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As Representações Sociais, a Mídia, a Moda e o Sujeito Obeso

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E A OBESIDADE

2.2.3 As Representações Sociais, a Mídia, a Moda e o Sujeito Obeso

A mídia exerce forte papel no fenômeno social da obesidade como construtora e disseminadora dos padrões sociais de beleza e saúde, reforçando-as e tendendo a excluir os sujeitos que não se enquadram nesse perfil. Moscovici (1961/2012) além de investigar as representações sociais sobre a psicanálise em dados grupos, também tentou compreender como ela circulava na mídia. Assim, viu surgir três sistemas de comunicação. Na difusão, o objetivo principal é falar sobre o objeto, não criar comportamentos unitários. Por diversas vezes, há a utilização da autoridade de um especialista para conferir legitimidade aos conteúdos expressos. A difusão concerne às massas, ou seja, “o agregado de grande parte da população de um país ou de uma cidade, que possui composição heterogênea, distribuída em grandes espaços, cuja organização em alguns planos é bastante frouxa (...) e os indivíduos (...) pertencem a grupos bastante diversos” (MOSCOVICI, 1961/2012, p. 291). Essa forma de comunicação possibilita a construção de opiniões sobre o objeto em questão.

Por sua vez, na propagação, há uma linguagem clara e um contexto que supõe a existência de normas cognitivas e sociais comuns, e o grupo a quem ele se dirige é determinado e relativamente organizado. A fonte de comunicação é investida de uma autoridade indiscutível e se utiliza das publicações como um instrumento para disseminar seus

pressupostos. Por essas razões, Moscovici considera que a propagação gera atitudes com relação ao objeto. A propaganda seria instrumento e expressão do grupo, e seu objetivo seria a produção de uma conduta, de uma ação, pela criação ou modificação da representação social do real. Surgem os estereótipos na medida em que se apresentam apenas duas opções para o grupo, uma oposta à outra, fazendo com que os sujeitos integrem totalmente uma visão ou refutem-na completamente.

Mesmo que a mídia não consiga determinar como as pessoas vão pensar, ela tem o poder de, ao menos, dizer aos seus espectadores sobre o que eles devem pensar (JUSTO, 2016). O sentido negociado pelas ciências da saúde e a mídia é de que as pessoas são responsáveis pela sua saúde e seu corpo. Por isso, há uma grande produção de conteúdos sobre essa temática. É crescente o número de pesquisas, estudos, reportagens e propagandas que enfatizam o corpo, a vida saudável, o emagrecimento e a “boa forma”. Só dependeria de cada um alcançar tais padrões e viver da maneira correta. Tal discurso tem relação com o modo como a sociedade atual vem se configurando, baseada no consumo.

Necessidades artificiais que antigamente não existiam têm surgido, impostas pelo sistema de produção, como as multinacionais, a publicidade e a moda. As pessoas têm transitado entre a necessidade vital de comer e o tipo de alimentação estabelecido como adequado, como produtos lights, diets e sem glúten, por exemplo. Não basta ser ordinário em nossa cultura, busca-se uma forma de se destacar e os bens materiais têm sido a maneira mais eficiente para tal, pois a ideia é que os atributos excepcionais do objeto sejam transferidos para seu proprietário (ESTANISLAU, 2014).

A publicidade aparece atualmente como uma das narrativas de excelência. Ela tem como um dos seus principais objetivos vender o ideal de felicidade e, por isso, é necessário que ela esteja em todos os lugares. Havendo considerável circulação de pessoas, lá está a publicidade, quase que onipresente. E assim, ela vai, além de indicando produtos a serem consumidos, ditando os ritmos da vida, moldando a sociedade com base no consumo (ESTANISLAU, 2014). Estar bem com o próprio corpo é fundamental para estar feliz e viver como nas propagandas, mesmo que, para isso, sejam altos os investimentos em tempo, dinheiro e afetos.

Ainda é pequeno o número de pessoas com sobrepeso nos anúncios publicitários, porque, para vender produtos, é preciso passar a ideia de credibilidade e beleza, a fim de que o desejo por tal item seja despertado no consumidor. Procura-se, nas campanhas, figuras que o cidadão comum possa admirar e essas seriam mulheres e homens brancos, jovens, magros,

fortes e saudáveis (SILVEIRA, 2013). Pessoas obesas são antagônicas a tais valores, como já amplamente explicitado. Devido aos seus estereótipos, a mídia e a publicidade relegaram ao sujeito gordo um outro lugar, secundário, desvalorizado e esvaziado de potenciais.

Ainda em 2003, Greenberg e colaboradores examinaram a distribuição e as características individuais de personagens com diferentes tipos de corpos, exibidos nos horários nobres da televisão norte-americana entre os anos de 1999 e 2000. Eles avaliaram pouco mais de mil personagens, constatando que 14% das mulheres e 24% dos homens tinham sobrepeso ou eram obesos, prevalência essa que não corresponde ao observado na população em geral. No caso das personagens femininas, elas foram menos propensas a serem consideradas atraentes, a interagirem com parceiros românticos e vivenciarem afetos físicos. O mesmo foi percebido nos personagens masculinos, além de eles aparecerem em mais cenas comendo que os demais personagens. Os estudiosos concluíram que tais personagens foram, basicamente, associados a características negativas.

Um estudo publicado por Melo, Farias e Kovacs em 2017 se deteve sobre 20 propagandas veiculadas na televisão que tinham como protagonistas indivíduos gordos. Eles analisaram as características desses personagens e perceberam que os atores desempenham papéis baseados nos estereótipos de “cômico”, um sujeito engraçado, palhaço, atrapalhado ou bobo; “estranho”, sendo ele censurável, repugnante ou preguiçoso; ou “fraco”, que seriam relaxados, sem noção ou incapazes. Nas peças publicitárias investigadas, os protagonistas obesos têm sua imagem utilizada para atrair a atenção do consumidor através do papel de ridículo, evidenciando, como no estudo anteriormente citado, a atribuição de traços negativos ao indivíduo obeso.

Atualmente, as indústrias da beleza e do emagrecimento já rotulam como “fora do padrão” mesmo as pessoas que não são obesas, mas não são magérrimas ou apresentam o mínimo de sobrepeso, e já as enquadram em categorias de menor valor e prestígio social (ESTANISLAU, 2014). Percebe-se que há grande interesse de tais indústrias em venderem a imagem de um corpo magro e de dado estilo de vida fitness como as ideais para que grande parte da população, a qual não está incluída nessa categoria, queira se encaixar e compre todas as soluções oferecidas para isso, desde cremes, roupas, alimentos, academias até a cirurgia bariátrica (FIGUEIREDO, 2009).

Concomitantemente a isso, a indústria também começou a considerar a parcela do grupo de obesos que decidiu aceitar sua condição e viver da melhor forma possível, se configurando como um público consumidor de produtos que valorizam sua beleza e atuam

para promover seu bem-estar (ALMEIDA, A. et al, 2006). Algumas marcas de vestuário vêm incorporando, em suas propagandas, mulheres de corpos diversos, os quais já aparecem nas campanhas representadas como uma pessoa bem resolvida, independente, segura e confiante. A intenção das marcas é gerar uma identificação nas clientes, estimulando-as à compra dos produtos para sentirem-se como nas propagandas. O objetivo das empresas é, obviamente, aumentar seus lucros, mas tais peças podem contribuir para uma maior valorização e o empoderamento dos diferentes tipos e formatos de corpo (SCUSSEL; DELLAGNELO, 2018).

Já se observam mais personalidades midiáticas que decidiram assumir seus corpos “fora do padrão” em seus trabalhos e principalmente nas redes sociais, publicando fotos e vídeos que refletem suas reais imagens e rotinas. Contudo, ao mesmo tempo em que tais posicionamentos suscitam identificação de diversas pessoas e permitem que elas também se relacionem melhor com seus corpos, geram também inúmeras críticas de pessoas que não aceitam a mudança dos padrões e as atacam, muitas vezes, de maneira violenta e impiedosa.

Um caso recentemente noticiado8 é o da dançarina Thaís Carla, que alcançou projeção

nacional por compor o grupo de dançarinos da cantora Anitta e ser considerada uma “gorda maior”, ou seja, ter IMC acima de 45. Em suas redes sociais, ela se diz militante do movimento plus size e publica diversos conteúdos sobre sua vida e a relação com seu corpo. Thaís Carla é casada com um homem eutrófico (que tem peso considerado normal e baixo percentual de gordura) e está grávida do seu segundo filho. Ela diz que é comum ser alvo de xingamentos, humilhações, críticas e preconceitos exclusivamente devido ao seu corpo e estilo de vida, e não aceitar que o seu corpo, por si só, gere tantos incômodos e agressões.

A mídia tomou para si a capacidade de legislar sobre o uso do corpo. E, na maioria das vezes, as publicações de imagens e estilos de vida, geralmente de pessoas públicas, são irreais, se utilizando de softwares para edição de imagem, exaltando-se um padrão de beleza inatingível (GIOIA-MARTINS, 1998). Contudo, tais efeitos são bastante reais, pois quanto maior a exposição à mídia e seus ideais, maior a insatisfação corporal, principalmente entre as mulheres (VAUGHAN; FOUNTS, 2002 apud ALVES, et al., 2009).

Indo além, conceitua-se moda como um fenômeno social caracterizado pelas mudanças cíclicas de costumes, hábitos, gostos e escolhas da população em geral (CALANCA, 2008 apud AZEVEDO, GIULIANO, STEFFEN, 2017). Ela atua como

8 Disponível em <https://revistaquem.globo.com/QUEM-News/noticia/2019/02/thais-carla-revela-serie-de-

importante regulador social, desde os seus primórdios, nos séculos XV e XVI, quando a burguesia europeia passou a ter poder econômico e assim, consumir alguns produtos que antes eram restritos à aristocracia, como os tecidos. A elite, até então a única detentora do poder econômico, político e social, se utilizava das vestes como uma forma de exibir sua riqueza, e as vestimentas seguem como o maior símbolo do fenômeno da moda. Segundo Godart (2010, apud MOURA, 2018), o princípio fundador da moda é a ostentação, visto que ela se configuraria como um elemento visível e facilmente interpretável por todos na disputa de poder entre as classes.

Das sociedades pré-industriais até os dias atuais, é possível distinguir a classe social de pertença do indivíduo a partir de sua roupa. Georg Simmel (1911/2008), um dos primeiros teóricos a se debruçar sobre o estudo da moda por um viés sociológico, postulava que a moda surgiu da necessidade das classes superiores de se diferenciar das menos favorecidas ou das classes em ascensão, no intuito de continuar gozando publicamente de seu prestígio. Ela segue atuando entre o indivíduo e a sociedade, desempenhando um papel relevante na construção identitária, na medida em que, por meio da roupa, é possível expressar-se e comunicar-se intra e intergrupos. A escolha das vestimentas indica como os indivíduos veem a si mesmos, seu grupo e os valores sociais dominantes (CRANE, 2008 apud AZEVEDO, GIULIANO, STEFFEN, 2017).

Atualmente, a moda atua como um sistema de regulação e pressão social, visto que as mudanças por ela criadas são acompanhadas pelo dever de adesão. Isso acontece porque as pessoas desejam se assemelhar àquelas que ocupam posição de destaque social, por seus recursos políticos, econômicos ou culturais, e que se utilizam da moda como forma de expor tais recursos. Quando há uma apropriação geral dos produtos produzidos pela moda, acarretando uma democratização deles, a elite elabora novos indumentos, a fim de se diferenciar novamente, e é esse jogo que alimenta o ciclo da moda. A mídia atua como o principal meio para sua propagação e ambas estão implicadas no ideal de manutenção do status quo entre as classes, pois lucram com os seus consumos (LIPOVETSKY, 2009, apud AZEVEDO; GIULIANO; STEFFEN, 2017).

O corpo se configura como um campo de disputa, que envolve diferentes saberes, práticas e imaginário social. Os meios de comunicação produzem ou disseminam as visões que mais os interessam, focados no maior retorno de capital que puderem por parte dos anunciantes e dos que consumem seus conteúdos (SERRA; SANTOS, 2003). No caso da obesidade, os especialistas são geralmente o Médico ou o Nutricionista, mostrando que o

discurso hegemônico é o médico-científico, e o ideal de saúde consiste em um corpo magro, como já dito (ALMEIDA, 2013). Como num ciclo vicioso, tal discurso segue sendo, cada vez mais forte, a representação de poder e de controle social (SERRA; SANTOS, 2003).