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Na luta pela autonomia, Van Der Ploeg (2008, 2009) mostrou a importância para a agricultura familiar camponesa do desenvolvimento de uma base de recursos, materiais e imateriais, para os processos de coprodução que permitem a emergência de experiências inovadoras. De fato, este tipo de agricultura é intensamente inserida em um território (WANDERLEY, 1996), onde se estabelece várias trocas entre o/a agricultor/a e seu entorno biofísico e social. Nos estudos sobre o campesinato, os autores indicam existir uma sociedade de inter conhecimento por apresentar um conjunto de relações internas à comunidade bilaterais de conhecimento global (MENDRAS, 1978). Com as outras comunidades, mantem- se também relações de trocas sociais (e de outros tipos) mais ou menos intensas e diversificadas (MENDRAS, 1978) e se forma sociabilidade específica, que incluem laços familiares e de parentesco e outras relações com diferentes categorias sociais (WANDERLEY, 1996).

Comerford (2003), estudando os pressupostos sociais da construção de sindicatos de trabalhadores rurais da Zona da Mata de Minas Gerais, enfatizou estas características para a região. O autor ressaltou os termos “parentes, parentesco, família, gente, raça e troncos” para definir um campo importante de relações sociais nestas localidades e que podem ser traduzidas em “mapas” sociais em uma região relativamente extensa. Na maioria dos casos, existem interações de grande intensidade entre estes parentes devido a proximidade das áreas de moradia ou onde se planta roça ou ainda onde se “toca lavoura”. O autor fala de territórios de parentescos. Ele observou como algumas casas representam pontos de encontro com um fluxo cotidiano e incessante de parentes, vizinhos/as e amigos/as (COMERFORD, 2003).

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Nesta perspectiva, desenha-se uma espécie de rede mais ou menos dispersa de localidades familiarizadas (COMERFORD, 2003). É por meio destas redes informais sociais com suas relações internas e externas que os/as agricultores/as inovam (SMITH; BRAGDON, 2015; TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008), pois nestas redes de relacionamento, circulam e trocam novas ideias, práticas, conhecimentos, sementes etc. (SMITH; BRAGDON, 2015; VAN DER PLOEG, 2014). Isto foi observado com os/as agricultores/as pesquisados/as. Um exemplo de troca de conhecimento é o do agricultor terapeuta holístico G de 52 anos que testou na sua propriedade um biofertilizante (que é também uma calda contra fungos e invasores) que ele aprendeu na casa dos pais do afilhado da esposa dele: “Fui lá um dia lá passeando, visitar a casa da filha do [Agricultor T] [...] e aí eu, teve o senhor lá conversando, e falou, um senhor baixo de 60 anos” (Terapeuta holístico G, 52 anos). Neste mesmo sentido, o agricultor E de 31 anos começou a usar o “margaridão” como quebra-vento na horta depois de uma troca de mudas com um membro da sua família: “o margaridão foi a [cunhada] que me deu muda, ela me trouxe uma muda dela, do margaridão, e de um outro mato que eu plantei aqui, que o outro saiu, mas depois eu perdi ele, mas o margaridão está continuando” (Agricultor E, 31 anos).

Observou-se vários exemplos de trocas cotidianas de informações, produtos etc. entre membros da família e/ou vizinhos. Por meio destas redes informais, os/as agricultores/as experimentam e integram novas experiências de outros/as agricultores/as colegas, desenvolvendo soluções pragmáticas e contextualmente relevante para lidar com problemas imediatos (SMITH; BRAGDON, 2015). O agricultor G de 52 anos, que se identifica como terapeuta holítico, ofereceu novas soluções para seu cunhado frente a seu problema de pulgão. Sua esposa testemunha: “O [cunhado] da comunidade tinha problema com pulgão e perguntou ao [terapeuta holístico G], e ele respondeu para usar a urina de vaca, mas ele não acreditou e testou e funcionou” (Terapeuta holística H, 51 anos).

Nestas relações do cotidiano, geralmente a conversa não é suficiente: “tem que ver para crer”. Essa expressão foi dita ou pressuposta por vários/as agricultores/as entrevistados/as. O “ver” permite convencer até agricultores/as considerados/as convencionais de experimentar novas práticas. Voltando na experiência da urina de vaca contra os pulgões que o agricultor terapeuta-holístico G transmitiu para seu cunhado, ele complementa:

Isso é assim, a gente pega experiência com um, a gente depois passa experiência para outro. Igual o cunhado mesmo que a [agricultora terapeuta-holística D] falou que não acreditava, ele falava para mim assim “Rapaz, pode parar com isso, não vira nada [...], vira nada não”, aí hoje ele já tá vendo diferença, entendeu? Ele trouxe há pouco dias um tambor ali de 60L, enchi de urina e levou. Já trouxe outro tambor, e falou, enche para mim. Esse mesmo de colocar garapa e o leite, ele falou para mim

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você pode tirar urina para mim que vou comprar o leite e vou fazer. Falei não, vou fazer, arranjo para você não tem problema não. Quer dizer, ele já está interessado é que, entendeu? Ele está vendo que, às vezes só conversar não adianta, tem que fazer experiência para a pessoa ver que. Tem um outro primo que mora na frente ali mesmo, casado com a irmã da [agricultora terapeuta-holística D], ele também usava muito veneno, aí começou a ver que o que a gente estava fazendo estava dando certo, já começou a pegar ideia e ele também onde ele passa onde tem veneno, ele começa a passar mal, aí, ele pegou e falou comigo, não vou usar mais veneno (terapeuta holítstico G, 52 anos).

Nesta mesma perspectiva, o agricultor agroecológico C de 32 anos contou que, depois que sua experiência de SAF de árvores no cafezal deu certo, um vizinho começou também plantar árvores no cafezal e seu primo plantou bananeiras. Assim, além das conversas, o “ver” é muito importante nas trocas de experiências do cotidiano.

Outro aspecto destas redes sociais informais fundamental no âmbito das trocas de experiências é que elas estão baseadas em relações de confiança e reciprocidade. No seu estudo, Comerford (2003) caracteriza estas relações sociais entre familiares a princípio como de confiança, ajuda mútua, respeito, tolerância, intimidade, compartilhamento e responsabilidade (COMERFORD, 2003). Isto permite aos/às agricultores/as trocar novas técnicas e experiências e também compartilhar os riscos das experimentações (SMITH; BRAGDON, 2015). Assim, nestes territórios de parentescos, além das numerosas conversas cotidianas, estas fortes interações se traduzem em uma densidade de arranjos de cooperação como a prática de troca de dias, mutirão, trocas de produtos da roça (COMERFORD, 2003). O agricultor E de 31 anos comenta sobre as relações de cooperação entre seus irmãos e as trocas de experiências que resultam disto:

A gente fica muito junto, por mais que eles não participam, a gente sempre participa com eles, então a gente trabalha junto, faz muitas atividades juntas, então a gente acaba passando o que que a gente tem experiência fora, passa para eles, [...] sempre está repassando, tanto repassando como estar trabalhando juntos, mostrar as experiências que a gente vai fazer (Agricultor E, 31 anos).

O agricultor terapeuta holístico G de 52 anos enfatiza a importância destas trocas tanto materiais (produtos como a urina de vaca) quanto imateriais (as experiências e os conhecimentos):

Tem muita gente que coloca isso aqui como forma de ganhar dinheiro, entendeu? eu já não, já não, eu gosto de compartilhar com os outros, que da mesma maneira que os outros talvez compartilham com a gente, eu também gosto de a pessoa interessa fazer, né? Tem que viver, igual eu tento, pessoal do antigamente, antigamente eles viviam mais na base de troca né? O feijão, vamos supor você tinha feijão, o outro não tinha, tinha outro material, trocava, então, hoje mesma coisa essas experiências aí, na base de trocas (terapeuta holítico G, 52 anos).

Assim, esta rede de relações sociais sustentam os processos de inovação e de produção de novidades (MATTE; NIEDERLE; SCHNEIDER, 2017). As diferentes experiências identificadas durante a pesquisa revelam a importância destas relações sociais e

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espaços de aprendizagem do cotidiano como fontes de ideias e de conhecimentos para a experimentação de novas técnicas, pois eles representam 19% dos espaços de aprendizagem levantados para a experimentação das 153 técnicas levantadas (Figura 11, página 96).

No entanto, é importante ressaltar que nestes espaços do cotidiano acima apresentados, vê-se emergir novos vetores nas trocas de informações e experiências que vão além das relações sociais de parentesco ou de vizinhança. Trata-se da televisão e da internet essencialmente. São novos canais de informação que são utilizados, principalmente, por jovens agricultores/as, cotidianamente. As informações destes novos canais são misturados àquelas relatadas pela rede de relações sociais de familiares. Por exemplo, o agricultor T de 55 anos começou a experimentar a técnica da silagem depois de ter visto em uma propriedade da comunidade, mas também porque ele viu passar esta técnica na TV. Um outro agricultor, o produtor rural AE de 40 anos, contou sobre uma experiência que ele viu na TV e que tentou fazer na sua propriedade, trata-se de caixas cheias em escada:

Uma vez eu vi isso aí lá no, no [programa de TV], que eles fizeram uma lá em cima no alto, aí eles começaram, o pessoal onde plantava por baixo plantava roça, né? O milho, aí depois eles fizeram, até o milho fica mais bonito porque vai infiltrando a água ali, então eu vi foi assim, o [programa de TV], ouvi falar aqui, entendeu? Aí o dia que eu comprei o terreno, eu resolvi fazer lá, que lá desce muita água né? Não, vou fazer para segurar um pouco ela (produtor rural AE, 40 anos).

A presença da internet também emerge como um novo canal de informação para experimentar novas técnicas, em particular para os mais jovens. Os agricultores AB de 26 anos e AA de 18 anos pesquisaram vídeos em canais na internet para montar em casa versões artesanais com materiais recicláveis para a confecção de um carneiro hidráulico para revitalizar uma nascente e um comedor para as galinhas para facilitar o trabalho diário. São diversos assuntos que os/as agricultores/as vão pesquisar na internet: funções e nomes de certas plantas, consórcios de plantas benéficas para uma certa atividade, técnicas para fazer sua própria farinha de osso, as podas de árvores etc. O agricultor W de 24 anos resume: “hoje em dia uma coisa que ajuda muito é a tecnologia, né? Coisas que você tem acesso à internet, em todo lugar, né? Qualquer dúvida que você tiver, a respeito do campo, você pode pesquisar na internet” (Agricultor Familiar, 24 anos). Sendo assim, estes vetores de informações do cotidiano podem complementar as informações trazidas pelas relações familiares ou de vizinhança. O agricultor AB de 26 anos resume esta ideia ao falar da origem do conhecimento das suas técnicas agroecológicas: “a televisão, internet, às vezes alguma prática que alguém faz, a gente vê, acha interessante” (Filho de agricultor-encanador industrial AB, 26 anos).

Estes novos vetores de informações podem ser também novos meios de obter as informações de agricultores/as colegas, familiares e amigos, para além dos encontros físicos

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em casa ou na lavoura anteriormente ressaltados, por meio de interações imateriais a partir de aplicativos. Nesta pesquisa, os/as agricultores/as enfatizaram diferentes tipos de uso dos aplicativos que são geralmente voltados a assuntos que facilitam a organização. No entanto, o agricultor E de 31 anos ilustra como os grupos desses aplicativos, no caso o grupo de Orgânicos, podem ajudar a achar soluções e experimentar novas técnicas. Trata-se de um meio que permite mais interações entre agricultores/as, além dos encontros do cotidiano:

Inclusive, eu tava aqui já com outro cafezinho novo, que eu plantei que eu te falei, tava um besourinho, um besourinho comendo as folhas do café, furava as folhas do café, aí peguei, postei no grupo, eu achei que era uma coisa mais complicado mais séria, aí postei no grupo, ai falou que era normal o cafezinho dar aquilo, mandou alternativa, um tava jogando urina de vaca ou alguma calda, eu peguei e usei urina de vaca, também era uma alternativa que tinha me falado, uma alternativa boa que a gente tem (Agricultor E, 31 anos).

No entanto, várias limitações foram enfatizadas pelos/as agricultores/as pesquisados/as sobre esses novos canais de informações. Primeiramente, o acesso à internet ainda é muito limitado em várias zonas rurais. Os que usam pouco internet ou não usam internet, relataram esse fato. Em segundo lugar, no que se refere aos programas de TV, o agricultor terapeuta holístico G de 52 anos avisa: “vou te falar verdade, na TV, eles costumam passar mais o que interessam eles, né? Para ajudar a gente, às vezes tem hora que não passa muito não” (terapeuta holítico G, 52 anos). Isto significa que é preciso ser crítico às informações oriundas da televisão. Alguns/as agricultores/as, que não tem atenção nestas questões, podem experimentar novas técnicas que não são sustentáveis, a exemplo do agricultor AF de 75 anos que experimentou uma técnica com materiais recicláveis e um formicida como armadilha para combater a formiga “Cortadeira”, vistas na TV.

Esse risco é o mesmo com as informações da internet. O agricultor AA de 18 anos que está acostumado pesquisar na internet conta que não acha as informações que ele precisa sobre algumas técnicas agroecológicas, mas sim sobre técnicas convencionais:

É mais porque a gente às vezes pesquisa, mas não acha que aquilo que a gente, é mais ligado ao convencional, mas igual depois na EFA, tem muito material também, aí então a gente, eu deixo um pouco de pesquisar na internet e vou com meus cadernos começando a ver (Agricultor AA, 18 anos).

Alguns agricultores/as não percebem o risco contido nestas informações. Por exemplo, o agricultor AE de 40 anos, que se auto denomina produtor rural, ainda coloca as falas dos/as técnicos/as e, portanto, os conhecimentos a eles associados, em uma posição superior do que as de outros/as agricultores/as, na imagem do discurso implemntado pela Revolução Verde. Portanto, a hierarquização dos saberes ainda está muito presente no inconsciente deste agricultor. O produtor rural AE comenta sobre isto falando dos vídeos da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural (EPAGRI), que ele assiste para aprender

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novas técnicas: “eu pesquiso, porque tem internet mesmo, porque, às vezes, quer fazer uma coisa, em vez de ir lá no fulano, né, longe, às vezes, ele vai saber menos do que eu até, vou ali que você viu que é só técnico, né? que você viu explicando lá” (Produtor Rural AE, 40 anos). Esta citação aponta também para outro tipo de risco que é geralmente ligado ao uso destes vetores de informações: a substituição das relações sociais em espaços do cotidiano físicos por interações virtuais via aplicativos ou por buscar informação pela internet em vez de perguntar aos/às agricultores/as familiares (como revela a citação anterior). Neste sentido, dois agricultores mais velhos (Agricultor AL de 53 anos e AF de 54 anos) comentaram que não gostam de usar internet, nem aplicativos, nem celular porque, para eles, são perda de tempo. Eles acham muito importante encontrar as pessoas e aprender com os mais velhos. Para o agricultor AF, é importante: “deixar o celular e ouvir mais”.

“Ouvir mais” remete também à ideia de abrir sua mente para outros tipos de saberes e, portanto, ir além dos seus círculos de relações sociais familiares para construir novas experiências.

6.3 A REDE AGROECOLÓGICA ARTICULADA POR UM MOVIMENTO PARA