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As teorias do Self

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 135-138)

4 ESTABELECENDO UM DIÁLOGO ENTRE JUNG E MCNAMARA

4.2 RELAÇÕES CONCEITUAIS ENTRE JUNG E MCNAMARA

4.2.3 As teorias do Self

As teorias do Self foram introduzidas na psicologia como forma de delimitar a experiência do “eu”, agente do conhecer, em oposição ao “eu” enquanto objeto de conhecimento. O Self está atento ao fato de que somente os seus processos podem ser autorreferentes, e os próprios termos “auto” ou “si mesmo” explicitam a natureza da ipseidade. A identidade, que evoca um sentido forte de individualidade e exclusividade, também nos dá importante confirmação de que o Self que nela se concretiza deve ter o seu modus operandi peculiar, pois se a consolidação da ipseidade é a identidade, também o puro movimento de autorreferência deve conter traços individuais na sua expressão. O Self, portanto, é fundamental para a concepção da consciência, desde a psicologia analítica até a moderna neurociência.

Como apresentado no capítulo 2.1, Jung, quando discute a teoria dos complexos psíquicos, orienta a dinâmica dos processos conscientes em torno do conceito de “complexo do eu”. Do mesmo modo que os demais complexos, o eu seria resultado de um

conjunto de ideias ou imagens associado a uma carga emocional. Já o conceito de Self (ou Si-mesmo) Jung reserva para o arquétipo da totalidade do indivíduo, tanto consciente quanto inconsciente.

Segundo a teoria de Jung, o complexo do eu assume também uma função basilar na integração entre os fenômenos mentais e os fenômenos físicos. Isso porque, de um lado, o complexo do eu se associa a uma grande multiplicidade de representações do eu, que se liga, assim, a diversos outros complexos da psique, enquanto, por outro lado, está sob o efeito da tonalidade afetiva do conjunto de todas as inervações corporais, isto é, de todo o corpo.

Existem, portanto, na teoria de Jung, dois sentidos em que a identidade do indivíduo se fragmenta: em um primeiro nível, a divisão do Self ou Si-mesmo entre complexos conscientes e inconscientes; em um segundo nível, o complexo do eu como fórum central dos processos conscientes.

Cabe ressaltar que o inconsciente em suas variadas formas possui a primazia substancial na constituição do eu. A posição do eu enquanto agente e administrador de seu próprio processo é, assim, relativizada e muito especificada. Não cabe supor que o sujeito é responsável pelo que é, pelos conteúdos que manifesta, mas ele tem um alto grau de influência sobre como esses conteúdos se manifestarão, se mais conscientes ou inconscientes, se criticamente avaliados ou instintivamente reproduzidos. É essa perspectiva “educada” sobre a natureza predominantemente inconsciente da mente que diferencia o homem maduro e capaz de um grau elevado de autocontrole. É, de algum modo, uma capacidade de se tornar observador e colaborador do próprio inconsciente, e de através dele moderar ou filtrar de modo construtivo o inconsciente coletivo.

Pode-se dizer que McNamara segue de perto o modelo do Si-mesmo pensado inicialmente por Jung, quando discute o conceito de Self dividido. Assim como em Jung, o Self em McNamara aparece como uma divisão tanto dos processos da mente, entre aqueles que estão sobre o controle da consciência e aqueles além dela, quanto da vontade do indivíduo, que percebe em si mesmo o desejo de se adequar a uma imagem distinta de si.

Além disso, assim como Jung fala do complexo do eu como o eixo dos processos conscientes, McNamara se refere à noção de autoconsciência como aquela responsável por monitorar o conjunto de estados tanto corporais quanto mentais, a qual, contudo, considerada isoladamente, seria insuficiente para superação da divisão primordial do Self. Nesse sentido, o retorno ao Si-mesmo proposto por Jung no âmbito do indivíduo se mostra

na teoria de McNamara como a reversão de um processo de epigênese, uma vez que o atual estágio evolutivo de Self dividido é apresentado como aquele de menor custo metabólico, embora menos vantajoso do ponto de vista adaptativo.

Em ambos os autores a vontade é vista como energia disponível para emprego pelo eu (ou Self corrente). O custo metabólico ou ônus psíquico exigido pela agência torna-o (o eu) uma instância difícil de ser mantida, um fator cognitivo custoso e temporário de perspectiva crítica e capacidade de redirecionamento das potencialidades psíquicas, que tende a decair novamente no conforto do inconsciente ou dos sistemas neurocognitivos primários e da entrega à sua regência, a não ser que contextos ou medidas específicas exerçam influência contrária.

Construir um Self executivo central demanda não apenas esforço, como resiliência no processo de construção, que é de longo prazo. É preciso “cultivar hábitos que suportem

esse Self centralizado e inibir hábitos que promovam desejos conflitantes”56. A única coisa

a favor do centramento, além de predisposições biológico-genéticas mais ou menos favoráveis, são as estruturas socioculturais. Dentre estas, destaca amplamente McNamara, a religião é, por excelência, a principal função sociocultural favorável à construção do Self executivo central.

Para Jung a situação é semelhante, na medida em que ele afirma que a consciência se origina de uma psique mais antiga (JUNG, 1997, p. 27-28). O inconsciente é o elemento original, não se resumindo, como na psicanálise freudiana, ao recalque de elementos conscientes no mesmo nível. Há um progresso ou diferenciação que inaugura efetivamente uma etapa psíquica bem definida. Sendo o âmbito do inconsciente fragmentado, o que se observa claramente nas crianças, por exemplo, a formação do eu exige esforço disciplinador de longo prazo.

Como observara Goethe, e outros autores do período, Jung (1991, p. 172) propõe que introversão e extroversão são variantes psicológicas naturais, mas ao mesmo tempo influenciadas por disposições individuais. O individuo se “permite” avançar para além de suas fronteiras históricas e psicológicas durante as fases mais ou menos inevitáveis de introversão/extroversão. Neste balanço, o homem sofre crises e quebras de paradigma que vêm a rearranjar o eu em um espaço mais alargado: o Si-mesmo.

O processo psicológico da individuação está intimamente vinculado à assim chamada função transcendente, porque ela traça as linhas de desenvolvimento

56 “You need to practice habits that support a centralized Self and extinguish habits that promote conflicting

individual que não poderiam ser adquiridas pelos caminhos prescritos pelas normas coletivas (...).

A individuação está sempre em maior ou menor oposição à norma coletiva, pois é separação e diferenciação do geral e formação do peculiar, não uma peculiaridade procurada, mas que já se encontra fundamentada a priori na disposição natural do sujeito. Esta oposição, no entanto, é aparente; exame mais acurado mostra que o ponto de vista individual não está orientado contra a norma coletiva, mas apenas de outro modo (JUNG, 1991, p. 427).

Com razão, o Si-mesmo emerge para si como jogo de luz e sombra, como conflito entre eu e minha sombra, como quadro narrativo de conflito/complementaridade, herói e rival – dragão, irmão inimigo, arqui-inimigo, etc. (JUNG, 1991, p. 443). Nessa conjugação entre fatores herdados a priori, sejam eles de natureza psicoide ou genético-biológica, e sua realização através de práticas culturais, especialmente símbolos e rituais de natureza religiosa, os processos de individuação e descentramento se aproximam enquanto teorizações acerca da capacidade de transformação e ampliação do eu ou Self atual, fundamental para a compreensão dos processos psicológicos e cognitivos do ser humano em sua totalidade.

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 135-138)