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No capítulo quatro desta dissertação, foi enfatizado a importância do reconhecimento dos conhecimentos locais dos/as agricultores/as para se pensar a produção de novidades agroecológicas. No entanto, para conduzir as reais transformações das técnicas e dos sistemas, diferentes autores como Girard (2014) e Tourdonnet e Brives (2018) mostram a necessidade de hibridar os saberes locais e empíricos com os conhecimentos científicos.

De maneira geral, a ideia é trazida por Santos (2002) com a sociologia das ausências e das emergências. Frente às lógicas dominantes que produzem não existência e que ocultam a grande diversidade de práticas e experiências, o autor aponta para a articulação das temporalidades, escalas e também dos saberes como necessidade para se chegar a uma totalidade. Por isso, Santos (2002) elaborou o conceito de ecologia para revelar a diversidade e múltiplas práticas sociais, ao tratar, por exemplo, da ecologia dos saberes contra a hegemonia dos conhecimentos científicos modernos. De fato, essa articulação entre saberes é importante para sair da lógica dominante do pensamento ocidental e não criar outro tipo de dominação. Morin (2011) chama isso de reforma do pensamento, do espírito e da sociedade.

Nesta perspectiva, tanto Santos (2002) quanto Morin (2000) e Marcos Terena, no livro de Morin (2000), enfatizam a importância de todos os saberes, que sejam globais ou locais, e das suas interações no objetivo de uma mudança do pensamento. É preciso um diálogo entre os saberes e valores de cada civilização contra a crise da modernidade: é a hora “do dar e do receber” (MORIN, 2000, p. 28), ou como disse Terena, “a ciência do homem branco precisa conversar com a ciência indígena” (MORIN, 2000, p. 21) para o bem estar da humanidade. Vários outros atores (ALTIERI; TOLEDO, 2010; CAPORAL, 2009; GLIESSMAN, 2002; MORIN, 2011) apontam para a necessidade de integrar os conhecimentos científicos e métodos modernos aos conhecimentos camponeses tradicionais, ou seja, considerar a complementaridade dos conhecimentos para a construção de novos saberes que alimentam o processo de transição.

Isto corresponde à segunda ruptura epistemológica segundo Santos (1989), ou seja, o reencontro da ciência com o senso comum através do dialogo e da superação da distincção entre os diferentes saberes, na busca de um novo paradigma que supera as dicotomias criadas pelos princípios da modernidade. De fato, o autor destaca uma estratégia de transição para

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uma sabedoria que seria desde então reflexiva, prática, emancipadora e democrática pela ampla distribuição das competências cognitivas para a constituição de uma ciência pós moderna (SANTOS, 1989).

Esta articulação entre os conhecimentos locais e globais é um fator relevante na produção de novidades agroecológicas (OOSTINDIE; VAN BROEKHUIZEN, 2008; WARNER, 2008). Citando Freire (1985, p. 39): “numa concepção não mecanicista, o novo nasce do velho através da transformação criadora que se verifica entre a tecnologia avançada e as técnicas empíricas dos camponeses”. Isso expressa a importância das duas formas de saberes técnicos para a geração de novidades técnicas. De fato, a produção de novidades pode tomar origem na combinação de diferentes recursos, procedimentos técnicos e tipos de conhecimentos (OOSTINDIE; VAN BROEKHUIZEN, 2008). Os conhecimentos e experiências dos/as agricultore/as têm certas forças, mas apresentam também algumas fraquezas que podem ser complementadas por pesquisas convencionais, no momento que estas respondam a questões importantes da vida real do/a agricultor/a (STUVIER; LEEUWIS; VAN DER PLOEG, 2004).

Norgaard (1989), ao focar nas premissas epistemológicas da Agroecologia, explica que o conhecimento que ele chama de “ocidental” não é rejeitado, pois, este conhecimento, baseado na visão mecanicista do mundo, deu muitas explicações que permitiram entender os sistemas tradicionais. No entanto, o autor ressalta a importância de tomar em consideração as explicações dos povos tradicionais. Dessa forma, a união e o diálogo dos conhecimentos tradicionais e modernos é uma base epistemológica da Agroecologia (NORGAARD, 1989; TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008) e é essencial no processo de mudanças (PETERSEN, 2015). Segundo a visão agroecológica de Norgaard (1989), os dois tipos de conhecimentos, tradicionais e da ciência agrícola convencional, podem se unir para melhorar ambos agroecossistemas tradicional e moderno.

O estudante-experimentador-técnico S de 21 anos, através de uma reflexão sobre a Agroecologia, apoia esta ideia tanto da importância da diversidade de conhecimentos e métodos quanto da união destes diferentes conhecimentos para resolver problemas e desafios:

A construção de conhecimentos, as aprendizagens, as experimentações, para mim, isso tudo é Agroecologia, porque ela traz em si a forma de você conduzir esses processos, que é um processo não é de pegar aquilo e pegar e transferir aquilo, mas é algo assim, eu tenho um conhecimento, você tem outro conhecimento, como a gente pode unificar isso, então, ao mesmo tempo, a gente tem diversidade, a gente tenta trabalhar isso para consolidação de um objetivo, de um propósito, [...] você tá sempre renovando, ressignificando, [...] e a gente traz os elementos como, é um movimento, então, a gente trabalha como um movimento, é uma prática, então a gente precisa de experimentar também e é uma ciência porque a gente constrói, a gente experimenta, a gente precisa anotar isso também, esses relatos de experiência,

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vejo que a Agroecologia é isso, esse papel de agregar, de somar as ideias e a diversidade e problematizar o que a gente tem, tá tendo desafios e solucionar essas problemáticas, né? (Estudante-experimentador-técnico S, 21 anos).

Esta ideia de somar a diversidade se encontra também na construção do saber ambiental que se fundamenta em um projeto interdisciplinar ambiental no qual conflue a multiplicidade de saberes sobre diversos problemas (LEFF, 2010). Para o autor Leff (2010), que trata da epistemologia ambiental, este diálogo de saberes ultrapassa o conhecimento científico e corresponde a um encontro de formas de conhecimento legitimadas por diferentes matrizes de racionalidade-identidade-sentido (LEFF, 2010).

Nesta perspectiva de articulação de diferentes formas de conhecimentos, vale ressaltar a distinção entre as formas de conhecimentos considerados tácitos ou explícitos como o fazem Schneider et al. (2009). Os autores se apoiam em Nonaka, Konno e Toyama (2001) ao explicar que os conhecimentos explícitos são os que podem estar expressos em palavras e estarem transferidos sob forma de dados, de manuais, de fórmulas científicas (tal como os conhecimentos científicos), ao contrário dos conhecimentos tácitos que são difíceis para formalizar e, então, para comunicar. No entanto, os conhecimentos tácitos estão baseados nas ações cotidianas, experiências contextualizadas, ideias, valores e crenças sobre o mundo dos indivíduos (LEEUWIS; VAN DEN BAN, 2006; SCHNEIDER et al., 2009; TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008), como os conhecimentos locais construídos pelos/as agricultores/as (ver capítulo 4 desta dissertação). Assim, os conhecimentos explícitos ou científicos se adquirem por capacitações e profissionalização, enquanto os conhecimentos tácitos se adquirem pela experiência cotidiana e pela forma de viver e de observar (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008). Assim, os processos de criação de novos conhecimentos são dinâmicos e autotranscendentes como processos em espiral de conversão entre estas duas formas de conhecimentos de acordo com Nonaka, Konno e Toyama (2001, apud SCHNEIDER et al., 2009).

Neste contexto de união de conhecimentos e, em particular, de produção de novidades, dois processos estão principalmente em jogo. De um lado, trata-se de um processo de recombinação dos diferentes tipos de conhecimentos, por um trabalho coletivo entre vários atores que leva à coconstrução de uma novidade de acordo com Faure et al. (2018), e Nonaka e Takeuchi (1995) citado por Oostindie e Van Broekhuizen (2008). Schneider et al. (2009) falam de processos de coprodução entre agricultores/as, científicos/as e experts. A “compostagem líquida” (cujo elemento de base é a “toranja”) do lavrador AG de 64 anos é uma ilustração deste processo de recombinação de conhecimentos. O lavrador AG explica

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como ele criou este biofertilizante através da combinação dos conhecimentos científicos sobre as propriedades da “toranja” e da sua própria experimentação:

Você viu aquela laranja grandona, não viu? Pois é, essa laranja é uma laranja, o nome dela é Toranja e ela só é laranja para fazer doce. Como ela, ela, ninguém gosta de fazer doce dela, foi um dia, a [sua filha] pegou e olhou as propriedades que tem, que ela tem. E aí, ela pegou, nessas propriedades, que ela achou, ela achou nela, tudo, ela achou tudo: fósforo, zinco, cobre, magnesiano, manganês, achou tudo. Então ela leu isso tudo para mim, encontrou [...] tudo o que estou falando, [...] ela possuiu essa propriedade. Aí, fiquei bem caladinho, aí vou usar esse trem aí, e esse trem está madurando e caindo no chão ali, aí peguei, comecei jogar dentro do tambo, e joguei água lá dentro e começou fermentar, e começou a fermentar, e eu falei, e aí eu comecei (Lavrador AG, 64 anos).

Do outro lado, trata-se de um processo de internalização por meio do qual são absorvidos conhecimentos exógenos para estarem transformados em conhecimentos tácitos e locais segundo Nonaka, Konno e Toyama (2001, apud SCHNEIDER et al., 2009). Faure et al. (2018) dão exemplos deste processo como a adaptação de uma inovação exógena em momentos diferentes (depois de ter sido rejeitado por agricultores/as em um dado momento e estar retomado por eles em outro momento) ou em lugares diferentes.

Estes processos de aprendizagem estão diretamente associados à criação de conhecimentos contextuais, fontes muito importantes nos processos de produção de novidades (OOSTINDIE; VAN BROEKHUIZEN, 2008). No capítulo quatro desta dissertação, foi visto como a produção de novidades era um processo altamente localizado, de adaptação às particularidades locais, portanto, ela é baseada no contexto local. Por isso, foi ressaltado a importância dos conhecimentos locais dos/as agricultores/as. No entanto, uma novidade é produto de conhecimentos locais, mas também de conhecimentos contextuais, que correspondem à adaptação de conhecimentos exógenos ao local de uso da novidade (como os conhecimentos da ciência moderna) para seu contexto local (OOSTINDIE; VAN BROEKHUIZEN, 2008). Com isso, fala-se que a produção de novidades é altamente associada com o conhecimento contextual, ao contrário da inovação, no sentido dado por Oostindie e Van Broekhuizen (2008) e Van Der Ploeg et al. (2004), que é uma expressão de conhecimentos codificados (científicos).

Assim, reconhecer esta pluralidade de formas de conhecimentos e suas diferenças significa reconhecer a pluralidade de maneiras de conhecer e de conceber a realidade. Isto implica repensar as relações entre os diferentes atores, tal como os/as agricultores/as, pesquisadores/as e técnicos/as, para levar em consideração as diferentes maneiras de problematizar, analisar e avaliar situações (TRÉBUIL et al., 2018). Integrar as perspectivas dos diferentes atores é essencial para construir conhecimentos contextuais e novidades agroecológicas (BERTHET et al., 2016; LEEUWIS; VAN DEN BAN, 2006). Isto requer uma

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rede de atores territoriais com relações fortes (OOSTINDIE; VAN BROEKHUIZEN, 2008) e o desenvolvimento de métodos de aprendizagem específicos. Estes dois elementos permitem reforçar os processos de recombinação e de integração anteriormente mencionados, por meio do fortalecimento das capacidades para descontextualizar e, em seguida, recontextualizar os diferentes atores (TOURDONNET; BRIVES, 2018).

Na próxima subseção, aprofundará-se esses elementos, em particular, as estratégias metodológicas usadas pela Agroecologia no tripé ensino-pesquisa-extensão para favorecer a criação de espaços de aprendizagem social. Esses são importantes para a articulação dos saberes e de produção de novidades agroecológicas. Por meio deles, dará-se outros exemplos de recombinação e de integração de saberes da ciência e dos/as agricultores/as.