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2. AS RELAÇÕES DE TRABALHO NO BRASIL E A EFETIVAÇÃO DE DIREITO

2.1. As Relações de Trabalho no Período Colonial

Os primeiros relatos de trabalho no Brasil são de aproximadamente 30 anos após o seu descobrimento, período em que efetivamente inicia a colonização na terra recém-apropriada por Portugal, conforme salienta Caio Prado (1976, p. 33): “não eram passados ainda trinta anos da agricultura, e já a escravidão dos índios se generalizava e instituía firmemente em toda parte”.

Este primeiro período da História brasileira não representa grandes transformações ou movimentos nas formas de trabalho. Prova disso é a ausência de manifestações e legislações sobre este tema, e tampouco há referência da existência de grupos de trabalhadores.

Neste período, a ocupação do território fez surgir a primeira grande atividade econômica no Brasil – o plantio da cana-de-açucar –, que demandava a necessidade de grande quantidade de mão de obra, o que não era encontrado nestas terras, ou, pelo menos, não com a disposição para o trabalho conforme desejavam os portugueses, uma vez que o habitante local – indígena – não possuía os atributos necessários a esta condição, conforme conclui Simonsen:

Os indígenas no Brasil, com mentalidade inteiramente primitiva, muito distanciados do tipo de civilização, que gera a contínua ambição de riquezas, não trabalhavam voluntariamente em qualquer ocupação fixa; nem tampouco possuíam, para isso, a necessária resistência física (2005, p. 164).

Não contando então com a possibilidade de trabalho por disposição dos indígenas, surge, ainda conforme o autor, o trabalho forçado:

Só restava pois, aos lusitanos, a obtenção de mão-de-obra necessária à organização econômica da Terra de Santa Cruz, no trabalho forçado. Recorreram à escravidão indígena, inteiramente dentro da mentalidade da época, pois no sul da Europa ainda era intenso o comércio de escravos provenientes do tráfico africano e das guerras religiosas; e em vastas zonas da Europa Central e do Norte, imperava a servidão da gleba (SIMONSEN, 2005, p. 164).

Percebe-se que o trabalho forçado, então comum, foi objeto de tratado internacional apenas após a criação da OIT, com a Convenção 29 do ano de 1930, que estabelecia a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas

formas. Trata-se de regra firmada quase 400 anos depois do período histórico aqui retratado, e que demonstra o longo tempo demandado para que os povos conseguissem estabelecer um regramento único para o tema.48

A despeito, porém, do longo tempo para a consecução de uma regra específica sobre o tema escravidão, salienta-se que a OIT formatou uma norma internacional (1930) anterior à própria Declaração Universal (1948).

O processo de escravização de silvícolas gerou diversos conflitos, além de doenças que assolaram estes povos que ainda não tinham mantido contato com outros, ocasionando o desaparecimento de significativo número de índios. Segundo Carvalho, “Calcula-se que havia na época da descoberta cerca de 4 milhões de índios. Em 1823 restava menos de 1 milhão. Os que escaparam ou se miscigenaram ou foram empurrados para o interior do país” (2002, p. 20).

A dificuldade na manutenção destes escravos índios,49 contudo, estabeleceu obstáculos para a ampliação das lavouras de cana-de-açúcar e determinou a necessidade de buscar escravos em outros locais.

Estes novos escravos foram trazidos da África, como assevera Fausto (1996, p. 28). A partir de 1570 a Coroa incentivou a importação de escravos africanos, além de estabelecer medidas contra a escravização dos índios; todavia apenas em 1758 a Coroa determinou a libertação definitiva dos indígenas.50

Percorrendo a Costa Africana, ainda no século 15, os portugueses começaram o tráfico de africanos, que se demonstraram mais compatíveis com os objetivos buscados. De acordo com Fausto:

48 Também faz referência ao tema a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que trazia

em seu artigo I: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos; e, especificamente, no artigo IV: Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

49 Em seu Tratado da Terra do Brasil, Pero de Magalhaes Gândavo, em 1570, trata da dificuldade

encontrada, naquele momento: “Os moradores desta costa do Brasil todos têm terras de sesmarias dadas e repatriadas pelos capitães da terra, e a primeira coisa que pretendem alcançar são escravos para lhes fazerem a granjearem suas roças e fazendas, porque sem eles não podem sustentar a terra: e uma das coisas porque o Brasil não floresce muito mais, é pelos escravos que se alevantarão e fugirão para suas terras e fogem cada dia: e se estes índios não forem tão fugitivos e mudáveis, não tivera comparação a riqueza do Brasil” (SIMONSEN, 2005, p. 165).

50 No essencial, porém, a escravidão indígena fora abandonada muito antes pelas dificuldades

Os colonizadores tinham conhecimento das habilidades dos negros, sobretudo por sua rentável utilização na atividade açucareira das ilhas do Atlântico. Muitos escravos provinham de culturas em que trabalhos com ferro e a criação de gado eram usuais. Sua capacidade produtiva era, assim, bem superior à do indígena (1996, p. 29).

Fica estabelecida, então, a utlização em grande escala de mão de obra escrava africana nas atividades de trabalho no Brasil. Estima-se que, em aproximadamente 300 anos, entre 1550 e 1855, foram trazidos 4 milhões de negros para o Brasil, sendo basicamente este grupo formado por jovens do sexo masculino.

As condições imputadas aos negros eram de trabalho escravo e, em troca, ganhavam apenas o necessário para sua subsistência. Não se fala em qualquer tipo de compensação pelo trabalho ou regras para sua realização. Aliás, neste momento, o negro encontrava-se inferiorizado em direitos se comparado ao indígena, que já contava com uma legislação que o protegia do trabalho escravo, conforme Fausto:

Lembremos também o tratamento dado ao negro na legislação. O contraste com os indígenas é nesse aspecto evidente. Estes contavam com leis protetoras contra a escravidão, embora, como vimos, fossem pouco aplicadas e contivessem muitas ressalvas. O negro escravizado não tinha direitos, mesmo porque era considerado juridicamente uma coisa e não uma pessoa (1996, p. 31).

Os negros, então escravos, assim como ocorrera com os índios, tentavam contrapor-se a esta situação, porém encontravam dificuldades maiores que os índios, que, nativos, tinham o conhecimento do lugar, o que lhes dava vantagem em fugas, porém os escravos africanos também se opuseram. Conforme salienta Fausto (1996, p. 30) “[...] enquanto os índios se opuseram à escravidão, os negros a aceitaram passivamente. Fugas individuais ou em massa, agressões contra senhores, resistência cotidiana, fizeram parte das relações entre senhores e escravos [...]”.

O século 19 apresenta a decadência na utilização do trabalho escravo no Brasil. Especialmente por pressão da Inglaterra, pela falta de oferta de escravos e o consequente acréscimo nos valores cobrados pela mão de obra escrava, o tráfico de negros escravos africanos diminui significativamente. Em âmbito interno, este preço caro do escravo ainda gerou negócios entre a Região Sudeste, que precisava de mão de obra, e a Região Nordeste que, em crise, vendia estes trabalhadores, mas esta situação foi apenas temporária e prévia ao processo abolicionista que estava em curso.

Sobre esta forma primeira de trabalho refere-se Marx, tratando da falta de requisitos, na escravidão, que estão presentes na relação do trabalho assalariado e o capital:

O que tem de ser explicado é a separação entre essas condições inorgânicas da existência humana e a existência ativa, uma separação somente completada, plenamente, na relação entre o trabalho-assalariado e o capital. No relacionamento de escravidão e de servidão não há tal separação: o que acontece é que uma parte da sociedade é tratada pela outra como simples condição inorgânica e natural de sua própria reprodução. O escravo carece de qualquer espécie de relação com as condições objetivas de seu trabalho. Antes, é trabalho em si, tanto na forma de escravos como na de servo, situado entre outros seres vivos como condição inorgânica de produção, juntamente com o gado ou como um apêndice do solo. Em outras palavras: as condições originais de produção surgem como pré-requisitos naturais, como condições naturais de

existência do produtor, do mesmo modo que seu corpo vivo, embora

reproduzido e desenvolvido por ele, não é, originalmente, estabelecido por ele, surgindo, antes, como seu pré-requisito; seu próprio ser (físico) é um pressuposto natural não estabelecido por ele mesmo (MARX, 1986, p. 82-83).

Deste tipo de trabalho torna-se impossível extrair relatos de direitos dos trabalhadores, modos de organização ou respeito ao labor, pois, conforme salienta Marx (1986), uma parcela da sociedade da época reconhecia a outra apenas como uma condição inorgânica, e tal situação era natural. Ao escravo não eram dadas condições objetivas de trabalho, sendo efetivamente considerados como o conjunto do processo de produção, tanto como o gado ou o solo.

Naquele momento não se debate direitos ou boas condições de trabalho, fato que, segundo Carvalho, se perpetuou ao longo da História do Brasil.

Se o escravo não desenvolveu a consciência de seus direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogâncias de poucos correspondem o desfavorecimento e a humilhação de muitos (2002, p. 53). Não há como se referir aos direitos humanos ou fundamentais dos trabalhadores, para este período da História brasileira, pela inexistência de condições que possibilitassem a sua efetivação. Esta impossibilidade estava vinculada à ausência de uma cultura de direitos, pelo controle social de uma elite que não tinha nenhum interesse neste tema. Mesmo fora do território brasileiro, temas como direito das pessoas no trabalho não eram comuns; o direito se torna efetivo a partir da Revolução Industrial.

Apesar da inexistência de direitos às pessoas que trabalhavam, não se pode justificar a prática pelo costume ou pelo entendimento que se tinha à época, qualificando os seres humanos conforme suas especificidades, pois, apesar de dirferentes, todos eram humanos. Arendt (1989, p. 9-10) assevera: “a pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá”. A forma como se apresenta o trabalho ao homem segue a mesma regra, ou seja, mesmo em locais ou de maneiras diferentes, o trabalho impacta de modo similar o homem, sua vida e sua condição social, e condiciona sua existência.

Enfim, o Brasil Colônia teve como referência no comércio a produção externa, que era fundada no trabalho escravo de uma sociedade basicamente agrária e patriarcal. A grande propriedade rural era o centro dos acontecimentos e, assim, as pessoas que trabalhavam o faziam nas condições impostas, praticamente sem direitos. Esta realidade começa a mudar somente a partir do século 18, mas já politicamente embalada pela Primeira República.

Percebe-se que neste período já ocorre a Revolução Industrial,51 originariamente no Reino Unido e estendendo-se para a Europa e Estados Unidos, porém, no Brasil, ainda vive-se a cultura agrícola. As alterações de produção ocorrem tardiamente no país.

Nos países que se transformam pela Revolução Industrial, a alteração na forma de operacionalização do trabalho e, por consequência, das relações entre empresários e operários, trouxe a divisão do trabalho, a especialização52 e o aparecimento do proletariado, com jornadas de 14 a 16 horas diárias e sem perspectivas de desenvolvimento, conforme expõe Nascimento:

A imposição de condições de trabalho pelo empregador, a exigência de excessivas jornadas de trabalho, a exploração das mulheres e menores, que constituíam mão-de-obra mais barata, os acidentes ocorridos com os trabalhadores no desempenho de suas atividades e a insegurança quanto ao futuro e aos momentos nos quais fisicamente não tivessem condições de trabalhar, foram as constantes da nova era no meio proletário, às quais podem-se acrescentar também os baixos salários (2009, p. 15).

51 A Revolução Industrial teve início na segunda metade do século 18.

52 Na especialização, o trabalhador, reunido em grande número dentro do mesmo espaço, torna-se

responsável por apenas uma etapa do processo produtivo. Buscava-se na especialização maior produtividade (NASCIMENTO, 2009).

No Brasil os primeiros estabelecimentos fabris surgem em meados de 1840 e não eram resultado de um processo amplo de industrialização interno. Mesmo em um Brasil independente e Imperial, as formas de trabalho pouco se alteravam. Próximo a 1890, quando aparece quantitativamente um maior número de fábricas, o país ainda engatinhava em relação à Inglaterra, onde, um século antes, a Revolução Industrial tomou corpo. No entendimento de Foot e Leonardi,

Quando surgiram os primeiros estabelecimentos fabris no Brasil, a Revolução Industrial na Inglaterra já vinha se desenvolvendo há mais de meio século. O aparecimento de algumas fábricas no interior da sociedade escravista brasileira na década de 1840 não significava, em absoluto, que esses fatos primeiros estivessem prestes a se generalizar. Quando do ponto de vista quantitativo, o fenômeno se intensificou um pouco mais após 1888, ainda assim a indústria brasileira permaneceu extremamente embrionária se comparada com o processo que tivera início, um século antes, nas tecelagens do Lancashire53 (1982, p. 23).

Segundo o relato dos autores, estes estabelecimentos brasileiros eram de pequeno porte, tinham vida curta e possuíam características bem-distintas das que nortearam a indústria europeia, norte-americana e japonesa (FOOT; LEONARDI, 1982, p. 24).

As indústrias brasileiras, no final do século 18 e no 19, eram voltadas à fabricação de açúcar nos engenhos e também à mineração. Ainda, segundo estes autores, encontrava-se, em outros setores – monufatureiros –, o processo de industrialização, porém não ocupava espaço central na economia:

Durante este longo período colonial, uma série de outras atividades industriais – artesanais e manofatureiras – foram aqui desenvolvidas, porém todas elas com um caráter de atividade acessória, ocupando um papel secundário no conjunto da economia (FOOT; LEONARDI, 1982, p. 23). As alterações por que passaram as formas de trabalho contribuíram para estabelecer o rumo da História da própria humanidade. No caso brasileiro, por força de decisão internacional, o transporte de escravos deixou de ser alternativa viável e as pressões internas culminaram com a assinatura da Lei Áurea, que extinguiu a escravidão no Brasil e impactou de forma significativa a realização do trabalho no país.

53 Lancashire é uma localidade inglesa, um dos locais expoentes da Revolução Industrial, tornando-

Politicamente também o país passava por alterações, e a Primeira República brasileira estava sendo gestada. Estas alterações na estrutura de governo, na forma de trabalho, no fim da escravidão e no surgimento de um processo industrial, ainda que incipiente, alteraram as condições do trabalho principalmente pelo fim da utilização da mão de obra escrava e o ingresso do empregado.