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3 A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E SUA

3.1 AS TEORIAS DA RESPONSABILIDADE DO PODER PÚBLICO E SUA

Na época do Absolutismo, a “teoria da irresponsabilidade” era a que vigorava, em virtude da ideia do Estado dispor de uma autoridade inquestionável perante o súdito. Destarte, “qualquer responsabilidade atribuída ao Estado significaria colocá-lo no mesmo nível que o súdito, em desrespeito a sua soberania”78

.

As célebres frases “O rei não erra” (“The king can do no wrong”) e “O Estado sou eu” (“L’État c’est moi”) retratam bem esse período de despotismo, em que os administrados apenas podiam acionar o funcionário causador do dano – o qual, comumente, era insolvente –, enquanto o Estado se mantinha distante do problema79.

A partir do século XIX, essa tese restou superada pelas “teorias civilistas”, as quais perfilhavam a aplicação dos princípios do Direito Civil à responsabilidade civil extracontratual do Estado. Para esse fim, dividiu-se dois tipos de atitude estatal, admitindo-se a responsabilidade somente quando decorrente de atos de gestão, em que o Estado se encontraria desguarnecido de suas prerrogativas, diferentemente dos atos de império, dos quais os prejuízos resultantes ficavam imunes à responsabilização estatal80.

Ocorre que essa maneira de atenuar a antiga “teoria da irresponsabilidade” do Estado gerou insurgência nas vítimas dos atos estatais, diante das dificuldades de se discernir, na prática, o que era ato de império e de gestão, o que causava muitas incertezas81.

O marco relevante para o reconhecimento da responsabilidade do Estado como um princípio aplicável, mesmo à falta de lei, foi o famoso “caso Blanco”82

, decidido pela

78 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit., p. 674. 79

CAVALIERI FILHO, Sérgio, op. cit., p. 253.

80 FRANÇA, Catarina Cardoso Sousa, op. cit., p. 40. 81 CARVALHO FILHO, José dos Santos, op. cit., p. 373. 82

“A menina Agnès Blanco, ao atravessa uma rua da cidade de Bordeaux, foi colhida por uma vagonete da Cia. Nacional de Manufatura do Fumo; seu pai promoveu ação civil de indenização, com base no princípio de que o Estado é civilmente responsável por prejuízos causados a terceiros, em decorrência de ação danosa de seus agentes. Suscitado conflito de atribuições entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo, o Tribunal de Conflitos decidiu que a controvérsia deveria ser solucionada pelo tribunal administrativo, porque se tratava de apreciar a responsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público. Entendeu-se que a responsabilidade do Estado não pode reger-se pelos princípios do Código Civil, porque se sujeita a regras especiais que variam

jurisprudência francesa, em 1873, que ensejou a adoção, pelo Conselho de Estado francês, das “teorias publicistas” da responsabilidade do Estado: a “teoria da culpa do serviço” (ou “da culpa administrativa”) e a “teoria do risco” (desdobrada, por alguns autores, em “teoria do risco administrativo” e “teoria do risco integral”).

A “teoria da culpa do serviço” desassociou a responsabilidade do Estado da ideia de culpa do funcionário, passando-se a falar em culpa do serviço público, com a incidência da responsabilidade estatal independentemente de qualquer apreciação da culpa do funcionário, quando: o serviço público não funcionou (omissão), funcionou atrasado ou funcionou mal83.

Enquanto isso, a “teoria do risco”, baseada no princípio da igualdade de todos perante os encargos sociais e no artigo 13 da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, serviu de fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado, vez que a ideia de culpa é substituída pela de nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo sofrido pelo administrado, pois parte do pressuposto de que a atuação estatal envolve um risco de dano, que lhe é inerente84.

Essa teoria tem duas vertentes: a “teoria do risco administrativo”, na qual se permite causas excludentes ou atenuantes da responsabilidade estatal; e a “teoria do risco integral”, que as rejeita85.

No Brasil, nunca foi aceita a tese da irresponsabilidade do Estado, sendo a tese da responsabilidade, por sua vez, sempre considerada como princípio amplo, mesmo na falta de disposição legal específica86.

Embora as Constituições de 1824 e 1891 não tratassem expressamente da responsabilidade do Estado, apenas a do funcionário em virtude de abuso ou omissão praticados no exercício de suas funções, existiam leis ordinárias lhe instituindo, e a jurisprudência se manifestava no sentido de tal responsabilidade ser solidária com a dos funcionários87.

Já com a promulgação do Código Civil de 191688, pode-se dizer que houve a adoção da teoria civilista da responsabilidade subjetiva, considerando a redação do seu artigo 15:

conforme as necessidades do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados”. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit., p. 675).

83

Ibidem, p. 676.

84

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit., p. 676.

85 FRANÇA, Catarina Cardoso Sousa, op. cit., p. 42.

86 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, op. cit., p. 1043-1044. 87

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit, p. 676-677.

88 BRASIL. Lei nº 3.017, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em:

Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo direito regressivo contra os causadores do dano.

Houve, em 1934, por meio do Decreto 24.21689, a tentativa de restrição à responsabilidade estatal, nas hipóteses em que o ato do agente administrativo tivesse caráter criminoso, salvo se, após constatar o fato, o Poder Público o mantivesse no cargo.

Contudo, tal norma não vigorou por muito tempo, pois a Constituição de 193490, promulgada um mês depois, apadrinhou o princípio da responsabilidade solidária entre o Estado e o funcionário, estabelecendo, no seu artigo 171, que: “Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda Nacional, Estadual ou Municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos”, texto que permaneceu na Carta Magna de 193791, em seu artigo 158.

Uma mudança legislativa significativa somente ocorreu com a Constituição de 194692, que inseriu normativamente a “teoria da responsabilidade objetiva”, em seu artigo 194, cujo teor era o seguinte:

Art. 194. As pessoas jurídicas de Direito Público Interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único. Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.

A Carta de 1967, em seu artigo 10593, reproduziu a mesma ideia, apenas acrescentando ao parágrafo único o cabimento da ação regressiva nos casos de dolo do funcionário, texto que se repetiu no artigo 107 da Emenda Constitucional nº 1/196994.

89 BRASIL. Decreto nº 24.216, de 9 de maio de 1934. Provê sobre a responsabilidade civil da Fazenda Pública.

Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24216-9-maio-1934-515151- publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 01 out. 2017.

90 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível

em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 02 out. 2017.

91 BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937). Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm>. Acesso em: 02 out. 2017.

92

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>. Acesso em: 02 out. 2017.

93 CRFB/67, Art. 105: “As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que es seus funcionários,

nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo único - Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 02 out. 2017).

94 EC nº 1/69, Art. 107: “As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários,

nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.” (BRASIL. Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Edita o novo texto da Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967. Disponível em:

Posteriormente, a Constituição Federal de 198895, em vigor, passou a não distinguir se o violador é pessoa de Direito Privado ou de Direito Público, no seu artigo 37, §6º, o qual estabelece: “As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Seu artigo 5º, inciso X, pode ser considerado mais um avanço normativo nessa temática, ao prever expressamente a responsabilidade por dano moral, nos seguintes termos: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Como bem observa DI PIETRO96, o Código Civil de 200297, ao determinar, em seu artigo 43, que “as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos de seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores de dano, se houver, por partes destes, culpa ou dolo”, se encontra, atualmente, atrasado em relação à norma constitucional, porquanto não faz alusão às pessoas jurídicas de direito privado prestadores de serviço público.

Nota-se que o objetivo do Constituinte foi de igualar as pessoas de direito público e as de direito privado que executassem funções que, a princípio, competiam ao Estado, no que tange à sua responsabilidade objetiva. Nesse sentido, aponta CARVALHO FILHO98 que “se tais serviços são delegados a terceiros pelo próprio Poder Público, não seria justo nem correto que a só delegação tivesse o efeito de alijar a responsabilidade objetiva estatal e dificultar a reparação de prejuízos pelos administrados”.

Importa perceber, inclusive, que estão presentes no texto constitucional os dois tipos de responsabilidade civil: a do Estado, sujeito a responsabilidade objetiva, e a do agente estatal, sob o qual incide a responsabilidade subjetiva.

Denomina-se responsabilidade subjetiva “a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento contrário ao Direito – culposo ou doloso – consistente em causar um dano a outrem ou em deixar de impedi-lo quando obrigado a isto”99.

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em: 02 out. 2017).

95

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 02 out. 2017.

96 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. cit., p. 678.

97 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 02 out. 2017.

98 CARVALHO FILHO, José dos Santos, op. cit., p. 375. 99 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, op. cit., p. 1019.

Já para configurar a responsabilidade objetiva basta a mera relação causal entre o comportamento e o dano, podendo-se considerá-la como “a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em ração de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegia de outrem”100.

Na presente pesquisa, como o foco está na responsabilidade estatal, é indispensável fazer uma abordagem geral sobre os pressupostos para incidência da responsabilidade objetiva, antes de caminharmos para uma análise acerca da sua aplicação nos casos de violência obstétrica na rede pública de saúde.

3.2 OS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO

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