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CAPÍTULO 3 – AS CATEGORIAS DE ANÁLISE

3.2 O professor como uma pessoa que age

Vemos que o primeiro elemento considera que o poder é exercido sobre “o sujeito de ação”, uma pessoa que age192. Essa afirmação poderia pôr em risco nossa hipótese de que o

discurso sobre o LDI investe poder no LDI, por ser o livro didático um objeto e não, obviamente, uma pessoa. Porém, em linhas anteriores, à página 243 do mesmo texto, Foucault já estabelecera193, como citamos no capítulo anterior em 2.6.2, que a relação de poder é um modo de agir sobre as ações de outros, e não diretamente e imediatamente sobre essas pessoas. Assim, acreditamos ser possível localizar o LDI e o professor nesse funcionamento. Afinal, o LDI comporta as ações que devem ser executadas pelo professor e, também, pelo aluno, segundo as pesquisas que analisaram o discurso de vários materiais didáticos.

Ao analisar os papéis do professor e do aluno no ensino apostilado, Coracini (1999, p. 53) percebe a construção das representações: “o professor é o mediador autorizado das informações contidas no material e o aluno aquele que as acumula”. Analisando o livro didático para o ensino de Língua Portuguesa, Grigoletto (1999, p. 75) observa que os efeitos do discurso do LD constroem representações em que “o papel do professor [...] deve ser de

191 No texto original em inglês, FOUCAULT, M., 1982, p. 220 disse: “[...] a power relationship can only be

articulated on the basis of two elements which are each indispensable if it is really to be a power relationship: that “the other” (the one over whom power is exercised) be thoroughly recognized and maintained to the very end as a person who acts; and that, faced with a relationship of power, a whole field of responses, reactions, results, and possible inventions may open up”.

192 Como sublinhamos na citação da nota acima.

193 FOUCAULT, M., 1982, p. 220 disse: “In effect, what defines a relationship of power is that it is a mode of

action which does not act directly and immediately on others. Instead it acts upon their actions: an action upon action, on existing actions or on those which may arise in the present or the future”.

mediador entre o livro e o aluno, de modo a garantir o cumprimento das propostas do manual”. À página 68, Grigoletto afirma: “O professor recebe um ‘pacote’ pronto e espera-se dele que o utilize. Ele é visto como usuário, assim como o aluno, e não como analista”. Em outro texto, Grigoletto (1999a, p. 83) analisa livros didáticos de língua inglesa e discute a relação entre as ações que o LDI comporta e a postura do professor, concluindo que a contenção de sentidos é desejada pelo discurso do livro didático: “O que se nega ao aluno, e também ao professor, já que deste se espera que siga fielmente as instruções do LD, é a construção do sentido na sua necessária historicidade”. Também à página 87 desse último texto, Grigoletto argumenta: “Há uma interdição à interpretação também em relação ao professor, uma vez que todas as respostas lhe são fornecidas no livro do professor e que se espera que siga passo a passo as propostas do livro”.

Mesmo ao analisarmos o discurso instrucional dirigido ao professor em manuais de livros didáticos de inglês e em palestras aos professores usuários de materiais de cursos apostilados em nossa dissertação de mestrado194, observamos a construção da representação de professor como prolongamento do sujeito-autor dos dizeres das instruções sobre a utilização do LDI. Portanto, espera-se que o professor, representado como o prolongamento do sujeito-autor, faça exatamente o que o autor faria em cada situação de aula.

Desse modo, partindo da concepção foucaultiana de que o poder é exercido sobre as ações de um outro que, por sua vez, é reconhecido e mantido como uma pessoa que age195, consideramos, pois, o professor como essa pessoa que age.

3.3 A possibilidade de se abrir “todo um campo de respostas, reações, efeitos e invenções”196

O segundo elemento imprescindível para o estudo das relações de poder, de acordo com essa citação de Foucault que destacamos acima no título deste subitem, deve considerar a possibilidade de se abrir “todo um campo de respostas, reações, efeitos e invenções” diante de uma relação de poder. Acreditamos que esse seja realmente um aspecto importantíssimo a ser considerado na análise; pois, ao menos potencialmente, há essa possibilidade de reações que contribuem não para o escape total, ou para a “libertação” do sujeito, situação que o colocaria

194 Cf. BRAGA, M. D. W., 2008, A prevenção de metaforização no discurso pedagógico instrucional para o ensino de língua inglesa. Disponível em: <http://dedalus.usp.br>; publicada em inglês sob o título Prevention

of Metaphorisation: a discursive analysis on giving instructions. Saarbruecken, Germany: VDM Verlag Dr.

Müller Aktiengesellschaft & Co, 2010.

195 Como informamos em nota anterior, na publicação em português, a “person who acts” do original

(FOUCAULT, M., 1982, p. 220) foi traduzida como “o sujeito de ação” (FOUCAULT, M., [1982] 1995, p. 243).

fora das relações de poder, visto que é impossível, mas para aquilo que Foucault chamou de “novas formas de subjetivação”.

Mais especificamente, podemos dizer que Foucault, ainda nesse mesmo texto, define liberdade ao contrastá-la à escravidão; ou seja, situações diversas em que há, para aquele que é livre, possibilidades de reações e comportamentos. Disse Foucault197 ([1982] 1995, p. 244):

Quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre as ações dos outros, quando as caracterizamos pelo “governo” dos homens, uns pelos outros – no sentido mais extenso da palavra, incluímos um elemento importante: a liberdade. O poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” – entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se então de uma relação física de coação) – mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar.

Esse “campo de respostas, reações, efeitos e invenções” pode ser tanto o espaço para o surgimento de novas formas de subjetivação como o lugar de reafirmação do mesmo, isto é, um lugar em que o novo é a aparente renovação de algo que não muda. Um espaço que o trabalho do professor, como uma pessoa que age no processo de ensino, deve insistir em ocupar, mesmo atuando inevitavelmente em meio às relações de poder que procuram cegá-lo à existência de tal espaço. Em outros termos, de acordo com o pensamento de Foucault, esse espaço é uma das condições necessárias para a articulação de uma relação de poder e, portanto, deverá ser percebido em todas as relações de poder. Contudo, é possível haver discursos e práticas que trabalham no sentido de controlar as ações que possam vir a ser exercidas nesse espaço, garantindo tanto a ilusão de mudança quanto a permanência daquilo que já se encontra estabelecido.

3.4 As categorias de análise e os dizeres do corpus

Em relação à dificuldade já mencionada de se separar os dizeres, como se os efeitos de sentido pudessem ser isolados, sem se mesclarem, confundirem, convergindo e divergindo o

197 O texto original, FOUCAULT, M. (1982, p. 221), diz: “When one defines the exercise of power as a mode of

action upon the actions of others, when one characterizes these actions by the government of men by other men – in the broadest sense of the term – one includes an important element: freedom. Power is exercised only over free subjects, and only insofar as they are free. By this we mean individual or collective subjects who are faced with a field of possibilities in which several ways of behaving, several reactions and diverse comportments may be realized. Where the determining factors saturate the whole there is no relationship of power; slavery is not a power relationship when man is in chains. (In this case it is a question of a physical relationship of constraint.)”

tempo todo, procuramos corresponder as sequências discursivas às categorias de análise, nossa construção, que mais se nos apresentam como relacionáveis. No caso do discurso profissional, propomos a seguinte correspondência entre as respostas dos professores de inglês da rede pública de ensino às perguntas dos questionários198 e às categorias conforme o quadro abaixo.

Categoria 1: PODER Categoria 2: SABER Categoria 3:

ARTICULAÇÃO uma ação sobre outra ou

um conjunto de ações sobre outras ações

um conjunto de procedi- mentos regulados para a produção, a lei, a repar- tição, a circulação e o funcionamento dos enunciados

articulação saber-poder: a) o poder é exercido sobre

uma pessoa que age; b) diante de uma relação de poder, há a possibilidade de se abrir “todo um campo de respostas, reações, efeitos e invenções”. Primeiro questionário 1ª pergunta: A partir de 2011, as escolas públicas ado- tarão livros didáticos para o ensino de inglês para o Fundamental II, do 6º ao 9º ano. Qual é sua opinião sobre essa medida?

2ª e 3ª perguntas:

2. Que tipo de material você utiliza atualmente? Há quanto tempo você utiliza esse material? 3. Como a utilização do livro didático afetaria seu dia a dia?

4ª pergunta:

Em sua opinião, de que modo o livro didático poderá (ou não) contribuir para o ensino de inglês como língua estrangeira na escola pública? Quais são as vantagens e/ou desvanta- gens?

Segundo questionário

5ª pergunta:

Na sua opinião, quais os pontos que melhoraram e quais precisam ainda ser melhorados nesse processo de adoção?

3ª pergunta:

Caso você utilize algu- ma das coleções ado- tadas, você está satis- feito(a)? Explique os motivos.

4ª pergunta:

Em sua opinião, de que modo o livro didático está (ou não) contribuindo para o ensino de inglês como língua estrangeira na escola pública? Quais são as vantagens e/ou desvanta- gens dessa adoção?

Fig. 4: As categorias de análise e as perguntas dos questionários

Considerando-se os dois elementos indispensáveis para o estudo das relações de poder, a terceira categoria, articulação saber-poder, como incluímos no quadro acima, divide-se em: a) o poder é exercido sobre uma pessoa que age;

b) diante de uma relação de poder, há a possibilidade de se abrir “todo um campo de respostas, reações, efeitos e invenções”.

A quinta e última pergunta do primeiro questionário, sobre os comentários do professor respondente em relação à adoção e/ou utilização do livro didático de inglês na escola pública, não foi respondida por todos os participantes. Desse modo, não a relacionamos às categorias de análise. As duas primeiras perguntas do segundo questionário são perguntas objetivas e informativas de múltipla escolha sobre qual coleção foi escolhida e se o professor respondente participou dessa escolha. Portanto, também essas não foram relacionadas às categorias de pesquisa.