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Capítulo II – Nicolau de Cusa e o amor: uma primeira aproximação

1. A ausência do amor nos livros I e II

Não se pode tratar das relações entre amor e conhecimento na filosofia cusana sem fazer referência ao livro mais emblemático do pensador

moselano: De docta ignorantia. É, possivelmente, a sua obra mais conhecida, mais

citada e mais analisada pelos estudiosos do seu pensamento, não só por ser a sua primeira obra de cunho filosófico que delimita, assim, o lugar de Nicolau de Cusa na História da Filosofia, como também por ter a intenção de ser um certo modo de raciocinar sobre as coisas divinas, conforme as palavras do próprio Cusano na dedicatória que faz ao cardeal Juliano Cesarini. Além disso, a referida obra é marcada pela postura filosófica que assume o nosso pensador em relação ao conhecimento das coisas divinas, demarcando, por sua vez, os limites do

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conhecimento humano. Acrescente-se a tudo isto a construção de conceitos e fórmulas bem peculiares à semântica cusana e que faz da sua filosofia um todo complexo e denso onde é possível cruzar, numa unidade de sentido, por exemplo, as dimensões gnosilógica, ontológica, ética, estética e mística1.

Diante de um cruzamento tão grande de saberes e, principalmente,

frente a tantos estudos (artigos, livros, dissertações)2 que versam sobre o De docta

ignorantia ou sobre os temas ali encontrados, o que de novo temos nós a dizer sobre um livro tão amplamente estudado? É possível que não tenhamos nada de inusitado para dizer, porém, é sempre possível dizer o mesmo do melhor modo que possa ser dito (parafraseando uma expressão cusana repetida de várias maneiras ao longo desta obra). Ademais, qual a tarefa imperiosa de quem se debruça sobre o já pensado, o já escrito, o já lido, o já interpretado, senão reflectir meliori modo potest? Se não há nada de novo para ser pensado sobre o De docta ignorantia, apesar de acreditarmos que há, existe sempre algo de invulgar para ser repetido e isto, em Filosofia, não significa nenhuma contradição. É pensando desta forma que procuraremos, nesta parte do nosso trabalho, reflectir sobre as relações entre amor e

conhecimento no De docta ignorantia, acreditando que muito já foi exposto sobre o

conhecimento, mas pouco foi explorado sobre o amor. Destarte, limitar-nos-emos

1

A obra de J. STALLMACH, Ineinsfall der Gegensätze und Weisheit des Nichtwissens – Grundzüge der Philosophie des Nikolaus von Kues, Münster, Aschendorff-Verlag, 1989, por exemplo, dedica a primeira parte do livro (os três primeiros capítulos) ao tema da coincidência dos opostos e ao saber do não-saber apresentados sob três motivos: ontológico-metafísico, gnosiológico e místico-teológico. O livro não aborda somente o De docta ignorantia, pois procura mostrar o tema acima referido como fundamento da filosofia cusana, todavia, é possível perceber a importância que assume o De docta ignorantia – e os conceitos ali inaugurados – ao longo do sistema filosófico do Cusano.

2

Apenas para se ter uma ideia da importância que assumiu o De docta ignorantia no século XX, basta levarmos em conta que o livro foi traduzido não só para o alemão (o que seria natural), mas também para o inglês, o francês, o espanhol, o italiano, o tcheco, o búlgaro, o russo e o eslovaco. Recentemente foram feitas duas traduções para a língua portuguesa: uma no Brasil (tradução, prefácio, introdução e notas de R. A. ULLMANN, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2002); e outra em Portugal (tradução, introdução e notas de J. M. ANDRÉ, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003). Em relação aos estudos realizados sobre este livro, limitamo-nos a indicar as páginas das Philosophisch-theologische Werke, 2002, Band I, que traz algumas dezenas de títulos sobre A douta ignorância, pp. 129-142 (do final do Livro I); pp. 145-167 (do final do livro II) e pp. 163-172 (do final do livro III).

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ao que se refere àquelas relações e, posto isto, empreendamos, usando as palavras

de André, a aventura humana do saber3.

A obra em questão possui uma estrutura muito simples: três livros devidamente articulados e inter-relacionados nos seus 51 capítulos. De uma maneira geral, o primeiro livro aborda o tema de Deus, Máximo absoluto; o segundo trata do universo, denominado máximo contraído; e o terceiro, como uma espécie de mediação entre os temas dos dois primeiros livros, ocupa-se de Jesus Cristo, mediador entre o Máximo absoluto e o máximo contraído. Apresentado desta forma parece tudo muito simples, no entanto, a simplicidade é somente aparente, não só pelas dimensões e sentidos que na obra se cruzam, como já afirmamos, mas também pelos conceitos que ali se forjam, se desenvolvem e

ganham outros tantos contornos em outras obras para além de A douta ignorância.

Conforme já dissemos, não faremos uma análise exaustiva deste livro, mas tão somente procuraremos mostrar a importância do tema do amor, sobretudo, na sua relação com o conhecimento e, para isso, é preciso fazer referência às indicações que encontramos no próprio texto cusano. Sigamos, então, esses sinais e esperemos conseguir interpretá-los do melhor modo possível, entendendo como o nosso filósofo afirma que «todos os nossos doutores mais sábios e divinos estiveram de acordo em que as coisas visíveis são verdadeiramente imagens do invisível e que, assim, o criador pode ser cognoscivelmente visto pelas criaturas como que num

espelho e por enigmas»4.

Esta possibilidade de ver cognoscivelmente o criador relaciona-se ao amplexo amoroso que, por sua vez, é a forma como o intelecto apreende a verdade, constituindo assim um certo modo de raciocinar sobre as coisas divinas5.

Notemos, pois, que já no início de A douta ignorância Nicolau de Cusa insinua, no

3

Cf. J. M. ANDRÉ, trad., int. e notas de A douta..., op. cit., p. V. 4

«Consensere omnes sapientissimi nostri et divinissimi doctores visibilia veraciter invisibilium imagines esse atque creatorem ita cognoscibiliter a creaturis videri posse quasi in speculo et in aenigmate». De docta ignorantia, ed. minor, Liber primus, Cap. XI, 30: 4-7, p. 40. ANDRÉ, trad., pp 22-23.

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processo do conhecimento humano de Deus6, a importância do intelecto e do afecto.

Se é certo que aborda, explicitamente, pouquíssimas vezes a questão do amor nos dois primeiros livros, é certo, também, que na maioria das vezes em que o tema do intelecto se apresenta, este se mostra muito mais como incapaz de apreender Deus do que como a instância privilegiada para a visão deste. No entanto, antes de prosseguirmos é preciso esclarecer, pelo menos, duas das nossas colocações. Primeiro, que peso pode ter uma insinuação – já que afirmamos que o Cusano insinua uma relação entre o afecto e o intelecto – numa argumentação filosófica? Segundo, o que quer realmente significar uma incapacidade do intelecto, visto que, nesta mesma obra, o intelecto é mostrado como possuindo a natureza mais perfeita e mais nobre de entre as faculdades dos seres inferiores ao ponto de ser dito que a sua existência (natureza intelectual) é como uma espécie de ser divino, separado e abstracto7?

Comecemos com a primeira pergunta. Talvez “insinuação” não seja a palavra mais adequada ou, pelo menos, mais rigorosa quando tratamos de uma argumentação filosófica; entretanto, quando afirmámos que o filósofo de Cusa insinua uma relação de importância entre as instâncias do affectus e do intellectus

no processo da apreensão divina, queremos tão somente dizer que, embora o termo

amor não apareça, explicitamente e com frequência, nos primeiros livros de A douta

ignorância, a sua importância pode, perfeitamente, ser inferida por uma série de sinais que esta obra nos dá, sobretudo, se formos capazes de lê-la na sua totalidade, compreendendo que a significação dos três livros só faz sentido nas suas

inter-relações. Ora, nunca é demais lembrar a recorrência de termos como aenigma,

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Apesar de este primeiro livro ter a intenção de discorrer sobre o Máximo absoluto (Deus), o que acontece é que, ao tentar abordar a temática divina, o Cusano termina por fazer uma reflexão sobre as possibilidades de conhecer, humanamente, Deus. Assim também afirma André: «Em primeiro lugar, deve reter-se que, embora dedicado ao Máximo absoluto, o que no primeiro livro se evidencia é mais o saber máximo da nossa ignorância do que uma explanação do que seja esse Máximo absoluto». J. M. ANDRÉ, trad., int. e notas de A douta..., op. cit., p. XIII.

7

Para a ideia da natureza intelectual como sendo perfeita cf. De docta ignorantia, ed. minor, Liber secundus, Cap. XII, 169: 1-13, p. 100. Para a existência daquela natureza como ser divino cf. IDEM, ibidem, Liber tertius, Cap. IV, 205: 1-17, pp. 28-30.

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imago, speculum... que encontramos não só neste texto, mas ao longo de outros textos cusanos. Isso para não falar de alguns títulos dos seus livros que apelam para

ideias que sugerem ocultamento8, instrumento de busca e procura, como, por

exemplo: De Deo abscondito, De quaerendo Deum, De beryllo, De visione dei e De

venatione sapientiae. A própria expressão docta ignorantia é marcada por uma ausência, uma vez que ignorância significa, dentre outras coisas, uma falta de saber. É certo que não se trata só de ignorância, mas de uma ignorância douta e, desta forma, a expressão é grávida de significados. Sendo assim, ouçamos através de André, alguns desses significados: «Comecemos por atender ao próprio conteúdo da expressão “douta ignorância” enquanto saber da ignorância. Esse conteúdo comporta três dimensões, a saber: 1.º em termos genéricos, a “douta ignorância”

como saber da ignorância é um saber sobre o saber humano, ou seja, um saber que

reflecte sobre si próprio e sobre a sua situação face à verdade, e, como tal, é um

saber propedêutico; 2.º como saber da ignorância (genitivo subjectivo) é um saber,

comportando, por isso, mesmo uma dimensão positiva que, como veremos, abrirá a

via de uma “symbolica investigatio”; 3.º finalmente, como saber da ignorância

(genitivo objectivo) é um confronto com o limite em que a segunda dimensão se exerce e, enquanto tal, a instauração da distância como salvaguarda de um excesso relativamente ao qual só o silêncio, e o que o silêncio gera, se revelará fecundo, reassumindo-se nesta dimensão o motivo místico-teológico que introduz a “douta ignorância” no âmbito do debate entre a teologia positiva e a teologia negativa»9.

8

É sugestivo o estudo de Beierwaltes que percorre, de alguma forma, a ideia do ocultamento de Deus em Dionísio e em Nicolau de Cusa, terminando por relacionar o oculto à sua possibilidade de manifestação: «Dem zuvor unternommenen Versuch, den Grund der Verborgenheit Gottes zu entdecken, müßte jetzt ein anderer folgen, der die Ermöglichung eines stückweisen Zugangs zum an sich Unzugänglichen entfaltete: eine Reflexion über den sich offenbarenden, sich in Welt zeigenden, in der Heilsgeschichte als ›deus humanatus sive incarnatus‹ erscheinenden und wirkenden Gott. [...] Die selbstentbergung des Verborgenen ist also selbst der Grund dafür, daß er uns nicht dunkel, verschlossen, radikal abweisend bleiben muß, sondern vielmehr zu einer ›lux in tenebra nostra‹ oder gar – mit Dionysius gesagt – zu einem »überhellen Licht« werden kann». W. BEIERWALTES, Der verborgene Gott Cusanus und Dionysius, in: Trierer Cusanus Lecture, Heft 4, Trier, Paulinus-Verlag, 1997, p. 31.

9

J. M. ANDRÉ, Sentido, simbolismo e..., op. cit., p. 89. Para o desdobramento daquelas três dimensões, pp. 89-110; para o discurso verbal e matemático com símbolo, pp. 569-668; para A douta

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Não há dúvida de que as três dimensões expostas por André inter-relacionam-se, porém, gostaríamos de seguir um pouco mais de perto esta última, não só pelo motivo místico-teológico que comporta, como também pela própria ausência ou ocultação que naquela se manifesta. O próprio Nicolau de Cusa, no início do Livro I, depois de mostrar que o infinito escapa a qualquer proporção, afirma: «[...] a

sabedoria e o lugar da inteligência se ocultam «aos olhos de todos os viventes» »10.

Desta forma, quando dizemos que o Cusano insinua, queremos dar a entender que, assim como um enigma, há um sentido oculto por trás daquilo que aparece ou mesmo daquilo que é somente insinuado, apontado, indicado. Deste modo, por exemplo, no Cap. XI, Nicolau de Cusa fala das coisas visíveis como imagens do invisível e, no Cap. XXIV, apresenta as criaturas como vestígios da Trindade11, nas suas manifestações de ser, realizar-se e concordar com a ordem universal das coisas. É preciso, portanto, perseguir, auscultar, especular (espreitar, observar, prestar atenção) as imagens e os vestígios que se vão insinuando ao longo do texto e que comportam, do nosso ponto de vista, uma ausência e um silêncio. No entanto, ausência não quer significar vazio, nem silêncio quer significar

privação do falar, ou, como esclarece Álvarez-Gómez: «Que haja silêncio, que se

imponha e inclusive que reine o silêncio em torno de algo, não quer dizer que esse algo não exista, nem que, existindo, não se faça presente, nem sequer que, apesar de existir e fazer-se presente, seja indeterminado e por isso inexprimível. Pode ser que, sendo completamente determinado e estando efectivamente presente, se imponha até ao ponto de subtrairmos a possibilidade de uma linguagem

verdadeiramente indicadora da sua presença»12.

ignorância como filosofia da interpretação, pp. 737-769. 10

«[...] absconditam esse sapientiam et locum intelligentiae «ab oculis omnium viventium»». De docta ignorantia, ed. minor, Liber primus, Cap. I, 4: 6-7, p. 8. ANDRÉ, trad., p. 4.

11

Para os vestígios da Trindade, De docta ignorantia, ed. minor, Liber primus, Cap. XXIV, 81: 1-7, p. 102: «Unde ex eo deus pater est, quia genuit aequalitatem unitatis. Ex eo autem spiritus sanctus, quod utriusque amor est. Et haec omnia respectu creaturarum. Nam creatura ex eo, quod deus pater est, esse incipit; ex eo, quod filius, perficitur; ex eo, quod spiritus sanctus est, universali rerum ordini concordat. Et haec sunt in unaquaque re trinitatis vestigia».

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Há neste primeiro livro de A douta ignorância uma ausência e um

silêncio do amor e isto pode ser entendido de duas maneiras: a primeira delas é que

a ausência e o silêncio são uma amostra da insignificância do tema para o filósofo de Cusa, sendo numa leitura superficial a mais fácil de ser percebida. Porém, não parece ser a leitura mais correcta, uma vez que no Livro III desta obra há uma

verdadeira manifestação do amor. A segunda maneira consiste em ver o que se

oculta e ouvir o não dito. Ao contrário da anterior, esta é mais difícil de ser notada numa primeira leitura e, por isso, exige um esforço maior, não sendo ao acaso que o místico alemão afirma que nada é mais fácil do que especular sobre as coisas divinas, onde o deleite coincide com a dificuldade13. Fiquemos, então, com a dificuldade.

Ora bem, a ausência deve ser (nos dois primeiros livros) compreendida como a distância necessária a todo o filosofar que se quer rigoroso. Além do mais, comporta a separação indispensável entre criador e criatura, demarcando, de igual modo, o caminho a ser percorrido, bem como a meta a ser alcançada. Longe, portanto, de significar um vazio negativo, denota o sinal de algo que pode e deve ser buscado. Não será mesmo esse o sentido de um saber que se sabe ignorante? E, talvez, por isso mesmo, seja capaz de reconhecer nos seus limites a tarefa da Filosofia enquanto busca? Por isto, não é difícil relacionar a ausência à douta ignorância, nem tampouco à dimensão mística daquela. Por outro lado, em

termos linguísticos, se assim podemos expressar, a ausência do termo amor (amor,

caritas e dilectio) não pode, igualmente, significar um vazio negativo porque se assim fosse, o autor não abriria o Cap. I da sua obra asseverando a existência de um desejo natural em todas as coisas cujo objectivo é o de encontrar no amado o seu repouso, e, muito menos, afirmaria, logo depois disso, que o intelecto apreende a

verdade num amplexo amoroso14. Todavia, a ausência do termo só encontra

Da natureza do sagrado – homenagem a F. V. Jordão, vol. II, Porto, Fundação Engenheiro A. de Almeida, 1999, p. 767, pp. 765-788.

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Cf. Idiota de sapientia, h V, Liber secundus, 28: 10-11, p. 58. 14

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significado se a ela unirmos outros vestígios e é isso que pretendemos fazer na resposta ao nosso segundo questionamento (é possível falar de uma certa incapacidade do intelecto?). Por ora, retomaremos a ausência, agora sob o signo do silêncio.

Para isso, partiremos da ideia de que o homem diferencia-se dos outros animais não só por sua capacidade de pensar, como também, por sua capacidade de amar e, assim, o homem, diferentemente dos outros animais, é

ser-amante e ser-pensante15, muito embora, na maioria das vezes, sobretudo em se

tratando de Filosofia, raramente lembremos do ser-amante. Gostaríamos de acrescentar, agora, uma outra diferença que, da mesma forma, é poucas vezes lembrada: o homem como ser que cala. Expliquemo-nos. Sempre que paramos para pensar o homem (caracterizá-lo), o pensamos como uma criatura que fala, ou seja, dificilmente o caracterizamos como um ser que cala. O que distingue o homem dos outros animais não é só a fala, é, também, a sua capacidade de calar. Naturalmente, não se trata de um simples emudecer, mas de um calar essencial e necessário: essencial porque diz respeito ao ser-homem, necessário porque do seu vigor brotam todos os discursos. Deste modo, o homem não é só o único – de entre todos os animais – capaz de falar, mas é o único, também, capaz de calar, na medida em que consegue dar ao seu silêncio um sentido. Logo, a ausência pode, igualmente, ser percebida sob o signo do silêncio, todavia, do mesmo modo que aquela não significa um vazio negativo na filosofia cusana, este (o silêncio) não

rebus naturale quoddam desiderium inesse conspicimus, ut sint meliori quidem modo, quo hoc cuiusque naturae patitur condicio, atque ad hunc finem operari instrumentaque habere opportuna, quibus iudicium cognatum est conveniens proposito cognoscendi, ne sit frustra appetitus et in amato pondere propriae naturae quietem attingere possit. Quod si fortassis secus contingat, hoc ex accidenti evenire necesse est, ut dum infirmitas gustum aut opinio rationem seducit. Quam ob rem sanum liberum intellectum verum, quod insatiabiliter indito discursu cuncta perlustrando attingere cupit, apprehensum amoroso amplexu cognoscere dicimus non dubitantes verissimum illud esse, cui omnis sana mens nequit dissentire».

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É curioso notar que, já em um dos primeiros Sermões, a essência divina é apresentada como sumamente trina, inteligente e amante: «Et per rationes quidam investigaverunt Trinitatem, Patrem ingenitum, Filium unigenitum et Spiritum Sanctum procedentem ab utroque. Necesse est enim, quod in illa essentia divina, summa, perfectissima, sit summa intellegentia; quare: intellegens, intellegibile et intellegere, amans, amabile et amare». Sermão II, h XVI1, 4: 1-7, p. 22.

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expressa somente um emudecimento, mas a possibilidade e a plenitude de todos os discursos e de todos os sentidos16.

Portanto, o peso de uma “insinuação”, numa argumentação filosófica, assume, em se tratando da filosofia cusana, a mesma importância que tem os vestígios, os sinais, as imagens, a busca, a linguagem metafórica e o silêncio. Aliás, não é somente por uma mera coincidência que o nosso filósofo conclui este

primeiro livro de A douta ignorância com um capítulo dedicado à teologia negativa,

onde escreve: «A sagrada ignorância ensinou-nos que Deus é inefável; e isto porque é infinitamente maior do que tudo o que se possa nomear; e porque isto é sumamente verdadeiro, dele falamos de modo mais verdadeiro por remoção e negação, tal como o tão grande Dionísio quis que não fosse nem verdade, nem intelecto, nem luz, nem nenhuma dessas coisas que se podem exprimir com

palavras»17. Também não é menos curioso que André conclua a sua densa e

brilhante dissertação sobre o Cusano com o silêncio, di-lo: «A palavra não é a anulação do silêncio, é a sua fecunda interpretação. Porque, afinal, o silêncio não é

a negação do sentido, mas antes a sua plenitude»18.

Logo, não parece exagero, da nossa parte, a afirmação que fizemos no início deste capítulo e que dizia respeito ao nosso “método de investigação”:

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André, quando desenvolve a terceira dimensão da expressão “douta ignorância”, articulando-a já com o “discurso místico” do De visione dei, afirma, numa perfeita dialéctica entre discurso, sentido e silêncio: «Mediante a visão mística, a “douta ignorância” é conduzida ao silêncio contemplativo. Mas esse silêncio, ao mesmo tempo que surge como termo de um discurso, aparece como gerador de novos discursos. É um silêncio fecundante, que no Verbo de todos os verbos origina novos verbos, que se sabem verbos de um indizível verbo. É, afinal, um silêncio hierofânico, em que o discurso cessa perante a plenitude do sentido, para permitir a irrupção dos sentidos que, sem a exprimir e com essa mesma consciência da sua inexpressibilidade, a exprimam». J. M. ANDRÉ, Sentido, simbolismo e..., op. cit., p. 106.

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«Docuit nos sacra ignorantia deum ineffabilem; et hoc, quia maior est per infinitum omnibus, quae nominari possunt; et hoc quidem quia verissimum, verius per remotionem et negationem de ipso loquimur, sicuti et maximus Dionysius, qui eum nec veritatem nec intellectum nec lucem nec quidquam eorum, quae dici possunt, esse voluit». De docta ignorantia, ed. minor, Liber primus,