• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 – PODER: O INVESTIMENTO DO DISCURSO SOBRE O LDI

4.3 Dizeres do discurso midiático

O segmento midiático do nosso corpus de pesquisa é composto por matérias publicadas on line sobre os livros de inglês do PNLD 2011. Como nosso foco era obter um grande número de artigos que, de algum modo, tratassem da adoção do LDI proposta por esse programa governamental, as matérias não foram selecionadas pelo tipo de agência publicitária ou fonte de informação. Assim, há matérias de agências de notícias de repercussão nacional e de agências locais, matérias de sites de escolas públicas e de associações, blogs, portais de grupos editoriais e outros. Por isso, informaremos a fonte do excerto e as datas de publicação e de acesso em cada sequência discursiva que analisamos.

De modo geral, a grande maioria dos textos encontrados tem como fonte órgãos oficiais (MEC, FNDE215, Secretarias Estaduais de Educação) ou seus representantes. Esse fato talvez tenha contribuído para que os textos veiculados on line se apresentassem como reproduções mais ou menos idênticas entre si. É importante ainda ressaltar que a pesquisa por textos midiáticos que tratassem da adoção do primeiro LDI no Brasil pelo PNLD resultou em grandes quantidades de artigos; porém, tais artigos se referiam aos mesmos informes publicados pelos órgãos oficiais, sem alterações significativas, como veremos a seguir. Portanto, a quantidade de textos encontrados não favoreceu a constituição de um corpus variado e mais abrangente. A seguir, trataremos de alguns desses textos.

Sob o título Alunos da rede pública receberão livros de inglês e espanhol, dezenas de textos foram divulgados por agências on line entre os meses de setembro e outubro de 2008. No site da Abrelivros216 – Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares – o

215 MEC, Ministério da Educação; FNDE, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. 216 Disponível em: <http://www.abrelivros.org.br>. Acesso em: 23 out. 2010.

leitor do artigo com o título mencionado acima é informado sobre a origem do texto: “Escrito por Portal MEC - Assessoria de Comunicação Social do FNDE”. Em geral, as agências de notícias publicam o texto na íntegra e citam alguma fonte, mesmo que imprecisa como: “Fonte: Governo Federal”, “Com informações do MEC”, “Fonte: http://www.fnde.gov.br”, “Agência: Brasil” etc.. Mas, muitas apenas publicam recortes do texto e não informam a fonte ou, ainda, assumem a autoria do texto: “por: Da redação” foi a fonte encontrada no jornal Dia a dia da Agência de notícias Primeira Hora para o mesmo texto divulgado por tantas outras agências.

Todas essas ações são, de algum modo, esperadas e não nos causam estranhamento justamente por serem características do funcionamento do discurso midiático. Porém, o distanciamento da opinião jornalística em relação ao acontecimento (a inclusão de livros de LE no PNLD 2011), abdicando do lugar de questionamento que a mídia adota tradicionalmente, contentando-se em reproduzir a fala oficial, é surpreendente. Esse afastamento pode produzir o sentido de que a chegada do livro didático de língua estrangeira na escola pública não é de interesse da mídia ou não causa impacto algum que pudesse instigar investigações jornalísticas. Por outro lado, é preciso considerar que é através da mídia que o discurso oficial se torna público. Sendo assim, a reprodução do discurso oficial pela mídia, sem contestação ou questionamento, pode produzir o sentido de que não há nada ali a ser questionado; ou melhor, não há nada ali que a sociedade pudesse questionar ou contestar. Nesse caso, o discurso da mídia valida o discurso oficial perante a sociedade, tranquilizando-a e apagando qualquer ponto de discórdia que o discurso oficial pudesse suscitar.

Selecionamos, abaixo, apenas o primeiro parágrafo do texto sob o mesmo título divulgado por três agências de notícias. Em cada um, sublinhamos a informação sobre a palestra, pois esse é o único lugar do texto em que encontramos algumas diferenças.

S11 – Agência Terra: http://noticias.terra.com.br/educacao/interna. Publicado em 15 de agosto de 2008. Acesso em 22 de outubro de 2010.

Os alunos dos anos finais do ensino fundamental público passarão a receber livros didáticos de inglês e espanhol a partir de 2011. A informação é do presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Daniel Balaban, durante palestra realizada na 20ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no Pavilhão de Exposições do Anhembi.

S12 – Agência Primeira Hora: http://www.primeirahora.com.br. Publicado em 15 de agosto de 2008. Acesso em 23 de outubro de 2010.

Os alunos dos anos finais do ensino fundamental público passarão a receber livros didáticos de inglês e espanhol a partir de 2011. A informação é do presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Daniel Balaban, durante palestra realizada na 20ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no Pavilhão de Exposições do Anhembi.

S13 – Agência Globo.com: http://g1.globo.com/. Publicado em 15 de agosto de 2008. Acesso em 23 de outubro de 2010.

Os alunos dos anos finais do ensino fundamental público passarão a receber livros didáticos de inglês e espanhol a partir de 2011. A informação é do presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Daniel Balaban, durante palestra feita na manhã desta sexta-feira (15) na 20ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no Pavilhão de Exposições do Anhembi.

Essa última agência incluiu, na parte que grifamos, mais informações sobre o dia da palestra, sem outras alterações em relação a S11 e S12, que se igualam. O texto base foi fornecido pela Assessoria de Comunicação Social do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que reproduzimos abaixo.

S14 – FNDE: http://www.fnde.gov.br. Publicado em 15 de agosto de 2008. Acesso em 23 de outubro de 2010.

Alunos da rede pública receberão livros de inglês e espanhol a partir de 2011

Sex, 15 de agosto de 2008

ASCOM-FNDE (Brasília) - Os alunos dos anos finais do ensino fundamental público passarão a receber livros didáticos de inglês e espanhol a partir de 2011. A informação foi dada pelo presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Daniel Balaban, durante palestra feita na manhã de hoje, 15, na 20ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no Pavilhão de Exposições do Anhembi.

Temos, então, S11 e S12 com formulações idênticas: “durante palestra realizada na 20ª Bienal Internacional do Livro”, porém menos detalhadas que em S14. Já S13, com “durante palestra feita na manhã desta sexta-feira (15) na 20ª Bienal Internacional do Livro”, se aproxima dos detalhes fornecidos pela agência da S14: “durante palestra feita na manhã de hoje, 15, na 20ª Bienal Internacional do Livro”. Percebemos que essa informação sobre a data do evento é o lugar que aceita variações, sem que o conteúdo principal da notícia seja alterado e sem o comprometimento da agência de notícias. Esses detalhes, mesmo que não sejam informados, como em S11 e S12, se necessários, poderiam ser pesquisados pelo leitor da

notícia a partir da informação “20ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo”, constante em todos os textos.

Portanto, os textos dessas agências, dentre outras tantas, apenas reproduzem o texto oficial, com alterações mínimas e sem comprometimento. Esse procedimento da mídia parece apontar à falta de preocupação de estar apenas reproduzindo uma informação. Não há também a preocupação de marcar a heterogeneidade, os dizeres do outro, com aspas, como se costuma fazer em citações. Parece ocorrer, então, um tipo de tomada de posse de discurso: do oficial para o midiático; pois, não há marcas textuais de heterogeneidade enunciativa que, neste caso, se reduz à intertextualidade.

Mesmo que algumas agências de notícias forneçam a fonte de informação, a falta de marcas de heterogeneidade enunciativa produz o efeito de que o texto em si foi escrito pela própria agência. Esse procedimento pode também ser encontrado em textos sobre as outras fases do PNLD 2011, sem que haja o posicionamento crítico ou, ao menos, investigativo esperado em dizeres do discurso midiático. Nesses casos, a mídia cumpre seu papel de informar, mas se isenta de se posicionar criticamente sobre um fato histórico: a entrada em massa do LD de língua estrangeira na escola pública. De todo o modo, nos parece que, ao repetir, a mídia ecoa a ação dos órgãos públicos, dando prosseguimento ao deslizar de ações no movimento de uma ação sobre outra.

A representação de LDI no discurso midiático percebida a partir da falta de posicionamento crítico e, possivelmente, de interesse da mídia em relação a esse material é que, talvez, o LDI não seja considerado para além de sua função material, tão necessário e comum como a merenda, o giz, o quadro-negro, as carteiras etc.. Essa representação de LDI como um suprimento ou objeto apenas material desconsidera seu caráter simbólico, apagando traços essenciais e que fazem toda a diferença na aula e no ensino de modo geral. Um objeto destituído de sua função simbólica e de seu potencial de poder e verdade.

Porém, como argumentamos, essa desconsideração do valor simbólico, ou essa dessimbolização, é apenas efeito do trabalho da ideologia. Pois, ao mesmo tempo em que aparentemente se distancia da ideologia, se ausentando de posicionamento crítico, ao reproduzir o discurso oficial, o discurso da mídia concorda com ele e, além disso, rende-lhe mais força pela repetição, como re-escritura, e por sua publicação sob o nome da agência de notícias. Sendo assim, a mídia se ausenta de autoria e criticidade, mas reforça o discurso que coloca o livro didático no jogo de poder-saber que circula na sociedade.

Considerando-se a veiculação da notícia pela mídia para informar a sociedade e, neste caso, a repetição do discurso oficial, poderíamos dizer, à primeira vista, que a representação

do LDI que chega à sociedade pela mídia é idêntica à representação do LDI construída no/pelo discurso oficial. Como vimos em S1, o LDI é representado no/pelo discurso oficial como destituído de valor simbólico através do funcionamento do efeito ideológico de dessimbolização. Porém, ao ecoar o discurso oficial, a mídia o legitima junto à sociedade, produzindo o efeito de que não há nada ali a ser investigado ou criticado; uma vez que esse seria também, além de informar, o papel da mídia: apontar possibilidades de questionamento.

Além disso, a falta de especificidade da representação do LDI acaba também por marcá-lo como um livro didático, diríamos, genérico. Isto é, o LDI é discursivisado no discurso midiático não exatamente como sendo um livro didático qualquer, mas o livro didático cuja representação habita o imaginário da sociedade; portanto, um livro completo, eficaz e perfeito. Também a falta de informação sobre o papel do LDI nesse momento na escola, fruto do posicionamento apenas reprodutor da mídia, produz o sentido de que aquilo que um livro didático pode e deve fazer é já naturalizado na sociedade. Há, aí, um grande investimento de poder no LDI, como se ele, esse LDI genérico, fosse capaz de dar conta daquilo que a sociedade espera de um livro didático completo, eficaz e perfeito: fazer com que todos os alunos brasileiros do 6º ao 9º ano da escola pública saibam uma língua estrangeira. Assim, o discurso midiático, pela repetição do discurso oficial, se isenta de se responsabilizar por essas impossibilidades perante a sociedade.

Mesmo nessa repetição podemos perceber o movimento de uma ação sobre outra; pois, o discurso oficial sobre o LDI, ao falar à mídia, constrói a representação de LDI que deve ser passada adiante. Ou seja, a ação, aqui, consiste em o discurso oficial construir uma imagem de LDI que atuará sobre a ação legitimadora e tranquilizadora da mídia. O discurso midiático, por sua vez, validará essa imagem de LDI, atuando sobre a ação da sociedade, aceitando e não questionando essa imagem que recebe pronta e acabada. Esse processo instiga-nos a pensar o funcionamento do discurso oficial nos termos de Courtine; isto é, observar os “fluxos tecnológicos de sua circulação, o estado líquido das discursividades políticas contemporâneas” (COURTINE, J-J., 2008, p. 16). Isso porque, com essa multiplicação muitas vezes idêntica e outras com poucas alterações, é como se fosse possível observar, para além da transparência ilusória do discurso, um gesto de consentimento ou incentivo das assessorias e agências de comunicação oficiais à ação “copia e cola” da mídia, tão atual no meio digital, como um plágio consentido que tanto assegura as palavras quanto afasta o questionamento.

Considerações sobre o capítulo

A análise dos dizeres percebeu o efeito de um conjunto de ações sobre outras ações funcionando no discurso sobre o LDI. Legitimado socialmente para o controle de práticas, o discurso oficial estabelece, através de suas ações, as ações de outros, como vimos nos dizeres analisados. Para além de produzir condições para que o outro aja, o discurso oficial já demarca os limites do território em que esse outro (titulares de direito autoral, professores etc.) agirá, delimitando também o escopo dessa atuação.

O discurso profissional nos possibilitou perceber, como efeito, o impacto direto da ação dos órgãos públicos sobre a ação do professor: a ação governamental de adotar o LDI facilita a vida do professor (P1Q1 e P3Q2), ajuda bastante (P2Q1), melhora a dinâmica das aulas (P1Q2), aperfeiçoa o ensino (P2Q2), aumentando o interesse dos alunos e facilitando o aprendizado (P3Q1 e P4Q2). Além disso, essa ação governamental provê o professor com o “suporte teórico” (P4Q1), levando a “evolução” aos estados desprovidos (P5Q1). No discurso profissional cujos dizeres foram coletados antes da adoção, o LDI é representado como aquilo que preencherá a falta que o professor percebe existir na aula, no ensino de inglês da escola pública, na escola perante os professores de outras disciplinas e nos estados “desprovidos” de recursos. Assim, a ação de adotar o LDI incidirá sobre a ação do professor, tornando-a completa e fácil. Esse movimento de uma ação sobre outra foi percebido também nos dizeres dos sujeitos que responderam ao segundo questionário de pesquisa. O foco principal desses dizeres recai, agora, sobre a presença física do LDI na escola. Esse olhar sobre o LDI como um objeto físico, concreto, acaba enfraquecendo o caráter simbólico do livro didático nos dizeres analisados, como se esse objeto pudesse ser desprovido de simbologia.

Na reprodução do discurso oficial pelos dizeres do discurso midiático, percebemos que o efeito de repasse parece desejar garantir a imparcialidade da notícia, mas que, no entanto, contribui para legitimar o discurso oficial junto à sociedade, dispersando o olhar do leitor para longe da possibilidade de questionamentos. Nesses dizeres do discurso midiático que analisamos, a representação do LDI como um objeto dessimbolizado reforça a garantia de que não é preciso questionar porque não há nada para ser questionado. Apontamos a possibilidade de essa reprodução resultar de um funcionamento já previsto pelo discurso oficial que trabalha no sentido de garantir a repetibilidade das palavras para ilusoriamente conter o sentido e assegurar o não questionamento. As consequências suscitadas por esse efeito que percebemos parecem-nos alinhadas à perspectiva de Pêcheux sobre a tarefa da AD: mais do que dar respostas, propor questões. Nesse caso específico, a transparência que a repetibilidade do

texto tenta garantir parece funcionar nos moldes da sociedade de controle: um controle firme e contundente exercido em meio aberto; pois, como disse Deleuze ([1990] 2008, p. 216), “Face às formas próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos mais duros nos pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente”.

Neste capítulo, o movimento de uma ação sobre outra foi percebido no discurso sobre o livro didático de inglês. Contudo, esse movimento parece percorrer uma só direção; isto é, a ação governamental de adotar o LDI sobre: a ação de produzi-lo (através dos titulares de direito autoral), a ação de utilizá-lo (por meio dos professores) e a ação de legitimá-lo (via mídia). Um movimento com orientação contrária (da ação de utilizá-lo à ação de adotá-lo etc.) poderia se configurar como uma ação de resistência que, já intimamente prevista, aconteceria dentro mesmo dessa relação de poder. Porém, esse movimento contrário, embora previsto pelo Programa217 e possível em sua capilaridade anônima218, não é livremente assegurado ao

professor, pois há o esforço de se manter a orientação desse movimento sob controle. O funcionamento detalhado desse modo de controle pode ser observado na insistência do discurso sobre a escolha do LDI pelo professor, como veremos a seguir, ao mesmo tempo em que ele, o professor, é mantido até o fim como uma pessoa que age219 (FOUCAULT, M., 1982, p. 220).

217 Como vimos em 2.1, a não adesão ao programa de adoção de materiais didáticos é prevista pelo PNLD. Para

isso, basta não assinar o Termo de Adesão. Nesse caso, a escola não receberá quaisquer materiais didáticos. Para a não adesão ao programa em apenas algumas disciplinas, a escola deve assinar o Termo de Adesão e informar no Registro de Escolha ou em declaração própria que não deseja receber os materiais para tais disciplinas.

218 Na análise do discurso oficial que realizamos, esse movimento contrário não nos parece ser considerado como

algo que as escolas e os professores pudessem desejar. Mesmo assim, sabemos, pelas respostas aos questionários de pesquisa, que muitos professores e escolas não aderiram ao Programa.