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Causa-nos um certo estranhamento o esquecimento quase absoluto

de Nicolau de Cusa nas obras dedicadas ao amor na Idade Média49. Esquecimento

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Sobre o esquecimento do nosso filósofo, não no tocante a esse aspecto específico, veja-se o capítulo I da dissertação de J. M. ANDRÉ, Sentido, simbolismo e interpretação no discurso filosófico de Nicolau de Cusa, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. Neste capítulo, o autor aborda

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para o qual levantamos algumas hipóteses: a) a dificuldade que alguns estudiosos têm para situar o pensamento cusano na História da Filosofia; b) a impossibilidade de extrair da filosofia de Nicolau de Cusa algo de importante sobre o tema do amor ou, em outras palavras, algo que fundamente uma hermenêutica do amor na sua obra; c) parafraseando Gómez, o esquecimento deve-se a uma deficiente perspectiva

de investigação50. Tentemos reflectir um pouco melhor sobre estas hipóteses.

O lugar do pensamento cusano na História da Filosofia não é ponto pacífico entres os estudiosos. Há quem o situe no final da Idade Média, outros no início de uma nova era e outros ainda, como Windelband, como uma cabeça com duas faces que olha tanto para o passado como para o futuro, ou seja, como uma

filosofia de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna51. Do ponto de vista

de uma mera localização temporal, todos esses lugares estão correctos. Por isso, talvez, Colomer, retomando uma fórmula de Eucken, torne a defender e a caracterizar Nicolau de Cusa como «um pensador na fronteira de dois mundos»52. Para Colomer é uma fórmula deveras repetida, mas nem por isso deixa de ser verdadeira, tanto é, que ele volta a esta mesma fórmula num outro estudo, onde não só situa o Cusano entre dois tempos, como também mostra que o tema do homem,

em Nicolau de Cusa, situa-se entre dois pólos: Deus e o mundo53. Àquela fórmula,

com muita pertinência, com uma rica e precisa bibliografia, o esquecimento filosófico da obra de Nicolau de Cusa do século XV ao XVIII e sua posterior recuperação na segunda metade do século XIX até o final do século XX.

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Cf. M. ÁLVAREZ-GÓMEZ, «Añoranza y conocimiento de Dios», in: IDEM, Pensamiento del ser y espera de Dios, Salamanca, Sígueme, 2004, pp. 67-101. Neste capítulo dedicado ao desejo em Nicolau de Cusa, Álvarez-Gómez afirma, no início do texto, que apesar de o desejo ser um tema central da obra cusana, até agora foi muito pouco estudado e aponta para esta falta de interesse quatro causas, dentre estas, uma deficiente perspectiva de investigação, cf. p. 67.

51

Cf. E. COLOMER, «Nicolau de Cusa (1401-1464) um pensador…, art. cit., p. 387-435. Veja-se também, E. VANSTEENBERGHE, Le cardinal Nicolas de Cues…, op. cit. e J. M. ANDRÉ, Sentido, simbolismo e…, op. cit., Cap. I, item 3, pp. 45-58.

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E. COLOMER, «Nicolau de Cusa (1401-1464) um pensador...», art. cit., p. 387. 53

«Nikolaus von Kues ist auch ein Denker zwischen zwei Zeiten. Es ist fragwürdig, ob seine Philosophie den Höhepunkt des Mittelalters oder den Anfang der Neuzeit bedeutet, oder ob sie nicht beides gleichzeitig ist, so wie es auf eine Epoche paßt, in der sich das Alte und Neue unlöslich miteinander verbinden. [...] Diese Dialektik von Ganzheit und Eigenart – Angelpunkt der Philosophie des Cusanus – wird besonders deutlich im Thema des Menschen. Das cusanische Menschenbild entspricht seinem Bild von Gott und der Welt. Aus diesem Grund definiert er den Menschen durch sein polares Verhältnis zu Gott und zur Welt». E. COLOMER, «Das Menschenbild

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Bormann acrescenta uma interrogação à sua primeira parte da introdução as

Philosophisch-theologische Werke (Nikolaus von Kues): «I. Zwischen Mittelalter und Neuzeit?» e escreve, dentre outras coisas, que seria precipitado querer localizar o pensamento cusano entre estes dois períodos da História da Filosofia porque, deste modo, o pensamento Medieval se faria acompanhar do Moderno. Acrescenta, ainda, que a fórmula (forjada por Eucken e assumida por muitos) tornou-se moda

nos últimos tempos, mas que é necessário usá-la com cautela54.

A classificação de um pensamento filosófico dentro de um determinado período de tempo é tão problemática quanto a própria divisão da História da Filosofia. No entanto, não é aqui o lugar para discutirmos esta questão que não é somente histórica como também polémica. Entramos nesta discussão unicamente com o intuito de entender a ausência do nosso filósofo nos textos gerais sobre o amor na Idade Média ou no Cristianismo e levantamos uma primeira hipótese desta ausência: a não consideração de Nicolau de Cusa como um filósofo medieval ou a dificuldade de situar o seu pensamento na História da Filosofia. É interessante notar que um dos maiores estudiosos da Filosofia Medieval, E. Gilson, não parece situar o Cusano neste período, uma vez que o mesmo não está presente na sua grandiosa obra, intitulada, A Filosofia na Idade Média55. Entretanto, num

outro livro, intitulado, História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de

Cusa56, Gilson, juntamente com Boehner, dedica um capítulo ao filósofo de Cusa. Excesso de cautela? Talvez. O facto é que o Cusano, temporal e filosoficamente,

des Nikolaus von Kues in der Geschichte des Christlichen Humanismus», in: Mitteilungen und Forschungsbeiträge der Cusanus-Gesellschaft, 13 (Die Referate des Symposions in Trier vom 6.-8. Oktober 1977), 1978, p. 126, pp. 117-143. A partir de agora esta coletânea será designada pela sigla MFCG, seguida do número do volume, do ano e dos números de páginas.

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Reproduziremos, aqui, as passagens que acabamos de resumir: «Voreilig wäre auch, das philosophisch-theologische Denken des Cusanus zwischen Mittelalter und Neuzeit lokalisieren zu wollen, weil durch ihn mittelarterliches Denken in die Neuzeit übergeleitet worden sei. [...] – Seit einer Reihe von Jahren ist es fast Mode geworden, Cusanus als den Vorläufer der Moderne oder als »Pförtner der neuen Zeit« usw. auszugeben; daß bei der Zuerkennung derartiger vermeintlicher Ehrentitel größte Vorsicht geboten ist, hat jüngst Hans Gerhard Senger überzeugend nachgewiesen». K. BORMANN, Einleitung von Philosophisch-theologische Werke, Band I, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 2002, pp. VIII e IX.

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E. GILSON, A filosofia na Idade Média, trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes, 1995. 56

P. BOEHNER e E. GILSON, História da Filosofia Cristã, desde as origens até Nicolau de Cusa, trad. Raimundo Vier, Petrópolis, Vozes, 1991.

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como já aludimos, é um pensador «na fronteira de dois mundos» sem, naturalmente, ter consciência disso: «[...] – ele vive simultaneamente, e de certo sem ter consciência, num horizonte histórico que junta ao «Outono» da Idade Média a

«Primavera» do mundo moderno»57.

Como precisamos pensá-lo a partir do seu tempo, não podemos não pensá-lo entre estes dois períodos, o Medieval e o Moderno. E o que quer isto significar? Que a sua mundividência é medieval, que as influências sofridas lhe vêm não só do neoplatonismo proclo/pseudo-dionisiano, como também de filósofos, na sua maioria, medievais, como Agostinho, Escoto Eriúgena, Raimundo Lúlio, Alberto (o grande), Mestre Eckhart e Hugo de São Victor, dentre outros. Consequentemente os temas da sua filosofia também são medievais, de um

medievalismo profundamente cristão58, não por ser um homem da igreja e um

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E. COLOMER, «Nicolau de Cusa (1401-1464) um pensador...», art. cit., p. 387. Sobre este aspecto, escreve Beierwaltes: «El Cusano no representa un ‹otoño de la Edad Media› que muera en un invierno que rechaza de sí su pensamiento, pero tampoco una primavera de la modernidad que irrumpa súbitamente. Más bien, como sobre todo tiene que parecernos a nosotros, considerándolo retrospectivamente, representa un productivo ‹interludio de las épocas›, que reflexiona cuidadosamente sobre la tradición y que al mismo tiempo la prosigue determinando, una irrupción, que se realiza desde raíces profundas en lo antiguo pensado críticamente hasta el fondo y asimilado aprobatoriamente, hacia nuevos campos y modos de proceder de un pensamiento que se hace cada vez más consciente de sí mismo como nuevo y distinto». W. BEIERWALTES, «Nicolás de Cusa: innovar inteligiendo desde la tradición, mostrado paradigmáticamente en su pensamiento de lo uno», in: Cusanus-Reflexión metafísica y espiritualidad, trad. A. Ciria, Pamplona, Eunsa, 2005, p. 66, pp. 44-66. Embora pareça uma crítica à colocação de Colomer, do nosso ponto de vista é somente um esclarecimento.

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Não queremos com isto dizer que a Filosofia Medieval resume-se ao Cristianismo, nem tampouco afirmar que Nicolau de Cusa perceba na filosofia do seu tempo somente o Cristianismo, bastando para isso, mencionarmos a importância que o tema do diálogo inter-religioso recebeu nas suas obras, principalmente em De pace fidei e em Kribratio Alkorani. Daí o grande número de trabalhos existentes sobre a reflexão cusana acerca de outras religiões. Somente para ilustrar, alguns artigos que se encontram em: Ramon Llull und Nikolaus von Kues: eine Begegnung im Zeichen der Toleranz, in: E. BIDESE et al. (Hrsg.), (Akten des Internationalen Kongresses zu Ramon Llull und Nikolaus von Kues, Brixen und Bozen, 25.-27. November 2004), Turnhout, BREPOLS, 2005. Também, R. GUERERO, «¿Docta ignorancia en el neoplatonismo árabe?», in: J. MACHETTA e C. D’AMICO (Eds.), El problema del conocimiento en Nicolás de Cusa: genealogía y proyección, Buenos Aires, Biblos, 2005, pp. 67-84. Acerca da Filosofia Medieval e da tentativa de reduzi-la ao Cristianismo, concordamos com Libera quando este afirma que «la première chose que doit apprende un étudiant qui aborde le Moyen Age est que le Moyen Age n’existe pas. La durée continue, le référentiel unique òu l’historien de la philosophie inscrit la succession des doctrines et des trajectoires individuelles qui, à ses yeux, composent une histoire, l’«histoire de la philosophie médiévale» n’existent pas. Il y a plusieurs durées: une durée latine, une durée grecque, une durée arabo-mulsumane, une durée juive». A. LIBERA, La philosophie Médieval, Paris, PUF, 1993, p. XII. Beierwaltes, por sua vez, a respeito do lugar da filosofia cusana e também sobre a questão da

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cristão convicto, mas porque, como escreveu André com muita lucidez: «a sua mundividência é uma mundividência cristã e é por isso que não são motivos meramente externos os que levam a definir Nicolau de Cusa como um filósofo cristão. [...] É antes por tomar como principal tarefa o pensar com radicalidade a novidade filosófica do Cristianismo que ele pode ser considerado um filósofo

cristão»59. Acreditamos que o “pensar com radicalidade” é válido, também, para o

tema do amor, uma vez que o próprio Cristianismo assim o faz quando o coloca como o maior dos seus mandamentos. Ideia retomada pelo Cusano e repensada do

ponto de vista de uma ética do amor60. Além disso, podemos afirmar,

indubitavelmente, que Jesus Cristo é o centro da concepção místico-filosófica do nosso pensador. Ora, se Colomer, como aludimos, num sentido mais

antropológico61, coloca a temática sobre o homem num lugar de destaque na

filosofia cusana, e, neste contexto, mostra-o ocupando um lugar entre o mundo e Deus; num sentido mais místico-teológico, Reinhardt diz ser Cristo o centro da

filosofia de Nicolau de Cusa, e, coloca-o (num artigo que tem como base o De

visione dei) entre o homem e Deus62. Neste mesmo sentido, porém num outro

delimitação dos momentos históricos, escreve: «Por eso, en la determinación del ‹comienzo› de la época de la ‹modernidad›, y en el análises de los conceptos, preguntas, problemas y estructuras de pensamiento que guían esta época, sigo la tesis de que en ella hay que pensar la continuidad con la tradición filosófica a pesar de y en la discontinuidad. Intentos de una delimitación epocal nítida y presuntamente unívoca se evidencian – hay que ser consciente de esto – como ficción historicista». W. BEIERWALTES, «Nicolás de Cusa: innovar inteligiendo...», art. cit., pp. 49-50.

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J. M. ANDRÉ, Sentido, simbolismo e..., op. cit., p. 65. 60

Para as relações entre o tema do amor e a ética cusana, veja-se W. DUPRÉ,«Liebe als Grundbestandteil allen Seins und »Form oder Leben aller Tugenden« », in: MFCG (26), 2000, pp.65-99. Aliás, todo este volume dos MFCG (26) é dedicado ao tema da ética em Nicolau de Cusa. Também não podemos deixar de fazer referência ao estudo de H. G. SENGER, «Zur Frage nach einer philosophischen Ethik des Nikolaus von Kues», in: Wissenschaft und Weisheit. Zeitschrift für Augustinisch-Franziskanische Theologie und Philosophie in der Gegenwart (33), U.S.A., Sonderdruck, 1970, pp. 5-25 e 110-122, que chega mesmo a dedicar toda a última parte a uma ética do amor (VI. Die Liebesethik). Veja-se ainda, P.-T. SAKAMOTO, «Die theologische und antropologische Fundierung der Ethik bei Nikolaus von Kues», MFCG (10), 1973, pp. 138-151. Este último texto não é, exactamente, sobre uma ética do amor, mas tece considerações sobre a importância da caridade na ética cusana, bem como dedica a sua última parte à coincidência entre iustitia e caritas.

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A propósito, Gadamer afirma que a antropologia cusana é uma cristologia: H. GADAMER, «Nicolás de Cusa y la filosofía del presente», in: Folia Humanistica (II), 1964, pp. 929-937.

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K. REINHARDT, «Christus, die „absolute Mitte” als Mittler zu Gotteskindschaft» in: MFCG (18), 1989, pp. 196-226.

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estudo sobre o cusano, chega a afirmar: «Pode-se falar de um cristocentrismo no sentido restrito somente quando Cristo é compreendido não só como o meio da ordem da salvação sobrenatural, mas como o meio de toda a criação e, de certo modo, também como o meio do próprio Deus absoluto. Voltada para a teoria do conhecimento, o pensamento sobre Deus e o mundo, isto é, tanto o teológico como o filosófico, encontra a chave para a solução de todas as perguntas em Cristo»63. Logicamente, dizer que Cristo é o centro do pensamento cusano pode dar margens a interpretações meramente teológicas, o que pode levar, por sua vez, a uma deficiente perspectiva da obra do filósofo alemão. Neste sentido, é muito elucidativo, diríamos mesmo, imprescindível, o estudo de Beierwaltes sobre a relação entre teologia e filosofia em Nicolau de Cusa. Ali, o autor mostra aquela relação como uma relação dialógica, e, deste modo, fé e saber, compreender e crer, crer e compreender, autoridade e razão, revelação e livre reflexão são forças do pensamento que operam em conjunto e, assim operando, fomentam e clarificam, através de um olhar comum (e acrescentamos nós, necessário), a obra do pensamento cristão64.

Em meio a tantos estudos sobre o tema, vejamos, para encerrar esta apresentação sobre o lugar de Cristo na filosofia cusana (e com ele as relações entre fé e razão ou entre teologia e filosofia), as próprias palavras do cardeal alemão que bem poderiam ser extraídas do De docta ignorantia, uma vez que este livro, por tudo que apresenta e como apresenta, é a referência sempre citada, ou pelo menos, nunca esquecida quando se trata de falar sobre o lugar de Cristo na filosofia cusana. Exactamente por isso usaremos uma passagem dos Sermões para expressar o pensamento de Nicolau de Cusa sobre esse assunto. Para algumas formulações sobre as palavras de Isaías 7, 9 «nisi credideritis, non intelligetis» indicamos os

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K. REINHARDT, «Jesus Christus Herz der cusanischen Theologie», in: MFCG (28), 2003, p. 166, pp. 165-187. Além do mais, sobre o tema de Cristo como centro da filosofia cusana há numerosos estudos, para ilustrar acrescentamos mais dois: R. HAUBST, «Die Wege der christologischen manuductio», in: MFCG (16), 1984, pp. 164-191; H. MEINHARDT, «Der christologische Impuls im Menschenbild des Nikolaus von Kues», in: MFCG (13), 1978, pp. 105-116.

64

W. BEIERWALTES, «Das Verhältnis von Philosophie und Theologie bei Nicolaus Cusanus», in: MFCG (28), 2001, pp. 65-102.

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Sermões XXXI, XLI e XVI. Também na direcção dessas formulações, mas melhor

desenvolvidas no contexto das relações entre fé e razão, os Sermões IV e XXII. Por

fim, no Sermão CLXXXVII, afirma o Cusano:

«Portanto, quem crê que Jesus é filho de Deus e crê que os sagrados evangelhos são verdadeiros, tem uma existência na qual o espírito é confortado na doçura daquela. Pois, assim como não há nenhuma comparação do filho de Deus aos filhos dos homens, do mesmo modo, não há nenhuma comparação do ensino de Cristo e do ensino dos filósofos. Aquele observa que toda a escritura sagrada serve ao evangelho e todo o ensino dos filósofos é vazio, vão e sem espírito que vivifique e alegre»65. Nestes termos, filosofia e teologia caminham dialogicamente e complementam uma a outra, uma vez que uma filosofia sem esse espírito da fé que a torne viva é vazia e vã; por outro lado, uma fé que não seja pensante, isto é, que não se permita pensar com radicalidade os seus fundamentos para melhor compreendê-los e vivê-los, é cega.

No entanto, ao não colocar o problema da prova ou das provas da existência de Deus (questão colocada por muitos pensadores medievais, sobretudo pelos Escolásticos)66, mas sim reflectir sobre a possibilidade do conhecimento de Deus, Nicolau de Cusa está no limite entre o Medieval e o Moderno, pois esta forma de pensar reflecte-se na própria possibilidade de pensar o conhecimento do

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«Qui igitur credit Jesum Filium Dei et sacra credit evangelia esse vera, habet, in quo spiritus eius dulcissime solatiatur. Nam sicut nulla est comparatio Filii Dei ad filios hominum, ita nulla comparatio doctrinae Christi et philosophorum. Ille intuetur omnem scripturam sacram servire evangelio et omnem philosophorum doctrinam esse vacuam et vanam et sine spiritu vivificante et felicitante». Sermão CLXXXVII, h XVIII4, 16: 1-9, p. 351. Na sequência do texto, para além da importância da fé, o Cusano fala, também, da importância do amor, unindo fé, amor e conhecimento na visio dei: «Ille clare experietur quod per fidei certitudinem ad dilectionem Dei pervenitur et quod cum dilectione in fide radicata venit visio intellectualis sive cognitio. Nam fides viva per caritatem continue pergit ad visum et cognitionem. Rapitur enim amorosus spiritus, in quo per fidem habitat Jesus, usque ad visionem, quae est degustatio praeambula felicitatis aeternae, quam exspectamus». IDEM, ibidem, 16: 9-16, p. 351. Podemos ilustrar, ainda, a importância de Cristo no pensamento cusano com uma passagem do Sermão XXXV que afirma: «Quod quia humana natura sola non habuit, quae nec sine debita satisfactione reconciliari [non] poterat, ne iustitia Dei in regno suo peccatum inordinatum relinqueret, subvenit bonitas Dei. Et eam in suam personam assumpsit Filius Dei, ut in ea persona esset homo Deus, qui haberet, quod superaret non solum omnem essentiam, quae Deus non est, sed etiam omne debitum, quod peccatores solvere debent». Sermão XXXV, h XVII1, 3: 28-36, p. 64.

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Para as diferenças entre a filosofia cusana e a filosofia escolástica, cf. C. VALVERDE, «La radicalidad del pensamiento de Nicolás de Cusa y la Escolastica» in: Nicolás de Cusa en el V Centenario de su muerte, vol. I, Madrid, Instituto “Luis Vives” de filosofia, 1967, pp. 89-97.

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conhecimento que, em última instância, recai sobre uma reflexão do próprio homem, das suas possibilidades e dos seus limites. Numa leitura superficial, a reflexão última sobre o homem e seus limites parece somente um pequeno desvio na História da Filosofia. Porém, se alargarmos as consequências disto que parece uma pequena mudança de rota, perceberemos que implicará, posteriormente, na transição da Idade Média para a Modernidade, pois passa-se da metafísica do Ser,

pautada no Esse, para uma metafisica do sujeito centrada no homem e no seu

poder67. Passa-se de uma ontologia substancialista para uma ontologia relacional e

passa-se, parafraseando o título de um livro de Alexander Koyré, do mundo fechado ao universo infinito. Sobre esta ideia é importante ressaltar que o Cusano ousa dar ao infinito um carácter positivo até então somente atribuído por alguns pré-socráticos e por Plotino; a Idade Média, de uma maneira geral, manteve o carácter negativo atribuído ao infinito pelas teorias socrático-platónico-aristotélicas. Todas essas possibilidades fizeram com que muitos, como já frisamos, vissem na filosofia cusana não mais a expressão de um pensamento medieval, mas de um pensamento moderno. Volkmann-Schluck, por exemplo, vê no Cusano uma antecipação da

metafísica moderna, pautando-se, primeiramente, na questão da subjectividade68.

Por sua vez, Colomer concorda com essa leitura de Volkmann-Schluck, porém, chama-nos atenção para dizer que o pensamento cusano aparecerá, simultaneamente, vinculado essencialmente à grande corrente medieval na sua

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Sobre a ideia de uma metafísica do poder em Nicolau de Cusa, veja-se: M. ÁLVAREZ-GÓMEZ, «Zur Metaphysik der Macht bei Nikolaus von Kues», in: MFCG (14), 1980, pp. 104-112.

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Cf. K.-H. VOLKMANN-SCHLUCK, «Die Philosophie des Nicolaus von Kues. Eine Vorform der neuzeitlichen Metaphysik», in: Archiv für Philosophie (3), 1958, pp. 379-458. No mesmo direccionamento, cf. W. SCHULZ, Der Gott der neuzeitlichen Metaphysik, Pfullingen, Neske, 1957, pp. 11-30. Um outro estudo, E. FRÄNTZKI, Nikolaus von Kues und das Problem der absoluten Subjektivität, Meisenheim am Glan, Verlag Anton Hain, 1972, aborda o tema da subjectividade