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PRÁTICAS RELIGIOSAS E A TRANSFORMAÇÃO DO SELF

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 123-126)

3 NEUROCIÊNCIA DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA EM P MCNAMARA

3.7 PRÁTICAS RELIGIOSAS E A TRANSFORMAÇÃO DO SELF

Segundo McNamara (2009, p. 145), existe uma sobreposição considerável entre a neuroanatomia do Self e da experiência religiosa. Embora algum grau de correspondência fosse esperado, uma vez que o Self está envolvido naturalmente como o agente da experiência religiosa, a sobreposição ocorre mais nitidamente neste caso que em outras experiências mentais, como, por exemplo, o prazer estético ou a descoberta científica. Para McNamara, esse é um indício de que existe uma relação funcional entre o Self e os comportamentos e experiências religiosas:

Muitas práticas religiosas atuam para facilitar a transformação e o desenvolvimento do Self – especificamente ao reduzir a discrepância entre o Self atual e o Self ideal e ao intensificar as funções executivas pré-frontais. Funções executivas pré-frontais intensificadas criam um senso de Self unificado, um Self ideal com um forte senso de agência e vontade53.

Em termos cognitivos e neurológicos, McNamara (2009, p. 156) propõe um modelo simplificado para explicar como ocorre a transformação do Self, a partir do aumento na aquisição de funções cognitivas executivas (FCE), que seriam aquelas responsáveis, grosso modo, pelas atividades de planejamento, manutenção e ajuste de comportamentos não rotineiros e orientados ao objetivo. As FCE seriam mediadas pelo córtex pré-frontal, o qual, portanto, estaria associado a um conjunto de comportamentos cultivados em geral na prática religiosa, como a resistência aos impulsos imediatos, a empatia e a responsabilidade moral em relação a outros indivíduos e a obediência às normas sociais ou dogmáticas.

Na medida em que promovem a capacidade do indivíduo de distinguir entre diferentes possibilidades de ação consciente, bem como da sua capacidade de escolha voltada para um ideal de comportamento, as práticas religiosas atuam no sentido de um Self menos fragmentado. Como afirma McNamara, esse processo seria capaz de transformação em direção ao Self ideal.

Segundo McNamara (2009, p. xx), os conceitos de Deus desempenham papel fundamental na orientação do processo de transformação do Self envolvido nas diferentes práticas religiosas.

Agentes sobrenaturais são frequentemente (mas nem sempre) agentes com mentes semelhantes às nossas, mas sem correspondente corpóreo (MCNAMARA, 2009, p. 194).

53 “Many religious practices function to facilitate transformation and growth of the Self – specifically by

reducing the discrepancy between the current Self and an ideal Self and by enhancing prefrontal executive functions. Enhanced prefrontal executive functions create a sense of a unified Self, an ideal Self with a Strong sense of agency and Will” (MCNAMARA, 2009, p. 146).

Em muitos casos, esses agentes possuem poderes superiores, entre os quais o completo acesso às ações e aos pensamentos dos seres naturais. Para McNamara, esse atributo dos agentes sobrenaturais é mais um indício da relação entre religião e Self, na medida em que a capacidade de conhecimento completo do Self é atribuída a um nível mais elevado de existência.

Em sua análise dos conceitos de Deus, McNamara (2009, p. 194) propõe inicialmente três situações possíveis. A primeira delas seria a existência de fato de agentes sobrenaturais e que, portanto, nossas intuições a respeito estariam aproximadamente corretas. Essa possibilidade o autor descarta, uma vez que busca delimitar a discussão à maneira como “conceitos representando agentes sobrenaturais funcionam na economia

cognitiva da mente”54. A segunda possibilidade seria a de que os conceitos de Deus

emergiriam por uma falha dos mecanismos da Mente. Segundo Boyer (2001 apud MCNAMARA, 2009, p. 194), os conceitos de agentes sobrenaturais seriam formados pelo maquinário inferencial empregado no processamento de ações de agentes ordinários como pessoas e animais. Para McNamara (2009, p. 196), esse modelo apresenta limitações, uma vez que não abrange todas as concepções de deuses. Na terceira possibilidade, favorecida por McNamara, os conceitos de Deus teriam sua fonte nos sonhos. De acordo com o autor (MCNAMARA, 2009, p. 196), as pesquisas sobre os diferentes estágios do sono sugerem que os personagens dos sonhos são capazes de operar de maneira independente da vontade do indivíduo. Assim, por exemplo, o indivíduo pode ser atacado em seu sonho, ainda que deseje diferentemente. Essa característica de independência seria suficiente, então, para que nossos antepassados lhe atribuíssem um sentido de realidade.

Segundo McNamara (2009, p. 203), a maioria das populações tradicionais pré- modernas considerava os sonhos como um meio de interação com o mundo espiritual, e é provável que populações ancestrais também o fizessem. Além disso, os personagens dos sonhos apresentam características que os aproximam daquelas normalmente atribuídas aos deuses. Primeiro, porque aparecem nos sonhos como mentes semelhantes às nossas, mas incorpóreas. Segundo, porque muitas vezes demonstram a capacidade de conhecer ações e pensamentos que em geral lhe seriam ocultos. Para McNamara, a ligação entre os sonhos e os conceitos de Deus poderia justificar, ao menos parcialmente, o modo como os últimos são percebidos com intensidade: “As imagens do sonho têm uma carga emocional inata,

54 “For now I’m simply trying to clarify how concepts representing supernatural agentes function in the

alta notabilidade, nitidez e propriedades de complexidade, e essas características podem ajudar a dar conta do impacto dos conceitos de Deus sobre outros sistemas cognitivos e

comportamentais”55.

Os conceitos de Deus têm papel importante também no prolongamento do processo de descentramento. De acordo com McNamara (2009, p. 205), porque alguns conceitos de Deus são formados por imagens ou personagens de sonhos altamente carregados, o Self original encontra maior dificuldade para se integrar a um Self superior e recuperar as funções cognitivas executivas. No entanto, em última instância a imagem de Deus não suplanta o Self, ao contrário, ela força o Self a se elevar, e nesse processo, ainda que mais demorado, faz com o Self se fortaleça.

55

“Dream images have an innate emotional charge, high memorability, vividness, and complexity properties, and these alone might help account for the impact of God concepts on other cognitive and behavioral systems” (MCNAMARA, 2009, p. 204).

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 123-126)