantio do café e pelos maus- tratos aos trabalhadores, em Yaka são descritas – baseando-se Pepetela em factos históricos – práticas que configuram um extremo desinteresse dos colonos relativamente à sorte das populações do espaço angolano. Exemplificando uma atitude que em Yaka é ficcionada como dominante, Donana, confrontada com a decisão do marido de matar todos os africanos para não mais viver no medo, apenas comenta: “Mas se matam todos, quem vai trabalhar? (Y: 138)

Também os angolanos que se envolveram em projectos independentistas podem ser vistos em Yaka como estranhos à genealogia da nação. É o caso de Ernesto Tavares, que a certa altura do seu percurso lamenta a possibilidade perdida da independência com o Brasil, 38 não se coibindo de afirmar a sua

37 A referência de Pepetela à persistência do tráfico negreiro baseia-se em dados históricos. De facto, durante mais de quatrocentos anos, desde meados do século XV até meados do século XIX, a costa ocidental africana foi, essencialmente, um lugar de abastecimento de mão-de-obra escrava. E as medidas impondo a extinção da exportação de escravos foram sistematicamente inviabilizadas nas colónias, onde as elites dominantes, fortemente dependentes dos proventos desse tráfico, se opuseram ou, mais frequentemente, puseram do seu lado, os sucessivos governadores enviados de Lisboa com a missão de fazer respeitar o decreto de 10 de Dezembro, mas sem terem meios financeiros ou militares para tal (Pélissier 1986, vol. I: 28; Alexandre 2000: 98-100; 114)

38 “Perdemos a grande oportunidade no século passado. Independência de Benguela com o Brasil. Já não tínhamos estes problemas. Lisboa e Luanda é que fazem as burrices todas e depois nós pagamos. No Brasil não há revoltas. Todos satisfeitos, mão na mão. Riqueza, progresso” (Y: 147).

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admiração relativamente aos autonomistas benguelenses de finais de do século XIX: “Houve aqui um forte movimento para acompanhar o Brasil. Já na altura achavam que um Governo não pode dirigir de Lisboa” (Y: 78). Ideias que são desvalorizadas por Acácio, para quem o objectivo dos independentistas de oitocentos seria apenas o de “vender os escravos directamente ao Brasil” sem pagar comissões a Lisboa (Y: 78).O percurso político de Ernesto mostra como fundamentada a desconfiança de Acácio, já que ele progressivamente se afasta das ideias de autonomia até chegar à defesa dos regimes fascistas.39 No seu

enterro “digno e frio” (Y: 199) – bem diferente da cerimónia dedicada ao barbeiro Acácio – é notório o afastamento em relação à população africana, que não nutre por ele simpatia.

De modo a compreender a caracterização da população de origem portuguesa vale a pena atentar a que, em Yaka, não é tanto sobre o exército, mas essencialmente sobre os colonos que recai o ónus da violência praticada contra as populações africanas. Na narração da chamada “guerra preta” contra o Seles e o Amboim, o romance aponta para o que pode ser entendido como uma oposição entre um exército brutal, mas ainda assim interessado em resolver os diferendos entre os colonos e a população africana, e os próprios colonos. Responsáveis, aos olhos dos oficiais metropolitanos, pela revolta dos camponeses que haviam expulsado das suas terras, os colonos aparecem ainda como executores de um verdadeiro massacre, perpetrado à revelia dos militares.40

39 Se na juventude e até à maturidade Ernesto defende a autonomia de Benguela, chegando mesmo, por volta de 1917, a tentar criar um movimento pela sua independência (Y: 147-148), anos mais tarde junta-se à Kuribeka, a maçonaria local, onde passa a defender a indivisibilidade da Pátria (Y: 197). Este movimento é por sua vez abandonado quando se consolida o Estado Novo e Ernesto Tavares se torna membro da União Nacional de Salazar (Y: 198). Pouco antes de morrer radicaliza ainda mais o discurso e, contra a opinião generalizada dos habitantes de Benguela, declara a sua “simpatia por Hitler e Mussolini, homens fortes, que-era-o-que-os- povos-precisavam” (Y: 198) .

40 Pélissier cita um capitão-mor do exército português, que em 1915 escreveu que “entre os mais altos potentados do Seles encontram-se os maiores ladrões da região” (1986, vol. II: 46), bem como um relatório confidencial que culpabiliza os colonos (Idem: 55). Seguindo esta toada, a

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Este tema repete-se quando, no terceiro capítulo, é ficcionada a empresa militar, dita de “pacificação”, que ficou conhecida por Guerra dos Mucubais.41

Também aqui, na história que se desenvolve paralelamente à narrativa principal, a actuação do exército aparece em grande medida instigada pelos colonos, sendo a chacina da próspera família de Vilonda motivada pela cupidez do genro de Alexandre Semedo.42 Esta personagem volta, noutro capítulo, a envolver-se

numa acção semelhante, aproveitando o clima de terror que se segue aos ataques da UPA de Holden Roberto em 1961. A descrição da intervenção interesseira de Bartolomeu, que aproveita o ambiente de grande desconfiança e medo para roubar ao vizinho as terras que desde há muito cobiçava, servirá então de pretexto à estátua yaka para declarar como fraudulenta a intervenção do exército colonial, mostrado como instrumento dos interesses económicos dos colonos (Y: 311-315).

Os colonos como inimigo schmittiano

No modo como em Yaka é ficcionada a diferença entre os colonos de origem portuguesa e as populações do espaço angolano, uma diferença onde

personagem Tuca, tenente do exército colonial, descreve as causas da rebelião: “Muitos abusos.

As boas matas de café foram todas apanhadas pelos colonos. Qualquer pretexto servia. Expulsavam a população para as terras piores. E faziam escravos.” (Y: 157) Tuca salienta também a ganância dos colonos, que vai ao ponto de massacrarem os sobreviventes da ofensiva militar para ocultarem os seus abusos (Y: 157), após o que “acusam todos de se terem revoltado, mesmo aqueles que não o podiam ter feito. Assim apanham o pouco de terras que restavam nas mãos dos seles e dos amboins. Mata-se para se ficar com as terras” (Y: 161).

41 No misto de romance e relato etnográfico que constitui Vou Lá Visitar Pastores, Duarte de Carvalho traça as linhas gerais do conflito endémico entre colonos e populações cuvale que havia de culminar na sangrenta repressão de 1940/1941 (2000: 46-54), envolvendo pelo caminho outras populações que designa por Tyilengue, os “quilengues” dos relatos coloniais. 42 No capítulo descreve-se a aproximação trágica entre a família de Alexandre Semedo e a de Vilonda, um chefe cuvale cujo modo de vida é descrito em largas passagens intercaladas na narrativa principal (Y: 176-183, 200-204, 226-229). O agente dessa aproximação é o belicoso Aquiles de Aragão Semedo, filho mais velho de Alexandre que, ansioso por enfrentar os que denomina de “mucubais”, mata o primogénito de Vilonda (Y: 226). A morte do próprio Aquiles sob a lança de Vilonda levará as autoridades a uma expedição punitiva durante a qual massacram a família cuvale e confiscam o seu gado, parte do qual será roubado por Bartolomeu Espinha, o instigador da operação (Y: 230).

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pode mesmo detectar-se a incompatibilidade, é possível ver uma tentativa de definir os limites da nação. Colocados no mais extremo ponto de dissociação relativamente aos africanos – um lugar que em Mayombe pertencia ao exército colonial43 –, os colonos podem perceber-se como estranhos à nação. Mais ainda,

nos colonos que no último capítulo passam a “colonialistas”, pode discernir-se em Yaka o inimigo em relação ao qual toma forma essa mesma nação.

Intui-se, perpassando Yaka, um certo modo de entender a formação da nação que privilegia a acção tanto da violência como das relações externas, já que é na oposição violenta a um elemento entendido como exterior que esta toma consciência de si. Para melhor compreender este tema pode recorrer-se à teorização de Carl Schmitt, nomeadamente à sua asserção de que a diferenciação nas categorias de amigo e inimigo constitui a “distinção específica do político” (1972 [1932]: 66).44 Este inimigo, argumenta o politólogo alemão recorrendo ao

latim de onde deriva o termo, não é o inimicus, o “concorrente ou o adversário no sentido geral do termo”. Não é também o “rival pessoal, privado, que se odeia e por quem se sente antipatia” (Idem: 69), mas antes o hostis, o inimigo público. Para Schmitt, “a configuração amigo-inimigo é de natureza tão poderosa e tão determinante que, a partir do momento em que provoca este agrupamento, o antagonismo não político, com os seus critérios e motivos precedentemente válidos, passa para segundo plano” (Idem: 79). Nesta concepção, o ponto extremo de dissociação que se atinge ao definir o inimigo

43 Compreende-se então que, no último capítulo, seja a partida dos colonos, e não a do exército, que torna viável a independência.

44 Schmitt refere que com a distinção entre amigo e inimigo não pretende obter uma definição exaustiva ou compreensiva do fenómeno político, mas apenas estabelecer um critério diferenciador desse fenómeno, tal como a distinção entre bem e mal constitui o critério diferenciador da moral, por exemplo. Nas suas palavras, “na medida em que ela [a distinção entre amigo e inimigo] não se deduz de qualquer outro critério, ele constitui o equivalente, no campo do político, aos critérios relativamente autónomos de diversas outras oposições: o bem e o mal na moral, o belo e o feio na estética, etc. Ela é autónoma, em todo o caso, não no sentido em que corresponda a um campo de actividade original que lhe seja próprio, mas no sentido de que não poderia fundir-se em nenhuma das outras oposições, nem sequer reduzir-se a elas” (1972 [1932]: 66).

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permite ao grupo estabelecer um espaço de onde a violência é banida, levando ao reconhecimento de todos os que igualmente fazem frente ao perigo como comunidade – como amigos.

Julien Freund, comentando esta passagem de La Notion de Politique, refere que “seria difícil indicar mais claramente que a associação ou integração interna realizadas pelo Estado têm por base a relação amigo-inimigo. A inimizade não é apenas um factor de divisão ou ruptura, mas também de união e associação” (1972: 25). Note-se que, noutras formas de entender a formação da comunidade, não é a descoberta da diferença face ao exterior que é percebida como essencial, mas antes o reconhecimento da similitude entre os elementos de um grupo, que se definem como um “nós”. Nesse caso é conferida especial importância à “força dos laços que ligam o indivíduo ao seu grupo”, consistindo estes nas “normas de carácter obrigatório que comandam a existência colectiva”, como refere Raymond Aron (1984 [1962]: 294). De acordo com essa concepção, os estrangeiros, os “outros”, reforçam pela sua diferença o sentimento de identidade entre os que já se reconhecem como grupo, mas não são os responsáveis pela formação desse grupo.

Não é esta última concepção que prevalece em Yaka, onde nos colonos de origem portuguesa pode adivinhar-se o hostis, o inimigo em relação a quem os conflitos internos se tornam secundários, e na luta contra o qual se desenvolve a nação angolana. A descrição dos colonos como maus – um critério de ordem moral e não política – apenas vem sublinhar o grau extremo da sua dissociação relativamente à população de origem africana.45

45 A este respeito refere Carl Schmitt que, “ao nível da realidade psicológica, compreende-se facilmente que o inimigo seja tratado como se fosse mau ou feio, pela simples razão de que toda a discriminação, toda a delimitação de grupos, se apoia na medida do possível em todas as outras oposições; e a discriminação política, que é a mais clara e a mais forte de todas, naturalmente utiliza este procedimento mais que todas as outras” (1972 [1932]: 67).

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A possibilidade de escolher o seu “lado” – Acácio, Alexandre e Joel

É importante sublinhar que a oposição, que se tem vindo a detectar em

Yaka, entre os colonos – retratados como um conjunto de indivíduos

exploradores e sem escrúpulos – e a população africana, não tem, pretensamente, origem na diferença de origens, mas na cultura. Esta é uma distinção importante, já que abre a possibilidade de escolher a pertença a um grupo ou outro, ultrapassando factores pré-determinados. Esta ideia de uma possibilidade de escolha pode, aliás, ser vista como um dos motivos centrais do romance. Em Yaka, a aceitação ou rejeição de cada indivíduo na nação angolana parece decorrer acima de tudo das suas decisões pessoais.

São, porém, poucas as personagens que em Yaka podem ser vistas a superar a barreira cultural, recusando identificar-se como colonos. Entre estas destaca-se Acácio, o barbeiro anarquista, que ignora as barreiras racial e cultural levado pelas suas convicções políticas. “O único degredado político sem sombra de dúvida” (Y: 32) de Benguela, para Acácio o mundo não se divide entre brancos e negros, mas entre “opressores e oprimidos” (Y: 58). Por essa razão não se coíbe de criticar os sobas, os “aristocratas cá da terra” (Y: 46), por participarem no tráfico de escravos, e zanga-se com Óscar Semedo, seu amigo de longa data, quando este escreve para um jornal de Portugal a pedido dos comerciantes:

O teu pai passou-se para o lado deles. A defender nitidamente os vendedores de moleques! A exigir a ocupação total do Planalto! A pedir mais tropa para dizimar os negros! Não se fala uma só vez de direitos das populações, apenas nos lucros dos colonos. (Y: 50-51)

A utilização da expressão “o lado deles” mostra que Acácio só pode estar do outro lado, o dos oprimidos e explorados, naquele caso as populações africanas, o que não impede que se debata com as contradições inerentes à sua

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condição de branco, logo privilegiado, em África. 46 A sua escolha não é, no

entanto, isenta de dificuldades e perigos, implicando desde logo a segregação por parte da maioria dos colonos. E é na sequência de mais uma confrontação com o fazendeiro Sô Agripino de Sousa, que Acácio apelida de “escravocrata” (Y: 105, 106), que este mandará os filhos mulatos matá-lo, por entender que “ou se está dum lado ou se está do outro” e por não tolerar os brancos “que se põem do lado dos negros” (Y: 107-108). O magnífico funeral de Acácio pode ser visto como uma demonstração da sua aceitação pela população africana, que acorre em massa. 47

Também no percurso de Alexandre Semedo pode perceber-se uma ilustração dessa possibilidade de escolher entre pertencer ao grupo dos amigos ou ao dos inimigos. Se o barbeiro anarquista assume com toda a radicalidade as suas opções, coerentemente escolhe o seu “lado” e sofre as consequências da escolha, Alexandre parece antes prosseguir o caminho ambíguo do seu pai, Óscar Semedo, sempre dividido entre as ideias republicanas que lhe valeram o degredo em Angola e a necessidade da sobrevivência. 48 O seu percurso

atribulado – que o próprio compara ao de Ulisses (Y: 386) – oscila permanentemente entre os dois mundos, e ilustra a dificuldade de escolher entre

46 Apesar de viver do seu trabalho – “Tenho uma arte. Não vivo da mais-valia” (Y: 41) –, Acácio compreende que o que recebe é uma parte do lucro dos colonos, o que o torna