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Capítulo II – Nicolau de Cusa e o amor: uma primeira aproximação

2. As relações entre ratio , intellectus e amor

2. As relações entre ratio, intellectus e amor

Tentemos, agora, responder à nossa segunda pergunta: o que quer realmente significar uma incapacidade do intelecto? Retomemos o contexto da

nossa investigação. Afirmamos que Nicolau de Cusa ao procurar um certo modo de

raciocinar sobre as coisas divinas, unia, neste processo de conhecimento, affectus e

intellectus. Afirmamos também que, se o afecto apenas aparecia em forma de

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M. S. de CARVALHO, «Das metamorfoses da possibilidade à possibilidade das metamorfoses. Nicolau de Cusa e a transformação da polémica ‘de aeternitate mundi’», in: J. M. ANDRÉ e M. ÁLVAREZ-GÓMEZ (Coords.), Coincidência dos opostos e concórdia: caminhos do pensamento em Nicolau de Cusa, Tomo I, p. 167, pp. 141-172 (Actas do Congresso Internacional em Coimbra e Salamanca, de 5 a 9 de novembro de 2001, Coimbra), Faculdade de Letras, 2001. O contexto em que a citação aparece não é, exactamente, o da nossa discussão, mesmo assim, parece-nos resumir perfeitamente o que até aqui apresentamos. Do mesmo autor, para o tema da linguagem enquanto “desconstrução”, nas pegadas da teologia negativa no neoplatonismo, veja-se: «Falar divinamente… O tema neoplatónico da ‘desconstrução’», in: Da natureza do sagrado..., op. cit., pp. 799-825.

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insinuação (nos Livros I e II), o intelecto, por seu lado, muitas vezes era apresentado como incapaz para a apreensão do Máximo absoluto. Nos parágrafos anteriores procuramos mostrar a ausência do amor como uma presença constante e importante. Todavia, essa presença da ausência precisaria unir-se a outros vestígios expressos no texto cusano para reafirmar a sua força. Ora, estes primeiros sinais, no nosso ponto de vista, dizem respeito, ao mesmo tempo, à incapacidade e à capacidade do intelecto. Antes de expormos esta aparente contradição, gostaríamos

de acrescentar que as poucas vezes em que o termo amor aparece nos dois primeiros

livros de A douta ignorância relaciona-se, como mostrámos no capítulo anterior

deste trabalho, à ideia de um certo movimento, como podemos ver no Cap. VII do livro II, onde é abordado o tema da Trindade e com ele o da possibilidade ou do poder; e, no memso livro, Cap. X, a abordagem recai sobre o espírito do universo e

com este expõe também a questão da conexão e da unidade20. Dito isto, passemos

ao intelecto.

Como podemos pensar a capacidade e a incapacidade do intelecto na sua relação com o amor? Poderá, realmente, essa relação ser um sinal da força

do amor em De docta ignorantia? Vejamos. É preciso esclarecer que as faculdades

mentais na obra que ora analisamos ainda não têm uma definição precisa, podendo o intelecto, por exemplo, ser compreendido tanto como a mente (na sua totalidade) quanto como uma instância dela. Assim, afirma o Cusano, no Cap. XII, que a natureza intelectual (a mente no seu conjunto) é a mais perfeita e a mais nobre que

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Cf. De docta ignorantia, ed. minor, Liber secundus, Cap. VII, 130: 1-9, p. 52: «Est deinde nexus contrahentis et contrahibilis sive materiae et formae aut possibilitatis et necessitatis complexionis, qui actu perficitur quasi quodam spiritu amoris motu quodam illa unientis. Et hic nexus determinata possibilitas a quibusdam nominari consuevit, quoniam posse esse ad actu esse hoc vel illud determinatur ex unione ipsius determinantis formae et determinabilis materiae. Hunc autem nexum a spiritu sancto, qui est nexus infinitus, descendere manifestum est». E também cf. IDEM, ibidem, Cap. X, 154: 1-7, p. 82: «Hic igitur spiritus creatus est spiritus, sine quo nihil est unum aut subsistere potest, sed totus iste mundus et omnia, quae in eo sunt, per ipsum spiritum, qui replet ‘orbem terrarum’, naturaliter id sunt conexive, quod sunt, ut potentia per eius medium sit in actu et actus eius medio in potentia. Et hic est motus amorosae conexionis omnium ad unitatem, ut sit omnium unum universum».

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pode existir nos seres humanos21. Por outro lado, este mesmo intelecto é

apresentado como uma das instâncias da mente, quando, por exemplo, é mostrado

juntamente com os sentidos e a razão como forma de apreensão das coisas22.

Mesmo assim, apesar daquela flutuação, já começa a delimitar-se nesta obra as diferentes faculdades mentais, bem como o direccionamento de uma supremacia do

intellectus frente à ratio23. Naturalmente esta supremacia está relacionada às

competências do intelecto que diferem das competências da razão24. Assim,

tentaremos percebê-las através das diferenças e/ou das gradações entre as várias faculdades humanas.

É certo que o De docta ignorantia não é o texto, por excelência,

para mostrarmos, com melhor coerência e sistematização, as diferenças entre ratio e

intellectus. Para um trabalho de tal envergadura precisaríamos abordar, no mínimo,

mais três textos do Cusano: o De conecturis, onde a distinção entre aquelas

faculdades é amplamente desenvolvida no plano das unidades mentais; o Idiota de

mente, não só pela metáfora sugerida da mente como medida enquanto mede as coisas, como também pela distinção que apresenta entre razão e intelecto; e o De visione dei, que chega mesmo a estabelecer uma gradação que vai do ser animal ao

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Cf. IDEM, ibidem, Cap. XII, 169: 1-13, p. 100. 22

Cf. IDEM, ibidem, Liber primus, Cap. IV, 11: 1-12, p. 16. 23

Para a distinção entre ratio e intellectus, cf. IDEM, ibidem, Cap. XXIV, 76: 1-13, p. 98; cf., também, Liber tertius, Cap. VI, §§ 215, 216, 217, pp. 40, 42.

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As diferenças entre ratio e intellectus na filosofia cusana, além de não serem ponto de discórdia entre os seus estudiosos, já foram muitas vezes apresentadas e discutidas. Por este motivo, não achamos que seja produtivo tornar a mostrá-las e, assim, limitamo-nos a referenciar, ao longo do texto, as obras cusanas em que aquelas diferenças aparecem, bem como a indicar estudos em que esse tema é abordado, por exemplo: M. C. MARTÍN, «El conocimiento intelectual de la “coincidencia de opuestos”», in: J. M. ANDRÉ e M. ÁLVAREZ-GÓMEZ (Coords.), Coincidencia de Opuestos y Concordia. Los caminos del Pensamiento em Nicolás de Cusa, Tomo II, pp. 63-83 (Actas del Congreso Internacional en Coimbra y Salamanca, de 5 a 9 de noviembre de 2001), Salamanca, Sociedad Castellano-Leonesa de Filosofía, 2002; M. ÁLVAREZ-GÓMEZ, Die verborgene Gegenwart des Unendlichen bei Nikolaus von Kues, München und Salzburg, Verlag Anton Pustet, 1968 (mais directamente pp. 54-87), também do mesmo autor, «Die Lehre vom menschlichen Geist (intellectus/Vernunft) in den Sermones des Nikolaus von Kues», in: MFCG (31), 2006, pp. 211-243; J. M ANDRÉ et al. (Hrsg.), Intellectus und Imaginatio. Aspekte geistiger und sinnlicher Erkenntnis bei Nicolaus Cusanus, Amsterdam/Philadelphia, B. R. Grüner, 2006, Band 44; Por fim, K. KREMER, «Größe und Grenzen der Menschlichen Vernunft (intellectus) nach Cusanus», in: K. KREMER, Praegustatio naturalis sapientiae – Gott suchen mit Nikolaus von Kues, Aschendorff, Münster, 2004, pp. 179-224.

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ser espiritual, passando pelos espíritos mineral, vegetal e sensível até o intelectual25.

Apesar disso, pensamos que uma citação de A douta ignorância poderá contribuir,

suficientemente, para a consecução do nosso objectivo. Ei-la:

« Mas ele está acima de todas as coisas, de tal maneira que se deve necessariamente rejeitar aquilo que, por intermédio dos sentidos, da imaginação ou da razão, se atinge com meios materiais, a fim de chegarmos à inteligência mais simples e mais abstracta, em que todas as coisas são uma só, [...] A faculdade imaginativa, que não transcende o género das coisas sensíveis, não compreende que a linha possa ser triângulo, uma vez que estas figuras diferem entre si sem proporção, em termos quantitativos. Isso será, no entanto fácil para o intelecto»26. Como podemos notar, neste passo, o filósofo de Cusa além de apresentar as várias faculdades da mente, apresenta também as suas gradações e diferenças. Logo, os sentidos, a imaginação, a razão e o intelecto vêem as coisas de

maneiras diferentes, mas, mesmo assim, são capazes de apreendê-las27. Os sentidos

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Não é preciso dizer que aquelas distinções e gradações são mostradas ao longo dos textos cusanos, seja nos contemporâneos ao De docta ignorantia seja nos escritos dos anos 50, ou ainda, como podemos ver, por exemplo, num texto de 1463 onde é dito: «IOANNES: Intelligo te nunc dicere quod anima est substantia incorporea et virtus diversarum virtutum. Nam ipsa est sensualitas. Est etiam ipsa imaginatio. Eadem etiam est ratio et intelligentia. Sensualitatem et imaginationem exercet in corpore. Rationem et intelligentiam extra corpus exercet. Una est substantia sensualitatis, imaginationis, rationis et intelligentiae, licet sensus non sit imaginatio nec ratio nec intellectus. Ita nec imaginatio aut ratio aut intellectus aliquid aliorum. Sunt enim diversi modi apprehendendi in anima, quorum unus alius esse non potest. Sic puto te dicere velle». Dialogus de ludo globi, h IX, Liber primus, 26: 10-18, p. 31. É interessante notar que neste livro as gradações são apresentadas no âmbito das virtudes: «CARDINALIS: Subtiliter moves differentiam exquirens sensitivae et vegetativae in homine et brutis. Et primum advertendum puto quod virtutes illae, scilicet vegetativa, sensitiva et imaginativa, sunt in virtute intellectiva hominis sicut trigonus in tetragono, ut bene dicebat Aristoteles. Sed trigonus in tetragono non habet suam trigoni formam, sed tetragoni. In brutis vero habet trigonus trigoni formam. Alterius igitur naturae est trigonus, alterius tetragonus. Sic et virtutes vegetativae, sensitivae et imaginativae, quae trigonum illum, áquiñ anima bruti dicitur, constituunt, sunt imperfectioris naturae quam in homine, ubi cum virtute intellectuali nobilissima et perfectissima tetragonum illum, qui anima hominis dicitur, constituunt. Inferiora enim in superioribus sunt secundum naturam superioris, ut vivere nobilius est in sensitiva quam vegetativa et adhuc nobilius in intellectiva, sed nobilissime in divina natura, quae est «vita viventium»». IDEM, ibidem, 38: 1-15, p. 43-44.

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«Sed ipsum super omnia illa est, ita quod illa, quae aut per sensum aut imaginationem aut rationem cum materialibus appendiciis attinguntur, necessario evomere oporteat, ut ad simplicissimam et abstractissimam intelligentiam perveniamus, ubi omnia sunt unum, [...] Imaginativa, quae genus sensibilium non transcendit, non capit lineam posse triangulum esse, cum improportionabiliter ista in quantis differant. Erit tamen apud intellectum hoc facile». De docta ignorantia, ed. minor, Liber primus, Cap. X, 27: 11-15, p. 36 e Cap. XIV, 37: 3-6, p. 52. ANDRÉ, trad., p. 20 e p. 29.

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têm a capacidade de apreender as coisas sensíveis ou visíveis. A imaginação limita-se às coisas finitas, oferecendo ao intelecto imagens deste âmbito. A razão tem uma competência mais elaborada do que aquela dos sentidos, pois, além de ser capaz de perceber as coisas visíveis, é, de igual modo, capaz de fazer comparações, classificações, enumerações, enfim, todas as competências que estão subordinadas a um procedimento discursivo e, por isso, também é responsável pela identificação, discriminação e nomeação das coisas. O intelecto, por sua vez, ultrapassa o plano

discursivo da razão e, através de um procedimento intuitivo, de uma visio

intellectualis28, vê o que o conhecimento sensível não consegue perceber, o que a imaginação não consegue ultrapassar e o que o conhecimento racional não consegue estabelecer, apesar de todas as suas habilidades, porque o intelecto vê a partir do sentido da coincidência. Desta forma, na segunda parte da citação, o místico alemão diz que para atingirmos o Máximo absoluto devemos rejeitar o que, através dos sentidos, da imaginação e da razão, alcançamos com meios materiais. Logo, o que o intelecto vê, além daquilo que é visto pelos sentidos e pela razão, é que todas as coisas são uma só, ou seja, ele atinge algo em que «[...] a linha é triângulo, círculo e esfera, em que a unidade é trindade e vice-versa, em que o acidente é substância, em que o corpo é espírito, o movimento repouso e assim sucessivamente»29.

Quer isto dizer que ele atinge aquilo que nenhuma outra instância

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Para um estudo desta expressão, cf. B. H. HELANDER, Die ‘viso intellectualis’ als Erkenntnisweg und -ziel des Nicolaus Cusanus, Uppsala, Almqvist & Wiksell International, 1988. Especialmente as páginas 59-105. Também, W. BEIERWALTES, Visio facialis, sehen ins Angesicht. Zur Coincidenz des endlichen und unendlichen Blicks bei Cusanus, München, Verlag, Heft 1, 1988. O MFCG (18), 1989, dedicado ao tema da visão de Deus traz este mesmo estudo de Beierwaltes com algumas pequenas modificações. No entanto, o texto de 1988 (que estamos utilizando) é mais completo, pois traz, ainda, uma IV parte e um apêndice sobre Nicolau de Cusa e Dürer. Veja-se também sobre o tema da visão, do mesmo autor: «Visio Absoluta oder absolute Reflexion, Cusanus», in: Visio Absoluta – Reflexion als Grundzug des göttlichen Prinzip bei Nicolaus Cusanus, Heidelberg, Carl Winter, 1978, pp. 144-175.

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«[...] linea sit triangulus, circulus et sphaera, ubi unitas sit trinitas et e converso, ubi accidens sit substantia, ubi corpus sit spiritus, motus sit quies et cetera huiusmodi». De docta ignorantia, ed. minor, Liber primus, Cap. X, 27: 15-18, p. 36. ANDRÉ, trad., pp. 20-21.

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consegue atingir, a saber, a coincidentia oppositorum30. As diferenças entre ratio e

intellectus são mostradas, ainda, por exemplo, no Cap. II (Livro I) quando o Cusano afirma que se esforçará para investigar Deus, de modo incompreensível, acima da

razão humana31 e no Cap. IV ao dizer que o intelecto não pode combinar os

contraditórios por via da razão, pois esta situa-se muito longe daquela força infinita32. Por fim, no Cap. XXIV (do mesmo livro), ao falar da capacidade de nomeação das coisas por parte da razão, diz ser esta muito inferior ao intelecto, uma vez que a imposição dos nomes feita pelo movimento da razão não consegue

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Sobre o tema da coincidentia oppositorum veja-se o artigo de E. BERTI, «Coincidentia oppositorum e contraddizione nel De docta ignorantia I, 1-6», in: G. PIAIA (a cura di), Concordia Discors - Studi su Niccolò Cusano e l’umanesimo europeu offerti a Giovanni Santinello, Padova, Editrice Antenore, 1993, pp.107-127. Ali o autor mostra algumas teorias acerca da coincidência dos opostos, bem como insiste na ideia de que Nicolau de Cusa não supera o Princípio de não-contradição: «Ció che risulta dall’esame dei primi capitoli del De docta ignorantia, dunque, da un lato è il fatto che il Cusano intende esplicitamente violare, o superare, il principio di non contraddizione e dall’altro il fatto che in realtà non lo viola, perché prescinde dalle condizioni indicate nella formulazione di quest’ultimo affinché se possa parlare di vera e propria contraddizione, cioè non solo la contemporaneità delle predicazioni opposte, ma anche l’identità del loro «rispetto»», p. 126. Por sua vez, um artigo de Colomer afirma, citando J. Hommes, P. Wilpert e Stallmach: «Esta ideia da coincidência, central no pensamento cusano, não significa a negação do princípio de não-contradição; significa, antes, a constatação de que em Deus falha a possibilidade de o aplicar. É que na Sua infinita plenitude de realidade tudo é um e por isso não podemos dizer d’Ele: isto é ou não é. Como pôs em relevo J. Stallmach, na base da coincidência cusana reside um motivo ontológico, a que está essencialmente subordinado o motivo gnoseológico» E. COLOMER, «Nicolau de Cusa (1401-1464) um pensador...», art. cit., pp. 415-416. É certo que as diferentes interpretações não ficam por aí, Peña, por exemplo, apresenta a coincidentia oppositorum em prol da sua própria interpretação que resulta numa teologia copulativa. Cf. L. PEÑA, «Au-delà de la coïncidence des opposés – Remarques sur la théologie copulative chez Nicolas de Cuse», in: Revue de théologie et de philosophie (121), 1989, pp. 57-78. Polémicas à parte, indicamos, ainda, como forma de percorrer o conceito de coincidentia contradictoriorum ao longo dos textos cusanos, o livro de K. FLASCH, Die Metaphysik des Einen bei Nikolaus von Kues – Problemgeschichtliche Stellung und systematische Bedeutung, Leiden, E. J. Brill, 1973, mais especificamente o I capítulo da segunda parte, pp. 155-232. Do ponto de vista da nossa tese, o que mais importa é compreender as relações entre coincidência dos opostos e douta ignorância, pois, como afirma Colomer pautando-se na Apologia doctae ignorantiae: «Coincidência dos contrários e douta ignorância compendiam a atitude de Nicolau de Cusa perante o conhecimento de Deus e significam ao mesmo tempo a porta de entrada para aquilo que ele chama a «mystica theologia». E. COLOMER, «Nicolau de Cusa (1401-1464) um pensador...» art. cit., p. 416.

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Cf. De docta ignorantia, ed. minor, Liber primus, Cap. II, 5: 14-17, p. 10: «Hoc maximum, quod et deus omnium nationum fide indubie creditur, primo libello supra humanam rationem incomprehensibiliter inquirere eo duce, «qui solus lucem inhabitat inaccessibilem», laborabo». Grifo nosso.

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Cf. IDEM, ibidem, Cap. IV, 12: 18-23, p. 18: «Hoc autem omnem nostrum intellectum transcendit, qui nequit contradictoria in suo principio combinare via rationis, quoniam per ea, quae nobis a natura manifesta fiunt, ambulamus, quae longe ab hac infinita virtute cadens ipsa contradictoria per infinitum distantia conectere simul nequit». Grifo nosso.

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ultrapassar a oposição33. Posto isto, gostaríamos de fazer uma citação para concluir

essas diferenças e mostrar, uma vez mais, a supremacia do intelecto frente às outras

instâncias. Assevera Nicolau de Cusa:

«Não há dúvida de que o homem existe [dotado de] sentidos, de intelecto e de uma razão que está no meio de ambos e os une. Mas a ordem [das coisas] faz com que os sentidos estejam submetidos à razão e a razão ao intelecto. O intelecto não é do âmbito do tempo e do mundo mas desligado deles; os sentidos são do âmbito do mundo e estão sujeitos aos movimentos no tempo; a razão está como que no horizonte relativamente ao intelecto, mas no zénite relativamente aos sentidos, de modo que nela coincidam as coisas que estão no tempo e acima do tempo»34.

Depois disso, ele apresenta em mais dois parágrafos os desdobramentos da sua colocação, afirmando a incapacidade dos sentidos para as coisas sobre-temporais e espirituais; o imperativo ético da razão de reger as paixões do desejo, moderando-as à justa medida; concluindo com a ideia de que «se a razão domina os sentidos, é necessário ainda que o intelecto domine a razão, para que, acima da razão, pela fé actuada, adira ao mediador, a fim de que, assim, possa ser

atraído por Deus Pai à glória»35. Com isto, pensamos que conseguimos mostrar as

funções das faculdades mentais, bem como suas gradações e diferenças. Ademais, também relatamos as distinções entre ratio e intellectus36, demarcando, assim, a

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Cf. IDEM, ibidem, Cap. XXIV: 76: 4-8, p. 98:«Nomina quidem per motum rationis, quae intellectu multo inferior est, ad rerum discretionem imponuntur. Quoniam autem ratio contradictoria transilire nequit, hinc non est nomen, cui aliud non opponatur secundum motum rationis». Grifo nosso. Em outro passo deste mesmo livro, o Cusano chega mesmo a afirmar: «Hinc constat, quomodo evomere omnia imaginabilia et rationabilia necesse est philosophiam, quae unitatem maximam non nisi trinam simplicissima intellectione voluerit comprehendere». IDEM, ibidem, Cap. X, 29: 8-11, p. 38.

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«Non dubium hominem ex sensu et intellectu atque ratione media, quae utrumque nectit, exsistere. Ordo autem submittit sensum rationi, rationem vero intellectui. Intellectus de tempore et mundo non est, sed absolutus ab hiis; sensus de mundo sub tempore motibus subiectus exsistit; ratio quasi in horizonte est quoad intellectum, sed in auge quoad sensum, ut in ipsa coincidant, quae sunt infra et supra tempus». IDEM, ibidem, Liber tertius, Cap. VI, 215: 5-11, p. 40. ANDRÉ, trad., p. 151. 35

«si vero ratio dominatur sensui, adhuc opus est, ut intellectus dominetur rationi, ut supra rationem fide formata mediatori adhaereat, ut sic per deum patrem attrahi possit ad gloriam». De docta ignorantia, ed. minor, Liber tertius, Cap. VI, 217: 15-18, p. 42. ANDRÉ, trad., p. 153.

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Em um interessante estudo acerca do nascimento de Deus na alma, Reinhardt fala em três momentos que podem caracterizar aquele nascimento: o aspecto dinâmico da filiação divina; a tensão entre o agir divino e o agir humano; e a tensão existente entre a ratio e o intellectus. Sobre este último

93 superioridade do intelecto frente à razão.

Entretanto, não deixa de ser curioso que apesar de o intelecto conseguir alcançar a coincidência dos opostos37, e por isso ser apresentado como muito superior à razão, é, ao mesmo tempo, exibido como incapaz de atingir com perfeição a verdade das coisas («O intelecto finito não pode, pois, atingir com precisão a verdade das coisas através da semelhança»)38. Além disso, num outro capítulo em que faz várias referências a pseudo-Dionísio, afirma que quem compreende a teologia, ao mesmo tempo, como máxima e mínima supera todo o intelecto criado («quem entende isso entende tudo e supera todo o intelecto

criado»)39. Por fim, não é menos curioso que, em várias partes do texto, ao tratar do

Deus tornado homem (ao mesmo tempo do homem tornado Deus) e, portanto, da união do Máximo absoluto com o máximo contraído, o nosso místico não se canse de afirmar que aquela união ou a nossa compreensão daquela união excederia todo o nosso intelecto40. Para que não reste nenhuma dúvida sobre essa incapacidade do intelecto, no Cap. X (do livro III) é afirmado, peremptoriamente: «E porque o nosso Deus que, uma vez apreendido, é a vida eterna, é compreensível para lá de todo o

ponto, afirma: «La naissance de Dieu en l’homme se produit dans son intellect. Mais pour cela, l’exploration du monde par la ratio est vraiment un présupposé nécessaire, mais c’est un présupposé qui doit finalement reconnaître son échec devant le mystère du Dieu absolu». K. REINHARDT, «L’idée de naissance de Dieu dans l’âme chez Nicolas de Cues et l’influence d’Eckhart», in: M.-A.