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7. A C OLISÃO DE D IREITOS C ONSTITUCIONALMENTE C ONSAGRADOS

9.1. D AS G RAVAÇÕES I LÍCITAS

A palavra dita ou escrita é algo volátil, passageiro, permanente no tempo e na memória com a transcrição para meios menos efémeros, como um diário ou um gravador. A voz que temos e as palavras que proferimos caracterizam a idiossincrasia de cada um, daí o direito à palavra ser parte integrante do direito geral de personalidade. Já o ilustre e célebre autor MIGUEL TORGA escrevia que “[só a palavra é capaz de] nos afirmar e

confirmar. Somos a voz que temos. Quem é sujo, suja o que diz. E, sem poder dizer, nada podemos (…). Quem não sabe falar, não sabe convencer, nem seduzir (…) Sem palavras não há comunhão de corpos e almas.”247

Enquanto núcleo da personalidade humana e expressão da sua dignidade, cada um tem o domínio sobre aquilo que diz, e bem assim como o diz, assistindo-lhe plena disponibilidade sobre a palavra falada e, ainda, autodeterminação relativamente aos recetores das palavras proferidas e ao contexto em que estas devem ser ouvidas. Como precisa COSTA ANDRADE, este direito à palavra incorpora “(…) o direito que assiste a

cada um de decidir livremente se e quem pode gravar a sua palavra bem como, e depois de gravada, se e quem pode ouvir a gravação.”248

247 Cfr. TORGA, Miguel. Diário, Vols. XIII a XVI, 5.º ed. conjunta, Lisboa: Publicações D. Quixote, 2011,

p. 313.

248 Cfr. ANDRADE, Manuel da Costa. Anotação ao art. 199.º do C.P., em Comentário Conimbricense do

126 O crime de gravações ilícitas está previsto no art. 199.º, do C.P., especificamente no seu n.º 1, já que o mesmo dispositivo legal consagra também o crime de fotografias ilícitas, sobre o qual iremos debruçar-nos ulteriormente.

Assim, da análise daquela norma resulta claro que é punível não só a gravação de palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, ainda que lhe sejam dirigidas, sem o consentimento da pessoa que as profere, bem como a utilização dessas gravações mesmo que licitamente produzidas. Ora, se o bem jurídico aqui tutelado é a palavra, direito que assiste a cada um, nos termos referidos, e porque a palavra é um elemento passageiro, a tutela penal daquele direito passa também pelo direito à efemeridade da palavra, ou “transitoriedade”, como explica o autor que acabamos de citar. Neste sentido, “(…) a pretensão e a convicção de que a palavra seja, por princípio, apenas ouvida no momento e no contexto em que é proferida, não podendo ser perpetuada para ser posteriormente invocada contra o autor, fora do espaço, tempo, vivência, gesto, ambiente de simbolizações e outros significantes.”249

O tipo objetivo das gravações ilícitas só protege a palavra proferida por uma pessoa, desconsiderando, assim, toda e qualquer forma de comunicação não oral; a formulação da lei é clara – “palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público”, nos termos da alínea a), do n.º 1, do art. 199.º. Para melhor entendermos este conceito de “palavras não destinadas ao público”, diz-nos COSTA ANDRADE que as mesmas são aquelas que “(…) segundo a vontade de quem as profere, se destinam a círculos de pessoas individualizadas ou numericamente determinadas ou ligadas por vínculos recíprocos, o mesmo valendo para as palavras que objetivamente só são acessíveis a tais círculos de pessoas.”250

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE amplia o âmbito da tipicidade penal. Segundo este autor,

“também não releva o conteúdo das palavras proferidas, sendo indiferente que as palavras transmitam ou não um discurso lógico ou um pensamento pessoal de quem as proferiu ou sejam compreendidas pelo agente. É ainda irrelevante o modo como a palavra é proferida, podendo ser ela dita num monólogo, num discurso, numa conversa, numa cantiga ou

249 Ibidem.

250 Cfr. ANDRADE, Manuel da Costa. Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal – Uma Perspetiva

127 numa declamação. Por fim, é irrelevante se as palavras foram ditas durante o sono ou em estado de embriaguez ou intoxicação.”251

A este propósito importa salientar que o n.º 1, do art. 199.º, que temos vindo a analisar, não acautela a autenticidade das palavras ditas ou escritas, pelo que não encontra, pelos menos nesse normativo legal, previsão expressa a ilicitude das manipulações efetuadas. Mas cremos que o poderá ser através do crime de difamação, praticado através de meios que facilitem a sua divulgação, ao abrigo dos arts. 180.º e 183.º, ambos do C.P., sendo que o registo de conversações e a sua posterior divulgação através de um telemóvel ou gravador, é um meio de publicidade das palavras registadas, e poderá ser criminalizado sempre que implicarem ofensa à privacidade.

De salientar ainda que não são penalmente tutelados o registo e a gravação de palavras proferidas pelo próprio autor das mesmas, por não conterem, sem si mesmas, qualquer “(…) relevância típica (…).”252

A lei pretende, portanto, salvaguardar aquilo que se disse, independentemente do contexto em que as palavras são proferidas, sendo certo que, enquanto bem jurídico individual, é à pessoa que as proferiu, e só a ela, que cabe a decisão de as registar ou divulgar. Por isso, partilhamos do entendimento de COSTA ANDRADE quando refere que este direito à palavra tem que ser analisado sob duas perspetivas, ambas relacionadas com a legitimidade e a liberdade do portador, em consonância com a natureza subjetiva daquele direito: uma positiva que implica a legitimidade para recusar, “(…) que assiste ao portador concreto para, em total liberdade, autorizar a gravação e audição; (…)”, e uma negativa relacionada com a total liberdade para denegar a gravação e audição.253

Certo é que, apesar de o que se pretende é a salvaguarda da palavra escrita ou falada, e que aquilo que se disse e a quem se disse faça parte da livre disponibilidade da pessoa que as proferiu, a evolução tecnológica a que diariamente somos submetidos e em que vivemos leva-nos a considerar que existe, atualmente, uma certa deturpação da transitoriedade da palavra que acabamos de referir. Algo explicado face ao crescente desenvolvimento de aparelhos eletrónicos capazes de gravar conversas sem que estes sejam detetados visualmente, bem como o acesso arbitrário aos mesmos, que dificulta,

251 Cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Anotação ao art. 199.º, do C.P., em Comentário do Código Penal

à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008, p. 536.

252 Cfr. ANDRADE, Manuel da Costa. Anotação ao art. 199.º do C.P., em Comentário Conimbricense do

Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 1203.

128 senão mesmo impede, que aquilo que se disse e a forma como se disse possa ser algo momentâneo. Podemos, simplesmente, pensar que o telemóvel que hoje acompanha a maioria das pessoas, é um dispositivo eletrónico suscetível de captar conversações privadas, e sem que o recetor da conversa o divise.

A consagração legal do direito à palavra previsto no n.º 1, do art. 199.º, do C.P., vincula o ilícito criminal à utilização de um gravador, e só é considerada típica a gravação feita por um dos interlocutores de uma conversa,254 não o sendo a gravação feita pela própria pessoa que proferiu as palavras. Assim, são condutas típicas ofensivas do direito à palavra a gravação, utilização e permissão de utilização do registo da conversa, ao abrigo do disposto nas alíneas a) e b), do n.º 1. A gravação consiste num registo de som através de um instrumento técnico que possibilite a sua posterior audição, e a tipicidade da conduta afere-se pelo momento em que as palavras são proferidas, já que, a gravação posterior de um registo de conversa já existente integra a conduta típica da “utilização” dessa gravação. Por sua vez, a utilização da gravação assume a sua tipicidade quando ocorre a audição, mediante o mesmo instrumento que captou a conversa, pela mesma pessoa que procedeu à gravação ou por terceiros, excluindo, assim, a ilicitude de qualquer ofensa ao direito à palavra que não implique um gravador.”255

Revela-se pertinente salientar o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26/04/2012, que, inclusivamente, deu que falar nos meios de comunicação social por uma das partes ser um Advogado, e em que este, alegadamente, teria cometido o crime de gravações ilícitas. O caso remonta a 2006, relacionado com uma conversa tida entre um Advogado e o dono da “Bragaparques”, este último numa tentativa de suborno perante aquele. A conversa foi gravada com recurso a “(…) um instrumento, que teria um recetor, que funcionaria numa caneta, a qual transmitiria para um gravador, (…).”

Ora, sendo o arguido Advogado, “(…), nunca o mesmo poderia ter agido desconhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta, que o é, inquestionavelmente, (…)”. Entendemos que a gravação da conversa foi um meio de precaução da eventual prova da tentativa da prática de um crime, neste caso corrupção, que efetivamente se veio a

254 Neste sentido, cfr., ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de. Anotação ao art. 199.º, do C.P., em Comentário do

Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008, p. 537.

255 COSTA ANDRADE refere dois casos práticos: “Não pode ser punido pelo crime de gravações ilícitas o

jornalista que, sem consentimento, reproduz oralmente (na rádio ou na televisão) ou por escrito, no todo ou em parte, o teor de uma gravação, mesmo que ilicitamente produzida ou obtida. (…). Já seria diferente se

o jornalista fizesse ouvir a gravação “passando-a” aos microfones da rádio ou da televisão.” Cfr. ANDRADE,

Manuel da Costa. Anotação ao art. 199.º do C.P., em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 1209.

129 verificar, mas que, contudo, não logrou obter validade em sede de recurso, pese embora o Tribunal “a quo” ter considerado existir uma causa de exclusão da ilicitude dessa conduta. Igual entendimento do tribunal de primeira instância foi perfilhado pelo Ministério Público, o qual entendeu que a conduta do arguido não era considerada crime de gravações ilícitas, porque “as gravações não autorizadas (…) admitem causas de justificação para afastamento da ilicitude (…)”, e porque “só as gravações não autorizadas das conversas que são “expressão fugaz e transitória da vida” são puníveis, desse modo se protegendo a “confiança na volatilidade da palavra bem como na conexão das palavras entre si e com a respetiva atmosfera”, seguindo COSTA ANDRADE. Contudo a Relação de

Lisboa teve outro entendimento, referindo inclusivamente, que o tribunal de primeira instância agiu e decidiu contra as regras da experiência, “(…), dando como provado o que não o poderia ter sido.” Os Juízes Desembargadores sufragaram, no essencial, um Parecer daquele ilustre catedrático com o qual o Recorrente instruiu o recurso. Retira-se, daí, o seguinte: “(…) como é por demais evidente, à luz da própria letra da lei, não se verificam os pressupostos do invocado «direito de necessidade», excludente da respetiva ilicitude. Desde logo, o arguido não foi confrontado com uma qualquer situação de perigo. Este só existiria (se é que de perigo se poderia mesmo assim falar, nas apuradas circunstâncias) se ele próprio o criasse, indo ao encontro do assistente.”

Todavia, o arguido, bem sabendo que a conversa poderia cair numa tentativa de suborno, aceitou encontrar-se com o assistente, provendo-se, até, do respetivo equipamento necessário à gravação daquela conversa. “Isto é, o arguido criou intencionalmente o suposto «perigo» e foi ao seu encontro, embora devidamente precavido!” Entenderam também os Juízes Desembargadores que não havia, no caso em concreto, qualquer confronto ou sobreposição de direitos. “O “direito à palavra” e o “direito ao bom nome”, enquanto bens jurídicos pessoais que, aqui, hipoteticamente conflituariam, não merecem diferente valoração, (…).”

De facto, atendendo a que uma das partes era Advogado e, como tal, impreterivelmente estava obrigado a agir de acordo com a lei sabia, e não devia ignorar, que a gravação de conversa sem consentimento da outra pessoa era proibida. No entanto, agiu com manifesta precaução, sabendo, de antemão, que a conduta da outra pessoa também era proibida, porque tentou a prática de um crime. Ora, o Advogado, munido dessa gravação, mais não fez do que a entregar às respetivas autoridades competentes no sentido de incriminar e identificar o autor do ilícito. Mas os Juízes Desembargadores não tiveram a mesma opinião, e cremos que foi até por força das funções forenses que exercia, que o

130 arguido foi condenado, tendo sido revogada a decisão do Tribunal “a quo”, já que, “(…), também não se pode dizer que ao lesado (assistente) deva ser imposto suportar o sacrifício do seu «direito à palavra» para se salvaguardar o direito do arguido ao “bom nome”, (…).”256

Da mesma forma que estão excluídas as formas de comunicação não oral, também não têm relevância e, por isso, estão excluídas da previsão legal, a natureza e o contexto das palavras proferidas pelo autor da gravação, não gozando, assim, da tutela penal.

O ilícito penal consuma-se e esgota-se na simples gravação ou audição, sem o consentimento da pessoa que proferiu as palavras; o que está em causa é a palavra em si. Somos da opinião de que o âmbito da conversa tida com alguém, bem como a respetiva natureza e conteúdo das palavras proferidas, numa situação hipotética em que as mesmas são registadas à revelia de quem as está a proferir, pode levar a situações desfavoráveis e até prejudiciais e, como tal, não podemos desperdiçar a ideia de que se a gravação tiver registado algo particularmente grave, ela possa ser tida em consideração para eventual procedimento criminal. É diferente se o registo da conversa é a confissão inequívoca da prática de um crime, ou se estamos apenas perante uma conversa banal, sendo certo que neste último caso não existe interesse em registar o que se disse para depois divulgar. Mas a situação muda de cenário no primeiro caso, quando é feita uma confissão da prática de um crime, porventura numa conversa até puramente vulgar, mas, sem que o agente se aperceba da gravação da mesma. Podemos ter aqui um elemento probatório que comprova a prática de um crime e, ainda, a identificação de quem o cometeu, e confiamos ser válida a sua admissibilidade como meio de prova em prol de princípios como a realização da justiça e a descoberta da verdade material, face a um direito à tutela jurisdicional efetiva na perseguição e punição do agente infrator.

Situação diferente ocorre também quando o conteúdo da gravação diz respeito a assunto do foro íntimo ou privado e, portanto, ofensivo do direito à reserva da intimidade da vida privada. A este respeito importa evocar a diferença supra assinalada entre a nossa lei penal e os restantes ordenamentos jurídicos europeus.257 Ou seja, sempre que se fala num

256 Cfr. Ac. do TRL, de 26/04/2012, proc. n.º 914/07.7TDLSB.L1-9 (Relator Almeida Cabral), disponível

em

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a42615ca8751fdc1802579f00054ec98? OpenDocument

257Foi referido que, contrariamente ao nosso ordenamento jurídico que autonomiza os direitos à palavra e à

imagem do direito à intimidade sobre a reserva da vida privada, separando e consagrando expressamente o crime de gravações e fotografias ilícitas e o crime relacionado com a devassa da vida privada, em alguns países a que fizemos alusão, como a Espanha e a França, o legislador relaciona e estabelece um vínculo entre aqueles direitos, mas não os individualiza. Vide supra, pp. 117 e ss.

131 atentado à imagem ou à palavra, estamos perante uma ofensa à intimidade, porque aqueles dois direitos fazem parte integrante do direito à intimidade, e a gravação ou captação daqueles elementos são apenas meios ou instrumentos capazes de ferir a privacidade de alguém; a palavra e a imagem apenas serão acauteladas quando ocorrer violação da intimidade ou privacidade.

COSTA ANDRADE tem um entendimento mais rigoroso a respeito desta questão

relacionada com o conteúdo das palavras proferidas. Segundo este autor, “tanto é proibida a gravação de conversas que versem sobre segredos ou coisas de privacidade/intimidade, como de conversas sobre negócios ou futilidades. E quer versem sobre coisas lícitas, quer sobre coisas ilícitas, mesmo criminais. No extremo, (…) a palavra falada é protegida mesmo que verse sobre coisa nenhuma. É igualmente indiferente o fim que se quer atingir com a gravação (…).”258

Sem prejuízo de posteriormente voltarmos a falar desta questão relacionada com o direito à imagem, mais concretamente com a prova admissível em processo penal, trazemos aqui alguns acórdãos proferidos pelos Tribunais Superiores, que se têm confrontado com casos que envolvem não só a eventual ofensa ao direito à palavra e à intimidade, mas também, a colisão que resulta do confronto daqueles direitos com uma efetiva e eficaz realização da justiça penal.

Revela-se, assim, pertinente destacar a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/09/2011, que, embora relacionado com a captação de imagens por sistemas de videovigilância, aplica analogicamente o mesmo regime ao direito à palavra. Os Juízes Conselheiros, alertaram para a gravidade da infração que se tentou provar com a gravação de conversas entre particulares, só podendo o direito à palavra ser limitado se o crime for de tal forma grave e lesivo que não possa ficar comprovado de outra maneira. Como salientam: “Na verdade, estamos em crer que a admissão como valoração deste tipo de prova de gravações entre particulares depende da gravidade do delito que se investiga ou se tenta provar. No caso de um delito grave deve dar-se a primazia ao interesse na descoberta da verdade mas, quando o delito for menos grave, deve prevalecer o interesse privado seja ele o direito à intimidade, o direito à imagem ou o direito à palavra.” Mais, o Supremo Tribunal de Justiça considerou, ainda, não existirem razões para preterir a eficiência da justiça penal e até a proteção da vítima pela proteção da palavra quando esta consubstancia práticas criminosas, porque “a proteção acaba quando aquilo que se

258 Cfr. ANDRADE, Manuel da Costa. Anotação ao art. 199.º do C.P., em Comentário Conimbricense do

132 protege constitui a prática de um crime.” Considera, assim, ainda que contrariamente a alguma “sedimentação teórica entre nós existente”, de o direito à palavra, e também o direito à imagem “(…) não são, nem devem ser sacralizados como núcleo essenciais da vivência pessoal, e da comunidade, que se sobreponham a todo e qualquer tipo de ponderação de outros valores.” 259

Mas outros arestos são igualmente pertinentes trazer à discussão, porque revelam, sobretudo, não só a acuidade do tema, por envolver direitos consagrados constitucionalmente, mas também a atualidade do mesmo.

Assim, indo ao encontro do entendimento recalcado pelos Juízes Conselheiros em 2011, a Relação de Coimbra, em 24/02/2016, concluiu igualmente que o registo de conversas que retrata práticas criminosas tem de ceder em confronto com a proteção da vítima e a realização da justiça penal. “(…), O direito privado nestes casos, tem de se submeter ao interesse público da prossecução da justiça penal.”260

Referimos que, nos termos da alínea b), do n.º 1, do art. 199.º, do C.P., é punível a utilização ou permissão da utilização de gravações de palavras proferidas por outra pessoa, mesmo que licitamente produzidas. Sobre esta introdução legislativa temos que, forçosamente, recuar no tempo até à reforma do Código Penal de 1995. De facto, a alteração da disposição sistemática relativamente ao crime de gravações e fotografias ilícitas face ao crime sobre a devassa da vida privada, autonomizando, deste modo, o direito à privacidade dos direitos à palavra e à imagem, foi reforçada com a reforma de 1995, que consagrou o regime atual do art. 199.º.

Assim, o anterior art. 179.º, consagrava que “quem, sem justa causa e sem consentimento de quem de direito: a) gravar palavras proferidas por outrem e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; b) utilizar ou deixar utilizar por outrem as gravações a que se refere a alínea anterior; c) fotografar, filmar ou registar aspetos da vida particular de outrem, mesmo que neles tenha legitimamente participado; d) utilizar ou permitir que se utilizem as fotografias, os filmes, ou os registos indevidamente obtidos, a que se refere a alínea anterior”, era punido com prisão até um ano e multa até 60 dias. Porém, da forma assim redigido, a doutrina encontrou um entrave difícil de solucionar, pelo facto de a

259 Cfr. Ac. do STJ, de 28/09/2011, proc. n.º 22/09.6YGLSB.S2 (Relator Santos Cabral), disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/25cd7aa80cc3adb0802579260032dd4a? OpenDocument

260 Cfr. Ac. do TRC, de 24/02/2016, proc. n.º 2638/12.4TALRA.C1 (Relator Cacilda Sena), disponível em

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/4bd77bb02c09e75b80257f6800512c33 ?OpenDocument

133 alínea b) daquele artigo remeter para a conduta prevista na alínea a) do mesmo dispositivo legal. Ao fazer a referida remissão colocava-se, assim, a questão de saber se apenas era punida a utilização de uma gravação ilicitamente obtida ou se também podia ser ilícita a gravação de conversas sem consentimento da pessoa visada, ainda que licitamente produzida. Ora, com a reforma de 1995, já referimos que foi acrescentado às alíneas b), do n.º 1 e b), do n.º 2, do art. 199.º as expressões “mesmo que licitamente produzidas” e “mesmo que licitamente obtidas”, respetivamente, adotando assim a teoria dualista, segundo a qual, ainda que a captação de conversas e imagens seja licitamente obtida, a sua utilização ou permissão para o seu uso, sem consentimento, é ilícita.261