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do grego (Novo Testamento) para expressar o mandamento maior da nova religião, é um caminho, antes de mais nada, feito de traduções e nestas, naturalmente, várias faces da interpretação encarregaram-se de apresentar muitos sentidos, e, por conseguinte, muitas diferenciações. Assim, no latim clássico predomina amare >

amor; no latim bíblico diligere > caritas e dilectio; nos autores cristãos anteriores a Agostinho, prevalece a tradução do latim bíblico e os termos amare > amor são interpretados, muitas vezes, pejorativamente através de uma visão eivada de preconceitos, e, por fim, em Agostinho e em pseudo-Dionísio, todos os termos corroboram numa união necessária para expressar e reflectir o mandamento maior

do Cristianismo que é o mandamento do amor. Éros é, assim, reabilitado pelo bispo

de Hipona e pelo Areopagita, passando a fazer parte do vocabulário dos autores cristãos posteriores.

Entretanto, isso não põe fim, como se poderia pensar, à discussão sobre este vocabulário. Tanto é que os teóricos do amor não entram num acordo, sobretudo acerca da aceitação/inclusão de éros (amor) no seio de agápe (caritas,

dilectio) e, deste modo, como veremos, Rousselot une os dois conceitos quando desenvolve a sua teoria do amor físico ou greco-tomista; Rougemont considera os

conceitos como opostos e defende agápe como cristã e éros como cortês; Nygren,

por sua vez, mais do que pensá-los como opostos, afirma serem irreconciliáveis,

sendo agápe, eminentemente, cristã e divina e éros, acentuadamente, grego e

racional. Antes de passarmos à filosofia cusana vejamos, então, como estas teorias foram desenvolvidas.

2. Pequena apresentação das teorias clássicas sobre o amor na Idade Média

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na Idade Média19, apenas citaremos as suas teses principais esperando que estas possam lançar algumas luzes sobre a teoria cusana do amor, mesmo não fazendo referência ao filósofo de Cusa. Aliás, nem mesmo a vasta bibliografia referente ao tema cita o cardeal alemão. Poder-se-ia pensar, com isto, que este pequeno desvio poderia ser totalmente descartado, porém, parece-nos necessário percorrê-lo, pois se Nicolau de Cusa não é referenciado naquelas obras, outros filósofos, filósofos estes que influenciaram a filosofia cusana, o são. Assim, partindo do pressuposto de que a interpretação cusana sobre o amor não surgiu do nada, mas, ao contrário, foi construída paralelamente às leituras do nosso filósofo, retomar algumas teorias já estabelecidas pelos seus antecessores pode ser um bom começo para quem tenta buscar e estabelecer uma hermenêutica do amor na obra de Nicolau de Cusa.

Muitos estudiosos consideram que o tema do amor ocupa um papel importante na História da Filosofia Medieval. Podemos acrescentar, também, em acordo com Baladier, que as teses de Rousselot, Rougemont e Nygren tiveram o mérito de mostrar que aquele tema constituía um dos lugares especulativos maiores do pensamento medieval20. Dito isto, vejamos, de uma forma geral, quais são as ideias defendidas por estes estudiosos e comecemos pelo teólogo jesuíta que dedicou as suas pesquisas ao intelectualismo tomista e à “filosofia do amor”.

A pequena obra de Rousselot abre-se com a afirmação de que o problema do amor na Idade Média poderia ser colocado da seguinte forma: «acaso

19

Respectivamente: P. ROUSSELOT, Pour l´histoire du problème de l’amour au moyen âge, Paris, J. Vrin, 1981; D. ROUGEMONT, O amor e o ocidente, trad. Ana Hatherly, Rio de Janeiro, Morais Editores, 1968; A. NYGREN, Erôs et agapè: la notion chrétienne de l’amour et ses transformations, trad. Pierre Jundt, Paris, Aubier, 1944. Sobre o tema do amor na Idade Média ou no Cristianismo existe uma vasta bibiografia. Porém, quase todos retomam, de alguma forma, as três obras que citamos acima, mesmo quando se trata de criticá-las, como é o caso da interessante e prática obra: Amour plurielles – doctrines médiévales du rapport amoureux de Bernard de Clairvaux à Boccace, présentation et commentaires par R. IMBACH e I. ATUCHA, Paris, Éditions du Seuil, 2006.

20

«Les thèses de Rousselot, Rougemont et Nygren ont au moins ce mérite commun d’avoir rappelé, même à leurs adversaires respectifs, que l’«affaire de l’amour» constituait um des lieux spéculatifs majeurs de la pensée médiévale et que la prégnance d’un tel thème caractérisait aussi bien l’érotique des troubadours que les oeuvres mystiques – telles que les nombreux commentaires du Cantiques des Cantiques notadament –, aussi bien les doctrines cathares que les traités des théologiens officiels». C. BALADIER, Éros au Moyen Âge – amour, désir et «delectatio morosa», Paris, CERF, 1999, p. 31. Esta obra é elogiada por Imbach, cf. Amour plurielles – doctrines médiévales..., op. cit., em detrimento das teses de Rousselot, Rougemont e Nygren.

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o homem, naturalmente, ama mais a Deus do que a si mesmo?»21. Para tentar

responder a esta pergunta, a qual o teólogo jesuíta considera uma fórmula feliz por ser, ao mesmo tempo, concreta e profunda, ele divide o problema em duas vertentes: a concepção física e a concepção extática. A primeira é definida não no

sentido corporal, mas no sentido natural (physis) e significa a propensão necessária

que os seres têm de procurar o seu próprio bem22. Por outro lado, a concepção extática, de acordo com o próprio Rousselot, é mais difícil de definir com precisão porque não se constitui num conjunto completo de doutrinas. Entretanto, se precisamos definí-la, será melhor pôr em relevo o princípio que a domina, ou seja, a

predominância da ideia de pessoa sobre a ideia de natureza23.

Tanto para uma concepção quanto para a outra, Rousselot elege e disserta sobre aqueles que ele considera os seus partidários. Assim, para a concepção física cita, dentre os gregos, Aristóteles, e, dentre os medievais, Hugo de São Victor, São Bernardo e Tomás de Aquino. Aliás, Rousselot considera este último como a continuidade perfeita entre o amor de conveniência ou

concupiscência e o amor de amizade24. Rousselot considera que Tomás de Aquino

consegue conciliar o amor de si (que aqui podemos entender como éros) com o puro

amor do outro (que aqui podemos entender como agápe) e afirma: «É são Tomás,

inspirado em Aristóteles, que resgata o princípio fundamental, mostrando que a unidade (antes que a individualidade) é a razão de ser, a medida e o ideal do amor; ele reestabelece, de um só golpe, a continuidade perfeita entre o amor de

conveniência e o amor de amizade. – A concepção física poderia ainda chamar-se a

21

«Utrum homo naturaliter diligat Deum plus quam semetipsum?». P. ROUSSELOT, Pour l´histoire du..., op. cit., p. 1.

22

Doutrina de inspiração aristotélica que encontramos também em Nicolau de Cusa, por exemplo, em De docta ignorantia quando aborda a tendência de todas as coisas de serem do melhor modo que podem e, também nos Sermões, quando fala sobre a tendência natural de todos os seres à unidade original.

23

Para a primeira definição, cf. P. ROUSSELOT, Pour l´histoire du..., op. cit., p. 3; sobre a dificuldade para definir a segunda concepção, cf. IDEM, ibidem, p. 56.

24

Também para o amor em Tomás de Aquino, veja-se: L-B. GEIGER, Le problème de l’amour chez saint Thomas d’Aquin, Paris, J. Vrin, 1952. Rousselot norteia, em grande parte, este livro. No entanto, ela é, muitas vezes, criticada. A critica é pontual e tem sua razão de ser, entretanto, não nos cabe aqui apresentá-la ou discuti-la.

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concepção greco-tomista»25.

Já para a vertente extática, a eleição dos seus partidários é mais complexa porque esta tem uma série de divisões e subdivisões e, neste sentido, muitos dos seus partidários ali são colocados ora por representarem uma determinada característica, ora por representarem uma outra. Mesmo assim, podemos destacar nomes como o de pseudo-Dionísio, Abelardo, S. Gregório (o grande), Ricardo de São Victor e São Bernardo, por exemplo26. Ao contrário da teoria física, não é o pensamento de um filósofo específico (naquela teoria, Tomás de Aquino) que norteia os seus argumentos, pois a teoria do amor extático, no dizer de Rousselot, apresenta-se sob a forma de peças e trechos, sendo mais uma “mentalidade” do que uma “teoria”.

O que aqui nos interessa é, para além das duas vertentes elencadas por Rousselot, destacar os elementos preponderantes destas duas concepções e, assim, podemos afirmar que a «teoria do amor físico ou greco-tomista» pode ser resumida em quatro pontos: a) primado dos interesses comuns, onde o bem do homem é o bem de Deus; b) primado da unidade, esta é a razão de ser e o ideal do

25

P. ROUSSELOT, Pour l’histoire du..., op. cit., p. 3. 26

Observemos que os nomes de Hugo de São Victor e São Bernardo aparecem nas duas vertentes. O próprio Rousselot chama-nos atenção para este facto, afirmando que o problema pode ser dividido em dois grupos, mas isto não deve significar uma separação absoluta entre aquelas vertentes: «Il est clair, d’ailleurs, que cette division en deux groupes, ou selon deux directions, ne doit pas être considérée comme correspondant à une séparation absolue. [...] Il y a plus: l’on trouvera les mêmes auteurs (Hugues et S. Bernard par exemple), cités successivement comme partisans de la conception physique et de la conception extatique». P. ROUSSELOT, Pour l´histoire du..., op. cit., p. 4. Para os filósofos citados em ambas as concepções, pelo menos três deles exerceram uma maior influência (não com a mesma intensidade) sobre Nicolau de Cusa: pseudo-Dionísio, Hugo de São Victor e Tomás de Aquino. Sabemos, por exemplo, que a influência de pseudo-Dionísio e Hugo de São Victor foram mais fortes no pensamento cusano do que a filosofia de Tomás de Aquino, por isso mesmo é curioso e instigante lermos, num estudo de Vansteenberghe, que Nicolau de Cusa não admite para o homem a possibilidade de alcançar Deus directamente, mesmo no êxtase, e nesse sentido, ele separa-se, dentre outros, de pseudo-Dionísio e aproxima-se de Tomás: «Cusa n’admet pas pour nous la possibilité d’atteindre directement Dieu, même dans l’extase. La lumière surnaturelle qui donne à l’âme, avec le sentiment de la présence divine, une sorte d’avant-goût de la béatitude n’est pas, à son sens, Dieu lui-même, sa nature ou son essence, mais seulement un effet de sa grâce; en quoi, il ne se sépare pas seulement de Richard, mais du pseudo-Denys, et de saint Augustin auxquels il fait appel à propos de le l’ineffabilité divine. Ses véritables maîtres, sur ces deux points, sont, avec saint Thomas, saint Grégoire le Grand et surtout saint Bernard[...]». E. VANSTEENBERGHE, «Un petit traité de Nicolas de Cues sur la contemplation», in: Revue des sciences religieuses (9), Straßburg-Paris, 1929, pp. 388-389, pp. 376-390.

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amor; c) princípio dominante da physis enquanto tendência natural e necessária dos

seres em procurar o bem que lhe é próprio; e, d) afirmação do homem, pois, amar a Deus é encontrar sua alma. Contrariamente a estes elementos citados, a «teoria do amor extático» caracteriza-se comoprimado dos interesses incomuns, onde os interesses do amante (homem) são diferentes dos interesses do amado (Deus); b) primado da dualidade, esta aparece como elemento necessário do amor perfeito; c) princípio dominante da pessoa enquanto tende livremente e violentamente para o

ser amado; e, d) negação do homem, pois amar a Deus é perder sua alma27.

O que podemos concluir das duas vertentes apresentadas por Rousselot é que, além de serem diferentes, a concepção física é mostrada como mais sensata. Nesta, ele procura equilibrar, sobretudo através da filosofia tomista,

dois tipos de amor: amor concupiscentiae e amor amicitiae, e, nesta relação,

constrói o que ele denomina teoria física ou greco-tomista. No nosso entendimento, as características apontadas por Rousselot acerca das duas concepções parecem tocar, bem de perto, a mística especulativa (teoria física) e a mística afectiva (teoria extática), ambas bem conhecidas por Nicolau de Cusa. Não só conhecidas, mas

tomadas como objecto de reflexão da sua filosofia28. Neste sentido, o que até aqui

foi resumido poderá iluminar a nossa caminhada rumo a uma hermenêutica do amor do filósofo de Cusa. Por ora, precisamos continuar expondo as teorias clássicas sobre o tema, e, deste modo, pousaremos nosso olhar sobre o estudioso suíço, Denis de Rougemont.

O livro de Rougemont, O amor e o ocidente, não tem a

simplicidade estrutural do livro de Rousselot, e, por isso, é mais difícil de ser

resumido, mesmo em linhas gerais29. De toda forma, podemos dizer que o livro do

27

Muitos desses pontos podem ser encontrados na filosofia cusana, como veremos. Deste modo, já podemos antecipar que a hermenêutica do amor cusana, se existe enquanto tal, deve apontar para diversas concepções de amor, ou melhor, deve apontar para uma teoria complexa, uma vez que os pontos da teoria de Rousselot aqui elencados seguem direcções opostas ou mesmo contraditórias. 28

Bastando, para isso, espreitarmos a sua Correspondência aos Irmãos de Tegernsee, sobretudo, as Cartas de 22-9-1452, 14-9-1453 e 18-3-1454.

29

Só para se ter uma ideia da nossa dificuldade, ouçamos o que o autor diz-nos no início do seu livro: «Chamei ‹livros› às diferentes partes desta obra porque cada uma esboça o conteúdo dum volume de dimensões vulgares. O grande número de factos e de textos citados, o jogo dos leitmotiven

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suíço começa com o mito de Tristão e Isolda, atravessa as origens religiosas desse mito, busca as raízes de éros e agápe, disserta sobre algumas questões místicas, passando pelos trovadores e os cátaros, até reflectir sobre o casamento e sobre a fidelidade. Tudo isto é norteado pela literatura e mais precisamente pelo

romantismo definido pelo autor como a religião de éros. O curso seguido, portanto,

toma uma dimensão bem diferente daquele da obra de Rousselot e, neste sentido,

interessa-nos aqui o que o seu autor diz sobre éros e agápe. Para isso, vejamos as

linhas gerais da tese de Rougemont.

A tese de Rougemont ousa falar do nascimento do amor-paixão a

partir de condições históricas determinadas30. Diz que «[...] o amor-paixão,

glorificado pelo mito, foi realmente no século XII, data do seu aparecimento, uma RELIGIÃO em toda a força deste termo, e especialmente UMA HERESIA CRISTÃ

HISTORICAMENTE DETERMINADA (sic31. Tudo isto é fruto do que o

estudioso suíço disse sobre éros e agápe, ou seja, Rougemont considera estes dois

elementos opostos e, por isso, separa-os, assim, diz: que éros é irracional e quer a

fusão essencial do indivíduo em Deus; e que agápe é racional e busca no amor do

próximo uma comunhão com Deus, comunhão onde não há negação do diverso,

entrelaçados, correria o risco de fazer extraviar certos leitores se eu aqui não desse a chave da minha composição. [...] Quanto aos livros intermediários, o segundo tenta remontar às origens religiosas do mito, enquanto os seguintes descrevem os seus efeitos nos mais diversos domínios: mística, literatura, arte da guerra, moral do casamento». D. ROUGEMONT, O amor e..., op. cit., p. 7. 30

Ousa, porque depois de ir às origens de éros e de agápe, depois de estabelecer os seus condicionamentos históricos, as influências sofridas, as suas características e depois de situar éros ao lado do Oriente e agápe ao lado do Ocidente, ele inverte o que, logicamente, ou, pelo menos, consequentemente se esperaria como uma conclusão lógica. Ele afirma que éros nega a paixão, na medida em que esta é desprezada pela moral corrente como uma doença frenética e diz, por outro lado, que agápe afirma a paixão, pois no Ocidente do século XII, o casamento está exposto ao desprezo, enquanto a paixão é glorificada. Para toda esta argumentação, veja-se todo o livro II de Rougemont.

31

D. ROUGEMONT, O amor e..., op. cit., p. 126. Baladier resume o livro de Rougemnt da seguinte forma: «[...] l’ouvrage [...] tire son pouvoir de séduction et son retentissement de la nature de son objet (l’amour-paisson), de l’audace de la thèse qu’il défende (la naissance d’un tel sentiment dans des conditions historiques déterminées), mais aussi du caractère fascinant de la culture au sein de laquelle il situe cette genèse, une culture où l’amour qui y viendrait ainsi au jour est l’amour se faisant poésie, [...] s’opposeraient deux formes d’amour: l’amour chrétien et l’amour courtois, ce denier jaillissant d’une source impure et interdite – l’étrange, le sauvage érôs – et se trouvant contraint, en raison de cette origine et en marge d’un monde voué culturellement à l’agapè de se cacher et d’avancer ‹déguise sous des symboles› ». C. BALADIER, Éros au Moyen Âge..., op.cit., pp. 23-24.

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nem fusão total com Deus (como acontece com éros), mas onde a diferença

permanece como um abismo essencial entre o homem e Deus. Neste sentido, éros

representaria o amor cortês e agápe o amor cristão32.

Poderia ser tudo mais simples a partir daqui, uma vez que agápe

seguiria o caminho oposto ao de éros. Porém, nas suas primeiras conclusões,

Rougemont coloca a Mística do Ocidente como uma outra paixão cuja linguagem metafórica é estranhamente semelhante à do amor cortês33. Depois de colocar o problema, de apresentar algumas metáforas que une a mística ao amor cortês, de mostrar o mito de Tristão e Isolda como uma aventura mística, ele fala sobre a divisão teológica da mística universal e é sobre isto que gostaríamos de pensar um pouco, antes de passarmos para a tese de Nygren. O estudioso suíço divide a mística em duas correntes: uma que chama de mística unitiva e que define como uma tendência para a fusão total da alma na divindade; uma outra que chama de mística epitalâmica e é definida como a tendência para o casamento da alma com Deus, mantendo, assim, a distinção entre a criatura e o criador. A primeira enquadra-se, conforme Rougemont, na heresia e a segunda, na ortodoxia. Ele apresenta, ainda,

através da obra de Rudolf Otto34, Plotino como representante da primeira vertente e

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Assim também entende D’Arcy ao afirmar: «[...] ce qui est lègal, bon et raisonnable serai-til le lot d’Agapè? Mais Agapè, qui d’après L’Amour et l’Occident équivaut à l’amour surnaturel, doit porter, de ce fait, un fardeau trop lourd». M. C. D’ARCY, La double nature de l’amour, Lyon, Aubier, s/d, p. 331. É interessante notar que a importância da diferença – ou como afirma Rougemont, o abismo essencial entre o homem e Deus – é, perfeitamente, visualizada em Nicolau de Cusa quando ele expressa a sua famosa sentença sobre a improporcionalidade do finito ao infinito, mantendo-se, aqui, se olharmos para a exegese de Rougemont, mais próximo de agápe do que de éros. Além disso, quando Rougemont relaciona mais adiante, via a obra de Otto, Mestre Eckhart à corrente mais ortodoxa da mística, este aparece enquadrado numa tendência que prima pela clara distinção entre criador e criatura no êxtase místico. Ora, essa distinção em Eckhart não é de toda clara. Aliás, este é um traço diferenciador entre Nicolau de Cusa e Mestre Eckhart. André chama a atenção para isso quando escreve, na sequencia da sua análise sobre a consciência da individualidade do ser humano no seio da sua liberdade: «Neste sentido, Nicolau de Cusa demarca-se profundamente de Eckhart, cuja mística assentava precisamente num despojamento total da individualidade em ordem a uma imersão plena na divindade que, por sua vez, importava despir do seu carácter pessoal que a própria designação de Deus já comportava». J. M. ANDRÉ, trad. e int. de A visão…, op. cit., pp. 124-125. Por outro lado, a filosofia cusana também se aproxima, em muitos aspectos, da filosofia eckhartiana e no momento propício retomaremos estas aproximações.

33

Não podemos, e talvez de nada nos sirva, enveredar pelo desenvolvimento desta ideia. Por isso, limitar-nos-emos a reter o que de essencial é dito sobre a mística.

34

R. OTTO, Westöstliche Mystik, Gotha, 1929, apud ROUGEMONT. Gostaríamos de acrescentar que a tese de Otto serve à teoria defendida por Rougemont, embora, ele mesmo mostre que é possível

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Mestre Eckhart como representante da segunda concepção e acrescenta que um curioso fenômeno se passa: o «abuso» da linguagem amorosa deve ser ligado,

historicamente, à corrente mais ortodoxa35.

Ora, Nicolau de Cusa utiliza, em muitas passagens (como já

tivemos oportunidade de verificar, en passant), um vocabulário extremamente

afectivo36, porém, isto não faz da sua mística uma mística unitiva ou herética (no sentido definido por Rougemont), mais ainda, as conclusões a que chega Rougemont e as quais são aplicadas a Eckhart, Ruysbroek, Santa Tereza e São João da Cruz, bem poderiam ser aplicadas também ao filósofo de Cusa (exceptuando-se o estado de êxtase em alguns, já que na filosofia cusana, mesmo nas obras mais místicas, não encontrámos nada parecido com um momento como aquele); mas isso também não faz de Nicolau de Cusa um místico, no sentido de uma Santa Tereza ou