• Nenhum resultado encontrado

Capítulo IV – Amar e conhecer na Correspondência aos Irmãos

2. Olhar, não abandonar, cuidar e amar

Comecemos retomando a experiência sensível do quadro e o que o olhar, representado na pintura, tem de mais peculiar. Tentemos resumir a cena narrada no Prefácio e que já detalhamos supra: Nicolau de Cusa envia à Abadia de Tegernsee o seu livro juntamente com um quadro que representa a figura de alguém que tudo olha ao seu redor e que o Cusano chama de “ícone de Deus”. A peculiaridade desse quadro centra-se na arte com que foi pintado, podendo, por isto, significar, metaforicamente, a visão de Deus. A pintura representa uma face cujos olhos acompanham todo e qualquer movimento que se realize à sua volta, de tal forma que se alguém se desloca, seja para que direcção for, percebe que o olhar do quadro o acompanha. Do mesmo modo, se duas ou mais pessoas se deslocam para direcções diferentes, cada um saberá por si e pela revelação do seu

83

«Apparuist deinde mihi ut ab omnibus visibilis, quia in tantum res est, in quantum tu eam vides, et ipsa non esset actu, nisi te videret. [...] Invisibilis es, uti tu es, visibilis es, uti creatura est, quae in tantum est, in quantum te videt». IDEM, ibidem, 47: 5-7, e 9-10, p. 41. ANDRÉ, trad., p. 175.

185

interlocutor que os olhos do quadro acompanham todos simultaneamente. Logo, o que há de característico naquela pintura não é o facto de ser um rosto, muito menos de este rosto possuir olhos, mas sim, o facto de estes olhos não abandonarem aqueles que para eles olham84.

Além disso, há uma outra particularidade naquela imagem: o olhar presta atenção, ao mesmo tempo, a cada um dos seus contempladores, como se olhasse, exclusivamente, para um só e daí encontrarmos já no Prefácio as seguintes considerações: «E, enquanto assim considera, vê como aquele olhar não abandona nenhum porque ele terá tanto cuidado como se se preocupasse só com aquele que experiencia ser visto e com nenhum outro dum modo tal que aquele que olha não

pode conceber que ele tenha um cuidado assim com qualquer outro»85, deduzindo

desta segunda percepção que o quadro olha com um cuidado diligentíssimo («diligentissimam curam») como se a mais pequena criatura fosse a maior de todo o universo86. Deste modo, a experiência sensível proposta pelo bispo de Brixen, explicada no Prefácio do De visione dei, une a simplicidade de uma experiência visual com a mais alta e profunda especulação que o ser humano pode fazer: reflectir de forma que possa experienciar sua relação com o divino e, por extensão, com o mundo e com os outros homens. Atentemos para o que há de novo na proposta cusana: não se trata do quadro em si, isto é, da perspectiva assumida na composição dos olhos que parecem olhar tudo em seu redor (imagens como esta, ele o diz no Prefácio, encontram-se muitas e muito bem representadas)87; o que é

84

Cf. De visione dei, h VI, Prefácio, p. 5-7. 85

«Et dum attenderit, quomodo visus ille nullum deserit, videt, quod ita diligenter curam agit cuiuslibet quasi de solo eo, qui expiritur se videri, et nullo alio curet, adeo quod etiam concipi nequeat per unum, quem respicit, quod curam alterius agat». IDEM, ibidem, 4: 5-8, p. 6. ANDRÉ, trad., p. 137.

86

Sobre essa forma de «cuidar», expressa Kremer: «[...] Wenn Gott, wie Cusanus unaufhörlich betont, keine Kreatur und erst recht keinen Menschen verläßt, wenn er die aufmerksamste Fürsorge (diligentissima cura) sogar dem geringsten Geschöpf gegenüber (minima creatura) hegt, als sei es das größte und das gesamte Weltall, dann kommt darin nicht einfach Bejahung, sondern vor allem die hohe Wertung einer jeden Kreatur und insbesondere des Menschen von seiten Gottes zum Ausdruck». K. KREMER, «Gottes Vorsehung...», art. cit., p. 232.

87

As imagens referenciadas por Nicolau de Cusa parecem não mais existir hoje. De toda forma, em um estudo de Stock podemos encontrar uma análise detalhada de imagens semelhantes as que são

186

invulgar e o que torna o De visione dei um texto importante, não só do ponto de vista de uma abordagem sobre o olhar, mas também, do ponto de vista de uma história da mística do olhar, é a relação que Nicolau de Cusa estabelece entre uma simples experiência e a especulação mística, cruzando, num horizonte de sentidos, os sentidos de uma metáfora fundadora e, ao mesmo tempo, capaz de expressar o amor.

Fundadora porque Deus vê e cria, capaz de expressar o amor porque Ele vê e cria enquanto ama. Todavia, o sentido do amor, no início desta nossa abordagem e dando continuidade às ideias que mostrámos no Prefácio, aparece ainda, de forma implícita, através do olhar que além de não abandonar aqueles que procuram a Deus, também dá atenção a cada um como se fosse a única criatura do universo. Procuremos explicitar aquele amor, começando pela ideia do “não abandono”, já apontada no Prefácio e espalhada nos capítulos do texto. Antes que se possa questionar a formulação da ideia do “não abandono”, esclarecemos que para sermos fiéis ao texto não há outra maneira para formulá-la, ou seja, as

vezes em que aparece o verbo deserere no texto ele está expresso na forma

negativa, seja através de um advérbio de negação, seja por um pronome indefinido negativo ou por qualquer outro instrumento ou artifício que transforma a frase onde ele está em uma frase negativa, mesmo quando utiliza um outro verbo com o mesmo significado. Acreditamos que a formulação do “não abandono” não foi inconsciente, posto que, também acreditamos, dela resulta a expressão do amor.

Levantemos algumas frases com o intuito de melhor justificar a nossa argumentação no que diz respeito ao “não abandono” como resultante do amor. Assim, temos: 1.«[...] e porque o olhar da imagem te olha igualmente em

todo o lado e não te abandona para onde quer que te dirijas [...]»; 2.«Com efeito,

citadas no De visione dei e, de como o autor desta obra soube aproveitar as características estéticas que as mesmas proporcionavam numa especulação místico-religiosa. Cf. A. STOCK, «Die Rolle der „icona Dei“...», art. cit., pp. 50-68. Para a importância da arte na obra do Cusano, veja-se, também, o Cap. XI da dissertação de J. M. ANDRÉ, Sentido, simbolismo e..., op. cit., pp. 675-736. Veja-se também o texto já referenciado de Tritz (cf. nota 55) que no final do estudo apresenta algumas reproduções de quadros do século XV.

187

jamais fechas os olhos, jamais os voltas noutra direcção [...]»; 3.«[...] tal como o teu olhar não abandona ninguém»88. Ora bem, assim como há uma gradação do

olhar no De visione dei e, por sua vez, o olhar é determinante para todos os outros

aspectos do texto, é natural que esses aspectos também se apresentem em forma de gradação. Deste modo, numa primeira leitura e, portanto, numa primeira fase, as sentenças referenciadas acima remetem para a experiência sensível da visão que o quadro proporciona e, assim, o olhar da imagem acompanha todo e qualquer movimento, seja singular ou plural, seja para que direcção se mova, mesmo que a deslocação aconteça em direcções contrárias, pois a imagem do quadro jamais fecha os olhos. Até aqui, não fizemos mais do que repetir o resumo da experiência proposta pelo Cusano, e já relatado nos parágrafos acima. Passemos, então, a uma próxima fase, procurando explicitar as citações dentro do contexto de cada uma.

Desta forma, no Cap. IV que tem como título «a visão de Deus é dita providência, graça e vida eterna», a frase de número 1 («e porque o olhar da imagem te olha igualmente em todo o lado e não te abandona para onde quer que te dirijas») dirige-se a um dos irmãos de Tegernsee («Aproxima-te agora, irmão que contemplas...») e tem por objectivo convidá-lo a fazer a experiência sensível. No entanto, depois de dizer na pequena carta que abre o livro, bem como no Prefácio, qual a sua intenção ao enviar o texto juntamente com o quadro, Nicolau de Cusa chama atenção no final do Prefácio: «[…] proponho elevar-vos, irmãos caríssimos, através duma prática de devoção à teologia mística, adiantando previamente três

coisas oportunas para o efeito»89. Obviamente que ele parte da experiência

sensível, mas seu objectivo é ultrapassar este plano, por isso, ele adianta três coisas que poderão ajudar na experiência mística. Estas três coisas ocupam,

88

1.«[...] et quia visus eiconae te aeque undique respicit et non deserit, quocumque pergas [...]». De visione dei, h VI, Cap. IV, 9: 5-6, p. 13; 2.«Nam nunquam claudis oculos, nunquam aliorsum vertis»; 3.«[...] sicut nec visus tuus quemquam deserit». Cap. V, 14: 2-3 e 15: 6, pp.17 e 18 respectivamente. Os grifos são nossos. ANDRÉ, trad., pp. 142, 146, 147.

89

«[…] vos fratres amantissimos per quandam praxim devotionis in mysticam propono elevare theologiam praemittendo tria ad hoc opportuna». De visione dei, h VI, Prefatio, 4: 21-25, p. 7. ANDRÉ, trad., p. 137.

188

respectivamente, os capítulos I, II e III que não por coincidência antecedem o capítulo onde está a frase de número 1 que citamos no parágrafo anterior e repetimos no início deste.

Os três pontos que Nicolau de Cusa considera importantes antecipar dizem respeito ao olhar da imagem, ao olhar das criaturas e ao olhar do Criador. Assim, o irmão que participa da experiência deve saber que: a) O que

pode aparecer em relação ao olhar da imagem – icona dei – é muito mais

verdadeiro no verdadeiro olhar de Deus; b) o olhar das criaturas vê conforme a diversidade da sua contracção, ao passo que o olhar de Deus, por ser absoluto, vê simultaneamente todos e cada um dos modos de ver; c) tudo que é dito de Deus

não pode diferir nele devido à sua suprema simplicidade90. Tendo esclarecido isso

(as diferenças dos olhares), aquele que faz a experiência percebe não só que o olhar da imagem não o abandona (experiência sensível-visual), mas também é estimulado a especular («in te excitabitur speculatio») e intui, através daquela experiência, a providência e a graça divinas, conforme o título do capítulo. Ora, pensa aquele que experiencia, se o olhar de Deus é muito mais verdadeiro que o olhar do quadro e este acompanha-me para onde quer que eu me desloque, eu posso ultrapassar o plano sensível, no sentido de deduzir que o olhar divino nunca me abandona. Pode deduzir, ainda, mais do que isso, pois na sequência da nossa frase 1 (a ideia de que o olhar da imagem não nos abandona), podemos ler: «Com efeito, se me não abandonas a mim, que sou o mais desprezível de todos, jamais

abandonarás quem quer que seja»91. O facto de a visão de Deus não abandonar o

mais desprezível dos seres, mais do que significar que não abandonará quem quer que seja, exprime a ideia de que Deus olha para cada um com a maior das atenções, fazendo com que alguém desprezível torne-se o mais importante dos seres. Ora, que olhar jamais abandona alguém, fazendo, ao mesmo tempo, com que este alguém sinta-se o centro das atenções ou mesmo a pessoa mais importante do

90

De visione dei, h VI, Caps. I, II e III, pp. 10-13. 91

«Nam si me non desideris, qui sum vilissimus omnium, nusquam cuiquam deeris» IDEM, ibidem, Cap. IV, 9: 8-9, p. 13. ANDRÉ, trad., p. 142.

189

mundo, senão o olhar de quem ama incondicionalmente?

O Cap. IV, a que acabamos de tecer alguns comentários, tem como título «a visão de Deus é dita providência, graça e vida eterna»; o Cap. V, onde

encontram-se as frases de números 2 e 3 («Com efeito, jamais fechas os olhos,

jamais os voltas noutra direcção» e «assim como o teu olhar não abandona

ninguém»), intitula-se «ver é saborear, procurar, ter misericórdia e actuar»92. Ora,

se atentarmos para os títulos destes dois capítulos, veremos que, ao passar do

substantivo visio para o verbo videre, o Cusano dinamiza, gradativamente, o ritmo

do texto no sentido de acentuar a reciprocidade da visio dei no seu aspecto divino e

humano93. Mas, por enquanto, pensemos só no contexto mais directo das duas

citações. Nesse capítulo V a acção de ver, como o título indica, funde-se com saborear, posto que Deus é a própria profusão da doçura infinita; com procurar, já que Deus não se furta àqueles que o procuram, chegando mesmo a inclinar-se para mostrar a sua face; com ter misericórdia, uma vez que o olhar de Deus olha mesmo para aqueles que dele se afastam e funde-se, também, com actuar, pois a visão de Deus ministra, provê, cuida e conserva. Deste modo, as acções humanas que podem corresponder ao “ver” começam a ocupar o seu espaço ao lado do ver divino e, assim, o olhar humano tem sua correspondência, neste capítulo, com o procurar e com o saborear a fonte da vida; o olhar divino, por sua vez, relaciona-se, simultaneamente, ao ter misericórdia e ao actuar.

Numa primeira leitura, a compreensão das duas citações (2. Deus jamais fecha os olhos e jamais os volta noutra direcção além de mim; 3. O olhar de Deus não abandona ninguém) está ainda no plano da experiência sensível proporcionada pelo quadro, mas, ao contrário do capítulo anterior, aquela experiência nem é mais mencionada, o que nos leva a crer que, aos poucos, aquele que experiencia vai deixando para trás a imagem concreta do quadro e vai

92

Os dois capítulos intitulam-se, respectivamente, «Quod visio dei providentia, gratia et vita dicitur aeterna» e «Quod videre sit gustare, quaerere, misereri et operari». Grifo nosso.

93

190

formando uma imagem mental da visão de Deus94. Não nos parece ao acaso, por

exemplo, que logo no início deste capítulo seja dito: «Ver, pois, a razão absoluta, que é a razão de todas as coisas, não é senão saborear-te mentalmente a ti, Deus,

porque és a própria suavidade do ser, da vida e do intelecto»95. Mesmo assim, no

que se refere ao “não abandono” o raciocínio volta a ser o mesmo do capítulo anterior, ou seja, na primeira citação não se tem o verbo “deserere”, mas “claudere”, que tem o mesmo significado, pois uns olhos que não se fecham são olhos que tudo acompanham, portanto, que nunca abandonam. Para mostrar a atenção especial que este olhar dá-nos, ele não olha em outra direcção, mesmo que nos desviemos dele e nos voltemos para outra coisa completamente diferente dele.

Na sequência, até a nossa segunda citação, o olhar de Deus é mostrado como a pura misericórdia que acompanha o homem enquanto este vive, seja para onde for que ele se dirija, pois a misericórdia divina, que é ao mesmo tempo a sua visão, não abandona ninguém, «daí que enquanto o homem vive não deixas de o seguir e de o incitar, com advertência doce e interior, a afastar-se do

erro e a voltar-se para ti a fim de viver na felicidade»96. Mais uma vez,

perguntamos (no mesmo direccionamento da anterior, quando concluímos nossos

94

Neste mesmo sentido pensa, também, Machetta quando afirma: «Con la ayuda de la imagen se interna en el análisis de la correspondencia entre el ver de Dios y el ver del hombre y la reflexión asciende a la consideración de los principios o del principio que proporcione una más cabal compremsión de estos hechos y que a la vez permita la superación del experimento puramente sensible». J. MACHETTA, «Intelecto contemplativo...», art. cit., p. 1682. Todavia, não quer isto dizer que a imagem do quadro seja abandonada. Ela volta a ser mencionada e utilizada em outros capítulos como um referencial sempre constante, uma espécie de instrumento para as especulações mais abstractas. Mesmo assim, é como se não partisse mais dela para a visão de Deus, mas da visão de Deus para ela. Na mesma lógica de uma ontologia do olhar, ou seja, é a visão de Deus que funda e conserva a imagem da pintura e não o contrário. Assim, por exemplo, no Cap. IX do De visione dei é dito: «Admiror, domine, postquam tu simul omnes et singulos respicis, uti haec etiam picta figurat imago, quam intueor, quomodo coincidat in virtute tua visiva universale cum singulari». De visione dei, h VI, Cap. IX, 31: 3-5, p. 32. Ou ainda: «Stas igitur et progrederis et neque stas neque progrederis simul. Facies haec depicta mihi ostendit id ipsum». IDEM, ibidem, 35: 13-14, p. 33. 95

«Videre igitur rationem absolutam, quae est omnium ratio, non est aliud quam mente te deum gustare, quoniam es ipsa suavitas esse, vitae et intellectus». IDEM, ibidem, Cap. V, 13: 8-10, p. 17. Grifo nosso. ANDRÉ, trad., p. 146.

96

«Quandiu igitur homo vivit, non cessas eum subsequi et dulci atque interna motione incitare, ut ab errore cesset et convertatur ad te, ut feliciter vivat». De visione dei, h VI, Cap. V, 15: 6-8, p. 18. ANDRÉ, trad., p. 147.

191

comentários acerca da citação número 1) que olhar jamais abandona alguém, mesmo quando esse alguém desvia-se do seu encontro e segue muitas vezes, em direcção oposta? Que olhar, mais do que não abandonar, incita com doce advertência alguém a afastar-se do erro e a viver na felicidade, senão um olhar sobretudo amante?

Do exposto, antes de passarmos a uma primeira conclusão, gostaríamos de ressaltar que a ideia do “não abandono” não aparece somente nas três citações que fizemos, muito menos limita-se ao Prefácio e aos capítulos IV e V. Ela encontra-se ao longo do texto, referida de diferentes formas, como por exemplo: «quia me non deserit», «nec me deseris», «non deseret», «nullum deserit», «non derelinquit», «numquam claudis oculus», «non deseret faciei meae veritatem», «quia non deserit tempus», «numquam deserere potest»... Apesar de diferentes formulações, todas referem-se à visão de Deus (quando está na terceira pessoa do singular) ou, ao próprio Deus (quando está na segunda pessoa do singular) e, desta forma, procuram expor uma única ideia: o olhar do quadro tudo acompanha, assim como a visão de Deus jamais nos abandona. Ora, juntando o “não abandono” com o facto de aquele olhar dar ao contemplador toda a atenção, ao ponto de fazer-lhe sentir o ser mais importante do universo, mesmo quando aquela criatura não passa de um ser desprezível e, além disso, ainda o incita com uma doce advertência aquando do seu desvio e do seu afastamento da felicidade, o resultado não pode ser outro do que a ideia de que aquele olhar (a visão de Deus), acima de tudo, ama.

Abandonar alguém significa: fechar os olhos para essa pessoa (por isto, Deus jamais fecha os olhos); uma total falta de atenção (por isto, os olhos de Deus estão sobre nós, com a maior das atenções); uma total falta de misericórdia (por isto, o olhar de Deus não é diferente da sua misericórdia); uma total falta de respeito (por isto, Deus olha para a mais pequena criatura como se fosse a mais importante); e ainda, uma total falta de amor (por isto, e esta ideia ainda não havia aparecido de forma explícita, a visão de Deus é amar e assim, onde estão os olhos

192

está o amor)97. Se somarmos a essas ideias duas outras imagens que também

chamaram-nos atenção na obra em análise, quais sejam, a ideia de que Deus olha-nos com olhos paternais e o resultado desse olhar apresentado sob o símbolo do cuidado, veremos o sentido do amor não mais de forma implícita, mas, na sua mais profunda explicitação, metaforizado pelo horizonte onde cruzam-se o olhar de Deus e o olhar dos homens. É isto que propomos começar a mostrar a partir de agora.

Assim, por exemplo, já no final do Prefácio, a expressão do cuidado manifesta-se através do olhar, quando é afirmado: «E, enquanto assim

considera, vê como aquele olhar não abandona nenhum porque ele terá tanto

cuidado como se se preocupasse só com aquele que experiencia ser visto e com

nenhum outro dum modo tal que aquele que olha não pode conceber que ele tenha um cuidado assim com qualquer outro. Verá ainda que terá um cuidado diligentíssimo com a mais pequena criatura, como se se tratasse da maior e de todo o universo»98. O olhar do quadro, a representação do olhar divino, porque não abandona o espectador, olha-o com cuidado e este cuidado, de igual modo, faz parecer que os olhos olham com amor porque ali não há julgamento nem preconceito, há somente um olhar cuidadoso que torna aquele que é olhado, um ser amado, posto que, quem ama também cuida, ou melhor, o olhar de quem ama não

97

É claro que, contra a nossa ideia da relação entre “não abandonar” e amar, sempre se poderá argumentar que “não abandonar” não significa, necessariamente, amar. Assim, por exemplo, um professor que não abandona um dos seus alunos durante toda a sua vida escolar, que sempre acompanha os passos daquele, que está sempre presente nas horas que o aluno mais precisa de ajuda, etc., não significa que ame aquele aluno. Estamos, deste modo, conscientes de que entre “não