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CAPÍTULO 5 – VERDADE: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO SABER NO

5.1.2 A escolha nos dizeres do Guia de Livros Didáticos

5.1.2.3 As Resenhas

Embora já tenhamos nos referido aos dizeres das Resenhas no item anterior, deveremos ainda analisá-los em maior profundidade, para complementarmos nossa argumentação sobre a representação do LDI como verdade no discurso oficial.

As resenhas sobre as coleções aprovadas para o PNLD 2011 foram elaboradas pelos especialistas de cada área e compõem a parte final do documento Guia de Livros Didáticos – Língua Estrangeira Moderna. Com o objetivo de contribuir com informações sobre as coleções para que os professores fizessem suas escolhas, as resenhas apresentam os mesmos itens para cada uma das coleções de língua estrangeira moderna, espanhol e inglês. São eles: Visão geral, Descrição da coleção, Análise da obra e Em sala de aula. A Análise da obra é composta pelos subitens: Compreensão escrita, Produção escrita, Compreensão oral, Produção oral, Gramática e Vocabulário e, por fim, Manual do professor.

Em momentos anteriores, necessitamos nos referir às resenhas das coleções, pois elas são citadas nos dizeres dos documentos que analisamos. O Edital de Convocação, por exemplo, informa repetidas vezes que a escolha do professor por uma coleção didática deve ser fruto do consenso entre ele e seus colegas e deverá ter como base as resenhas. O texto longo das resenhas, aproximadamente cinquenta por cento do total de páginas do Guia227, nos levou a concentrar nossa análise no item intitulado Em sala de aula, mantendo nosso foco em relação às categorias de análise. Esse item difere dos demais por não ter o caráter predominantemente analítico e descritivo presente nos outros itens das resenhas. Em sala de aula é um espaço em que o sujeito enunciador (o sujeito que enuncia a partir da posição de especialista naquela língua e cujo dizer, aqui, compõe228 o discurso oficial e é composto por ele) se dirige ao professor para lhe oferecer sugestões práticas e cuidados a serem tomados no uso diário da coleção resenhada.

O primeiro aspecto que nos chamou a atenção em relação ao texto do item Em sala de aula das Resenhas foi o grande número de dizeres repetidos para as quatro coleções aprovadas (inglês e espanhol). Vejamos esses dizeres no quadro abaixo229.

227 O Guia de Livros Didáticos – Língua Estrangeira Moderna tem um total de quarenta e três páginas; o texto

correspondente ao item Resenhas ocupa vinte páginas desse documento.

228 Cf. o conceito de função-autor como a função discursiva do sujeito que, segundo FOUCAULT, M. ([1969]

2002, p. 53), é responsável pela unidade, coerência e origem do discurso.

C o m p re en o o ra l 1ª coleção de inglês

Em relação à compreensão oral, o aluno deve ser levado a observar a forma como os textos refletem as intenções, os objetivos comunicativos, os estados de ânimo e as atitudes dos interlocutores, bem como as consequências de variações dessa natureza para a comunicação. Um dos procedimentos que pode favorecer esse trabalho é o de pausar o CD para possibilitar reflexão, projeção, levantamento e checagem de hipótese.

2ª coleção de inglês

No trabalho com a compreensão oral, cabe ao professor a tarefa de levar o aluno a observar a forma como os textos refletem as intenções, os objetivos comunicativos, os estados de ânimo e as atitudes dos interlocutores, bem como as consequências de variações dessa natureza para a comunicação. Um procedimento que pode favorecer esse trabalho é o de pausar o CD para possibilitar reflexão, projeção, levantamento e checagem de hipótese.

1ª coleção de espanhol

Com relação à compreensão oral, é importante que se leve o aluno a observar a forma como os textos refletem as intenções, os objetivos comunicativos, os estados de ânimo e as atitudes dos interlocutores, bem como as consequências

de variações dessa natureza para a comunicação. Isso pode ser feito através de pausas no texto oral para reflexão, projeção, levantamento e checagem de hipótese.

2ª coleção de espanhol

As propostas de compreensão oral precisam incluir atividades que promovam a reflexão sobre as intenções, os objetivos comunicativos, os estados de ânimo

e as atitudes dos interlocutores, bem como as consequências de variações dessa natureza para a comunicação. Isso pode ser feito mediante o uso de pausas no texto oral para reflexão, projeção, levantamento e checagem de hipótese. So b re a g ra m áti ca 1ª coleção

de inglês No trabalho com a gramática, é conveniente conduzir os alunos a um

estudo mais reflexivo da língua.

2ª coleção

de inglês Convém dar ao trabalho com a gramática um caráter mais articulado com

o uso da língua através das quatro habilidades.

1ª coleção

de espanhol Convém dar ao trabalho de análise e reflexão sobre a gramática um

caráter mais articulado com o uso da língua através das quatro habilidades.

2ª coleção de espanhol

No trabalho com a gramática, nos volumes 6 e 7, é importante que o professor conduza os alunos a um estudo mais reflexivo, de modo a possibilitar-lhes a ampliação da capacidade de uso da língua nas diversas situações sociais. So b re a im p re ss ão e a r ev is ão ( ú lt im o p a rá g ra fo d a s r e s e n h a s ) 1ª coleção

de inglês Não foram encontrados erros significativos na obra. No entanto, na sua utilização em sala de aula, o professor precisará estar atento para corrigir

algumas falhas de impressão e revisão no Livro do Aluno e no Manual do Professor.

2ª coleção de inglês

Não foram encontrados erros significativos na obra. No entanto, na sua utilização em sala de aula, o professor precisará estar atento para corrigir algumas falhas de impressão e revisão no Livro do Aluno e no Manual do Professor.

1ª coleção

de espanhol Não foram encontrados erros significativos na obra. No entanto, na sua

utilização em sala de aula, o professor precisará estar atento para corrigir algumas falhas de impressão e revisão no Livro do Aluno e no Manual do Professor.

2ª coleção

de espanhol Não foram encontrados erros significativos na obra. No entanto, na sua

utilização em sala de aula, o professor precisará estar atento para corrigir algumas falhas de impressão e revisão no Livro do Aluno e no Manual do Professor.

A repetição dos dizeres nos textos muito curtos230 desse subitem Em sala de aula nos convocou à análise. Em especial, a análise das representações de professor e de aluno nos pareceu ter mais relevo nos dizeres repetidos. Isso porque, parece-nos, que a repetição desses dizeres, com poucas variações, não ocorre apenas no uso das estruturas e do léxico. Vemos que, em cada repetição, os mesmos traços identitários de professor, aluno e livro didático se reafirmam. Destacamos, abaixo, parte dos dizeres sobre o item Compreensão Oral.

S26 – o aluno deve ser levado a observar

S27 – cabe ao professor a tarefa de levar o aluno a observar S28 – é importante que se leve o aluno a observar

S29 – As propostas de compreensão oral precisam incluir atividades que promovam a reflexão

Mesmo que nas sequências discursivas S26 e S28 desconheça-se o sujeito gramatical que fará a ação de levar, sabemos, pelo efeito de pré-construído (PÊCHEUX, M., [1975] 2009, p. 89; HENRY, P., [1975]1990, p. 61), que é o professor que se encarrega da “tarefa de levar o aluno a observar”, como é explicitado em S27. Desse modo, tanto o aluno como o professor são representados com traços identitários historicamente construídos que remetem a enunciados que caracterizam o professor como condutor e sujeito do saber e o aluno como conduzido e aquele que nada sabe. Em outros termos, os dizeres produzem o efeito de que, se o professor não conduzir o aluno à observação, ele nada observará.

Por outro lado, na sequência discursiva S29, esse trabalho de promover a observação, a reflexão, fica atribuído às atividades que devem complementar o livro didático. Observamos, nesse dizer, alguns apagamentos: quem incluirá as atividades nas propostas e quem irá refletir? Novamente, portanto, esse dizer conta com saberes pré-construídos que já determinam aqueles que devem, numa situação de aula, elaborar atividades e aqueles que devem refletir a partir dessas atividades. Porém, observamos que esses apagamentos dirigem o foco do dizer sobre o livro didático. Isto é, se as propostas de compreensão oral precisam incluir atividades, é porque essas atividades não são oferecidas nas propostas. Mesmo sutilmente, esse dizer aponta a falhas e à incompletude do livro didático ao mesmo tempo em que mantém o professor e o aluno distantes por apagamento. A partir da percepção desses efeitos em S29, podemos observar que as sequências anteriores, ao enfocarem o aluno e o professor, parecem trabalhar no sentido de poupar o livro didático da falha e da incompletude.

230 No documento oficial, os textos Em sala de aula das resenhas de espanhol têm trinta linhas cada; para as

Também nos dizeres do item Sobre a gramática, podemos perceber os mesmos efeitos e as mesmas representações de professor, aluno e livro didático. Enquanto os dizeres referentes à primeira coleção de inglês oculta o sujeito gramatical do verbo conduzir, em “conduzir os alunos”, os dizeres da segunda coleção de espanhol explicita que “professor conduza os alunos”. Ambos os dizeres remetem às mesmas representações de aluno e professor analisadas acima. Do mesmo modo, os dizeres referentes à segunda coleção de inglês e à primeira de espanhol atribuem a falha ao livro didático, neste caso, a falta de articulação entre a gramática e o uso da língua. E, ainda, atribuem ao professor a incumbência de promover essa articulação “através das quatro habilidades”, mantendo-o na posição de uma pessoa que age231.

A relevância dessas observações pode ser sentida na necessidade de compreendermos o modo de funcionamento do discurso oficial, em especial, na dispersão dos enunciados. Como dissemos no item 5.1.2.1, a Ficha de Avaliação apresenta, segundo o Guia de Livros Didáticos, todos os critérios que orientaram a avaliação das coleções. Em 5.1.2.1, analisamos a pergunta vinte e cinco e, agora, retornamos a ela, com outro foco. No dizer analisado em S23, a pergunta 25 sobre a isenção de erros localiza-se à página 15 do Guia:

25. A obra é isenta de erros de revisão e/ou impressão? (Obs.: considerar também as transcrições dos textos dos CDs de áudio).

Já o excerto abaixo pertence ao texto das resenhas e aparece à página 42, referente à primeira coleção de inglês, e à página 48, referente à segunda coleção de inglês. Como vimos no Quadro de dizeres repetidos nas Resenhas (Fig. 8), esse texto é reescrito palavra por palavra nas resenhas de todas as obras aprovadas.

S30

Não foram encontrados erros significativos na obra. No entanto, na sua utilização em sala de aula, o professor precisará estar atento para corrigir algumas falhas de impressão e revisão no Livro do Aluno e no Manual do Professor.

É interessante notar que o termo “erros” aparece adjetivado como “significativos” no texto das resenhas, enquanto no texto da pergunta 25 da Ficha de Avaliação, constante do Guia, o termo “erros” é apenas qualificado de acordo com o tipo: “de revisão e/ou impressão”. Ou seja, a pergunta que guiou os avaliadores não distinguiu erros significativos de

231 A representação de professor como uma pessoa que age (Cf. FOUCAULT, M., 1982, p. 220) é discutida no

insignificantes. Portanto, na pergunta, a falta de informação sobre a aceitação de algum grau de significância do erro acaba por generalizar sua severidade. Entende-se, então, que nenhum tipo de erro, significativo ou não, será aceito.

De todo o modo, a resenha não diz que as coleções são isentas de erros, simplesmente admite que não foram encontrados erros significativos. Outros erros, portanto, podem ter sido encontrados. Mas, esses outros erros encontrados, os não tão significativos ao ponto de desclassificar as duas coleções, não são denominados de “erros” agora. O termo “erros”, usado na pergunta 25 da Ficha, foi substituído por “falhas” no texto das resenhas que, portanto, estabelece a diferença, a não sinonímia, entre erros e falhas.

Ainda contrariando a inadmissão de erros informada na pergunta 25 da Ficha, temos um processo que poderíamos chamar de metonimização amenizante, um deslize de erros para erros significativos e também de erros para falhas. Admitindo essa diferença estabelecida no/pelo dizer, podemos supor que a palavra “erros” produza o sentido de ser algo grave, enquanto “falhas” seriam amenas, temporárias, inconsequentes e/ou um tipo de erro de fácil reajuste. Vemos, então, que essa metonimização amenizante funciona no discurso como uma modalização do dizer. Entendemos que a modalização produz um efeito que corrobora o modo de funcionamento da sociedade de controle. Isto é, a modalização do dizer produz a abertura a múltiplas possibilidades que não se estabilizam nem se fixam. Ao contrário, funcionam na sua flexibilidade e instabilidade, como uma “moldagem auto-deformante” (DELEUZE, G., [1990] 2008), tomando o lugar dos moldes rígidos da sociedade disciplinar que age por imperativos e garantindo, também, as linhas de fuga.

Contudo, essa amenização do termo “erros” para “falhas” é esperada devido à mudança de certos elementos das condições de produção do discurso estabelecidas nas diferentes partes do Guia. Ou seja, a palavra “erros”, sem a informação sobre qualquer grau de severidade que pudesse apresentar, foi produzida discursivamente no momento do Guia em que havia condições favoráveis ao seu uso: entre as noventa e duas perguntas que estabeleciam, com o rigor do discurso oficial, os critérios específicos para a aprovação das coleções pelos especialistas. A palavra “falhas”, por sua vez, foi produzida num lugar desse mesmo documento onde a modalização pode e deve apoiar discursivamente o dizer que aprova a coleção apesar de conter “erros”. Ou seja, a palavra “falhas”, como a modalização do termo “erros”, substitui ou torna desnecessária a explicação sobre a aceitação dos “erros” e sobre a consequente aprovação das coleções. Podemos considerar, também, que a palavra “erros” é produzida por um sujeito enunciador diferente daquele que produz a palavra

“falhas”232. O primeiro corresponde ao sujeito enunciador das perguntas que guiaram a

avaliação dos especialistas; o segundo, ao sujeito especialista. Nessa consideração, é possível perceber que a modalização de “erros” para “falhas” contribui à construção de linhas de fuga. Isto é, o dizer do sujeito especialista não se compromete com a isenção de erros exigida pelo sujeito enunciador das perguntas; ao contrário, ele denuncia a presença de “falhas” no mesmo lugar em que “erros” são proibidos.

Como efeito, mesmo que as coleções aprovadas apresentem essas “falhas”, elas são discursivisadas como verdades e, portanto, estão aptas a serem “escolhidas” pelos professores. Isto é, apesar de conterem “falhas”, as coleções não contêm “erros” e são, portanto, verdades. Esses erros insignificantes ou “falhas” ficam, ainda, sob a responsabilidade do professor; pois, é o professor que “precisará estar atento para corrigir algumas falhas de impressão e revisão no Livro do Aluno e no Manual do Professor”. Observamos, então, a representação do LDI como um saber e o professor como aquele que irá garantir o funcionamento desse saber em sala de aula.

Em relação à modalização, notamos que muitos dos dizeres que compõem o quadro acima (Fig. 8) recorrem repetidamente aos termos: “convém”, “é conveniente”, “é importante”, “pode favorecer” etc. Vemos que esses termos tanto defendem um posicionamento a ser adotado pelo professor (é conveniente = é aconselhável) quanto abrem a linhas de fuga (é conveniente = não é obrigatório/ posso fazê-lo/ não preciso fazê-lo etc.). Assim, mesmo com a ênfase na defesa do que se está aconselhando (aquilo que convém, é importante, conveniente ou favorece), o sentido do dizer não se fixa e remete a possibilidades contrárias ou divergentes ao aconselhamento. Parece-nos, então, que a modalização provoca, na materialidade linguística, um jogo intradiscursivo que encontra, no interdiscurso, mais de uma possibilidade de sentido.

Ainda com o objetivo de percebermos a modalização como um efeito que corrobora o modo de funcionamento da sociedade de controle, passaremos, a seguir, à análise de dizeres de três momentos do discurso oficial.