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TECNOLOGIAS DOS IMPÉRIOS ALIMENTARES: INSTRUMENTOS DE DOMINAÇÃO E DE DESCONEXÃO COM O LOCAL

É sobre os fundamentos da ciência moderna que se alicerçou a modernização da agricultura, primeiramente na Europa e nos Estados Unidos, e mais tarde nos países em desenvolvimento por meio da implementação do modelo da chamada Revolução Verde a partir da metade do século XX. De fato, esses modelos se baseiam em paradigmas científicos guiados por uma racionalidade formal ou instrumental, que se quer neutra, absoluta, universalizante e portadora da verdade (SANTOS, 1988, 1989).

Sob o modelo da Revolução Verde, a produção de conhecimento tinha (e ainda tem) um enfoque cartesiano e reducionista, centrado nos processos químicos e mecânicos, e é baseada no método indutivo, das relações causas-efeitos (COSTA, 2017; GOMES, 2005). Os experimentos são repetidos para submeter os resultados aos testes estatísticos que permitem controlar a validade dos dados, e assim, obter, um conhecimento válido, e uma verdade inquestionável (COELHO, 2005; GOMES, 2005). Os testes estatísticos e as análises quantitativas mudaram os métodos de pesquisa e se tornaram referência na forma de fazer pesquisa após a década de 1950 no Brasil (COELHO, 2005).

Esses experimentos são também realizados sob o princípio de separabilidade do objeto de pesquisa do seu ambiente, priorizando os ambientes artificialmente construídos e controlados: em laboratórios, casas de vegetação ou em campo sob algumas condições de controle (COELHO, 2005; STUVIER; LEEUWIS; VAN DER PLOEG, 2004). Com esta concepção, cada parte do problema é tratada de forma isolada, reduzindo complexidade e eliminando a possibilidade de entender as relações entre as partes (CAPORAL, 2007b). Assim, as ciências convencionais agrárias adotam uma abordagem analítica atomística e reducionista (CAPORAL, 2007b). Elas se especializam cada vez mais em objetos de estudo específicos sem fazer a relação com seu ambiente de origem (biofísico e social) (STUVIER; LEEUWIS; VAN DER PLOEG, 2004), e em áreas de conhecimentos distintas tratada de forma compartimentada sem fazer ligações entre si. Para Costa (2017, p. 14):

A entomologia, fitopatologia, nutrição vegetal são abordadas como se não tivessem nenhuma relação entre si, e com o manejo do agroecossistema. Receita-se agroquímicos de forma desprovida de um instrumental necessário ao entendimento dos complexos processos bióticos que ocorrem na natureza, em condições de um equilíbrio dinâmico e instável (COSTA, 2017, p. 14).

Esse tipo de ciência compartimentada e sob controle experimental, chamada por Coelho (2005) de ciência-experimento, produz conhecimentos que podem ser transformados

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em mercadorias. Deste processo, surgem as tecnologias, entendidas por Coelho (2005), como um produto caracterizado por seu encantamento que transforma o valor de uso, das relações e desejos, em valor de troca.

Seguindo os princípios capitalistas de transformação e de dominação da natureza, e de acumulação de capital, a ciência moderna produz conhecimentos para a criação de inovações tecnológicas, com o objetivo de responder às demandas do capital industrial, intensificando o ritmo da produção capitalista e a capacidade de produção (COSTA, 2017; FERREIRA, 2016). Assim, esse modelo de agricultura está associado ao desenvolvimento de pacotes tecnológicos “universais” realizados por universidades, centros de pesquisas e demais estruturas, que formulam “receitas” que são vendidas como se pudessem ser empregadas em qualquer lugar pelo/a agricultor/a (ANDRADES, 2007; COSTA, 2017).

Para além do que esse padrão tecnológico foi desenvolvido nas regiões temperadas, ele foi transferido nos países do Sul, tropicais, sem levar em conta as características edafoclimáticas e sócioeconômicas destas regiões. No Brasil, país de grande diversidade ecológica e sócioeconômica, sua difusão foi feita de forma homogênea (COSTA, 2017). A implementação deste padrão tecnológico visa à maximização da produtividade e do lucro, em curto prazo, segundo o referencial conceitual e analítico da ciência moderna: cartesiano e reducionista. Assim, o modelo convencional da agricultura se baseia em variedades de alta produtividade que dependem da aquisição de pacotes químico, mecânico e energético (COSTA, 2017). Nessa perspectiva de busca de otimização da produtividade agrícola, Gliessman (2002) enfatiza principalmente o uso da lavoura intensiva, do monocultivo, do uso de fertilizantes sintéticos, da irrigação, dos controles químicos dos organismos indesejáveis e da manipulação genética, excluindo as externalidades (GLIESSMAN, 2002).

A difusão e a adoção dessas tecnologias “capital-intensivas” (COSTA, 2017; LACEY, 2014) geram sistemas de produção cada vez mais especializados e artificializados, traduzindo-se em um distanciamento da natureza, um rompimento com a dinâmica de manutenção dos equilíbrios ecológicos e com as práticas e conhecimentos locais (CAPORAL; COSTABEBER, 2007a). Com isto, a lógica “racional” (no sentido ocidental) e industrial superou a lógica natural. Os ciclos naturais e os processos ecológicos foram rompidos, a energia do sol foi substituída pelo petróleo (POLLAN, 2006; ROBERTS, 2008; VAN DER PLOEG; MARSDEN, 2008), o que reduziu altamente a sustentabilidade socioambiental dos agroecossistemas, sua diversidade biológica e também cultural (CAPORAL, 2007c; CAPORAL; COSTABEBER, 2007a).

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Assim, tanto Van Der Ploeg (1992) quanto o IAASTD (2009) destacam múltiplas desconexões dos elementos estruturantes que faziam da agricultura uma especificidade, em particular no que se refere à localidade e diversidade. Pode-se enfatizar a desconexão da agricultura com a natureza, os fatores de crescimento naturais sendo substituídos por fatores artificiais e, de maneira mais ampla, da natureza com a sociedade, associada ao distanciamento cada vez maior do/a agricultor/a com o/a consumidor/a devido ao alongamento das cadeias alimentares. Em suma, percebe-se que a ciência e o desenvolvimento tecnológico associado aos interesses do capital são responsáveis por essas desconexões que remoldam a agricultura (VAN DER PLOEG, 1992) e fazem desaparecer as localidades nos sistemas agroalimentares.

Em suma, a especialização dos sistemas de produção, realizada a partir do paradigma científico moderno reducionista e das tecnologias “capital-intensiva”, provocou desconexões do/a agricultor/a com a sua localidade (ecossistema, conhecimento, relações sociais etc.) e perda de diversidade. Portanto, autores como o repórter das Nações Unidas (2010) De Shutter e Van der Ploeg et al. (2004) enfatizam como esse esquema gera um bloqueio, cada vez maior, na produção de novidades pelos/as agricultores/as.

Como a Revolução Verde se associa à tecnologia “capital-intensiva”, podemos associa-la também à tecnologia do quarto sentido enunciado por Vieira Pinto (2005). De fato, o autor discute os vários significados do termo “tecnologia”, que pode ser o significado etimológico de teoria da técnica, que pode ser confundido à técnica em um sentido popular da palavra, que pode ser entendido como o conjunto de todas as técnicas que se dispõe em uma determinada sociedade em um sentido genérico e global, ou ainda, que pode ser entendido como a ideologização da técnica. Nesse último sentido, é possível apontar a tecnologia, como ideologização da técnica, ou seja, ela é vista como uma entidade transcendente e divina que permitiria solucionar os problemas de desenvolvimento. Ela é utilizada intencionalmente pelos centros metropolitanos como instrumento de dominação para seus interesses econômicos e políticos (VIEIRA PINTO, 2005).

No entanto, a tecnologia disfarça suas intenções ideológicas considerando a tecnologia puramente a projeção aplicada da ciência, como se esta não fosse igualmente ideológica. Esta concepção converge com a de Marcuse (1964), citado por Brüseke (2010), na sua crítica da técnica moderna, que vê através da tecnologia, um instrumento de dominação do ser humano pelo ser humano por meio da dominação da natureza, cuja origem se encontra fundamentada no método científico.

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Isto converge também para a ideia de Coelho (2005) do surgimento da tecnologia na transformação da técnica e da ciência em mercadoria. De fato, através da tecnologia, ocorreu uma articulação entre o conhecimento científico e a produção de mercadorias com o advento do capitalismo (LEFF, 2010). Pelo uso da epistemologia da ciência moderna, os centros dominadores utilizam a estratégia de absolutizar a tecnologia, que corresponde a um corte das relações de tempo e espaço: a tecnologia proporciona uma espécie de milagre (VIEIRA PINTO, 2005), ou seja, aumentar a produção e a produtividade em qualquer lugar e em qualquer tempo. Essa estratégia é combinada com outro raciocínio utilizado pelos “ideólogos da dominação” que desvaloriza as técnicas tradicionais qualificadas de simplesmente empíricas, e que resultam do processo de “ensaios e erros” sem demonstrar a sistemática aplicação das leis naturais (VIEIRA PINTO, 2005).

Essas justificativas são muito utilizadas hoje em dia pelos “Impérios Alimentares” que criaram um novo, global e poderoso regime alimentar no contexto da globalização (VAN DER PLOEG, 2009). Os “Impérios Alimentares” orientam a produção dos alimentos e a distribuição dos benefícios da cadeia alimentar global segundo seus interesses econômicos usando o conhecimento científico moderno (VAN DER PLOEG, 2008). De fato, diante dos limites das tecnologias agrícolas existentes, os “Impérios Alimentares” justificam a nova geração de tecnologias como solução milagrosa para a crise agrícola “moderna”, que ajuda a salvar o meio ambiente e a pobreza no caso das sementes transgênicas (ROBERTS, 2008) ou como “mal necessário” no caso dos agrotóxicos.

Para Caporal (2007c), ocorreu uma readequação dos mecanismos da Revolução Verde, que reincorporou ao fracassado modelo novas tecnologias e processos. O autor dá exemplos de processos como a “intensificação verde”, ou ainda a “Revolução Verde-Verde” ou “Dupla Revolução Verde”, associados a uma corrente ecotecnocrática da sustentabilidade (CAPORAL, 2007d, 2007e). Isto consiste em incorporar elementos de caráter ambientalista ou conservacionistas com tecnologias e processos menos agressivos ao ambiente nas práticas agrícolas convencionais. No entanto, as bases do modelo convencional não são modificadas (CAPORAL, 2007e).

Com estas novas estratégias, os “Impérios Alimentares” usam as argumentações mecanicistas, positivistas e reducionistas da ciência moderna para legitimar e apresentar estas novas tecnologias criadas como neutras (exemplo do uso dos agrotóxicos) (PETERSEN, 2015). Lacey (2007) mostra, através do exemplo dos transgênicos, que as pesquisas usam as estratégias de abordagem descontextualizada, desassociando o objeto de estudo dos contextos

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humano, social e ecológico nas quais estão inseridos e utilizados. Sobre os transgênicos, o autor enfatiza (LACEY, 2007, p. 33):

Transgênicos não são apenas objetos biológicos, mas também socioeconômicos: são, na maior parte, mercadorias ou detentores de direitos de propriedade intelectual. Não levar em consideração o contexto socioeconômico impede que os benefícios, os riscos e as alternativas sejam investigados de forma apropriada (LACEY, 2007, p. 33).

Para o mesmo autor, a agricultura capital-intensiva é ligada à hegemonia da “tecnociência comercialmente orientada”, uma ciência e tecnologia que é subordinada a valores particulares: do progresso tecnológico, do capital e do mercado (LACEY, 2015a). Quando os interesses privados da ciência dominam, a pesquisa científica, conduzida com estratégias descontextualizadas, dá prioridade à produção de inovação tecnocientífica que permitem reforçar esses valores (LACEY, 2014).

Assim, como enfatiza Vieira Pinto (2005) sobre a tecnologia como ideologização, os setores dominantes que desenvolvem essas tecnologias e que associam a elas concepções de curadores dos males do mundo, como os transgênicos e a pobreza acima mencionada, levam um viés ideológico que contribui a inocentar os setores dominantes e a manter o status-quo. Para o autor (VIEIRA PINTO, 2005, p. 231–232):

Os protagonistas destas ideias não esperam nem desejam que haja qualquer modificação real no sistema de produção social para eles vantajoso, pretendem maior consolidação do poder dos grupos dominantes atuais, que acreditam só ter a ganhar com novas técnicas a serem empregadas no futuro (VIEIRA PINTO, 2005, p. 231–232).

No domínio das tecnologias agrícolas e dos alimentos, esta afirmação corrobora com as ideias trazidas por Roberts (2008). De fato, o autor mostra como as pesquisas sobre as tecnologias agrícolas e dos alimentos são geralmente financiadas pelas grandes empresas ou se o financiamento da pesquisa agrícola for público, ela é geralmente direcionada para a agricultura convencional, ou seja, não são a favor de uma real mudança do sistema agroalimentar. Ao contrário, favorecem a sua inércia.

Em consequência, as mudanças do sistema alimentar são muito difíceis devido ao status-quo mantido pelos discursos dos dominadores. Ou seja, dos “Impérios Alimentares” que impõem sua própria visão hegemônica do sistema agroalimentar e seus próprios regimes sociotécnicos dominantes e, portanto, mantém o vínculo de subordinação cultural e econômica. Isto é ainda mais acentuado quando as relações entre o comércio e progresso tecnológico é forte, pois as instituições científicas tendem a não considerar as outras alternativas enfatizadas por metodologias diferentes (LACEY, 2007). Assim, as tecnologias

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inovadoras geradas pela ciência moderna visam reforçar os regimes sociotécnicos dominantes e não a provocar uma mudança.

Na justificativa do progresso, os regimes sociotécnicos reinantes atuais, resultantes da modernização da agricultura da segunda metade do século XX, impõem as regras, as tecnologias disponíveis e os mecanismos institucionalizados aos/as agricultores/as através de discursos que desvalorizam o trabalho cotidiano e os conhecimentos dos/as agricultores/as. Portanto, os/as agricultores/as ficam cada vez mais dependentes desses regimes dominantes e desconectados do seu ambiente local. Diante dessas reflexões, na próxima parte, interessará- se em compreender sob quais formas e métodos os regimes dominantes conseguiram impor suas ideias e pacotes tecnológicos aos/às agricultores/as e quais seus impactos.