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Pertinência e impertinência dos fisicalismos de Jung e McNamara

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 130-133)

4 ESTABELECENDO UM DIÁLOGO ENTRE JUNG E MCNAMARA

4.2 RELAÇÕES CONCEITUAIS ENTRE JUNG E MCNAMARA

4.2.1 Pertinência e impertinência dos fisicalismos de Jung e McNamara

Na abordagem que fazem dos fenômenos mentais, tanto Jung quanto McNamara se propõem a preservar a complexidade da experiência religiosa ao mesmo tempo em que afirmam a possibilidade de uma investigação de aspectos da religião, seja por meio das figuras simbólicas, seja pelos efeitos aparentes na atividade cerebral. Surge então naturalmente, a esse respeito, um questionamento quanto aos pontos em que os modelos mentais de ambos os autores se aproximam e se afastam.

Como dito anteriormente, no capítulo 3.1, McNamara se apressa em defender que não existe causação entre o aspecto físico (o cérebro) e o aspecto mental (considerando, no caso, a experiência religiosa como integrante da mente). Embora defenda a relevância das novas descobertas da neurociência, McNamara é categórico ao afirmar que o cérebro faz apenas a mediação da experiência religiosa. Dessa forma, deixando de lado a discussão quanto ao pólo monismo-dualismo, podemos propor duas soluções para a relação entre mental e físico subjacente à teoria do autor.

Uma primeira proposta seria considerar que há causação entre os dois aspectos, mas em sentido diverso ao discutido acima: a experiência religiosa seria a fonte causal das alterações do estado do cérebro. Essa proposta, contudo, sugeriria o epifenomenalismo do fenômeno cerebral, o qual é problemático em ao menos dois sentidos. Em primeiro lugar, porque incorre em todas as dificuldades do epifenomenalismo tradicional, em sua incapacidade de dar razão a um fenômeno que se afirma meramente secundário. Em segundo lugar, porque viola o estatuto dado por McNamara às pesquisas neurocientíficas, colocando em xeque a capacidade explicativa dos fenômenos físicos evidenciados no cérebro.

Uma proposta alternativa para a teoria da mente em McNamara seria supor um paralelismo entre os fenômenos físico e mental, segundo o qual os dois aspectos poderiam ser correlacionados, mas sem vínculo causal. Evidentemente, esse modelo remete as dificuldades para um nível mais profundo, uma vez que teria de dar conta, em última instância, de justificar os fundamentos desse paralelismo. No entanto, os termos utilizados pelo autor, pelos quais os processos físicos no cérebros são descritos como “mediadores” da experiência religiosa, sugere que existe um primado do aspecto mental em sua teoria. O cérebro, nesses termos, seria um meio de transmissão de um fenômeno mais abrangente para formas de percepção físicas.

Também Jung rejeita o ponto de vista causal ou redutivo, afirmando que os fatos psíquicos merecem ser considerados como fenômenos independentes. Como McNamara,

ele se preocupa em ressaltar a importância dos fatos empíricos ou dados fenomenológicos

para a compreensão dos aspectos psíquicos da experiência religiosa, ao mesmo tempo que busca afastar sinais de que seu modelo da psique redundaria em um epifenomenalismo. Embora afirme com convicção a ligação entre o fato psíquico e a função cerebral, Jung defende que esses fatores são fenômenos independentes.

O endereçamento da consciência ao mundo e o lastreamento de uma parte significativa e fundamental dela no mundo é algo amplamente discutido pelos dois autores. Em Jung esse reconhecimento corresponde à atividade ectopsíquica, oposta às atividades endopsíquicas.

A ectopsique é um sistema de relacionamento dos conteúdos da consciência com fatos e dados originários do meio ambiente, um sistema de orientação que concerne à minha manipulação dos fatos exteriores, com os quais entro em contato através das funções sensoriais. A endopsique, por outro lado, é o sistema de relação entre os conteúdos da consciência e os processos postulados no inconsciente (JUNG, 1998, p. 29).

Em McNamara a neurociência e a neuroquímica, tanto do Self quanto da experiência religiosa, acabam ficando em segundo plano. O autor se fundamenta mais em teorias da psicologia empírica acerca do Self – psicologia narrativa (teoria dos Selves possíveis) e teorias da autorregulação (Self como conjunto de esquemas) – para desenvolver sua proposta sobre o mecanismo de descentramento. No âmbito da psicologia da religião, opta pelo modelo pragmático de William James como um de seus principais fundamentos. Não obstante, e ao mesmo tempo, as diversas pesquisas em que se baseia apontam para a positividade da religião, ao menos nesse sentido pragmático. Neuroquimicamente estaria ligada à atuação dos neurotransmissores dopamina e

serotonina; geneticamente, à possibilidade de rearranjo e integração de incompatibilidades herdadas e, fisiologicamente, à integralidade das funções cerebrais e otimização do desempenho cognitivo do indivíduo engajado em práticas religiosas.

Em termos, pode-se concluir que, em McNamara, a religião apresenta significativos efeitos positivos sobre a saúde psicofísica, sem apresentar contrapartidas e efeitos colaterais e nocivos dignos de nota, exceto em alguns casos, como fanatismo religioso e possessão espiritual negativa que, entrementes, representam desvios ou distúrbios no processo normal da experiência religiosa, seja devido a falhas no processo em si ou a predisposições patológicas. Se a filiação ou simpatia em relação ao pragmatismo jamesiano ou seu modelo de psicologia da religião tem algum fundamento, a racionalidade científico- pragmática aponta decididamente para a religião como comportamento recomendável, talvez imprescindível ao bem-estar e à saúde física e mental.

Do ponto de vista epistemológico, parafraseando Roderick Chisholm, o problema de uma perspectiva científica, não apenas sobre a religião, mas em geral, é que é necessário responder ao ceticismo com algum tipo de pressuposição: “Estou justificado na crença de que posso melhorar e corrigir meu sistema de crenças” (CHISHOLM, 1989, p. 5). Em outras palavras, a perspectiva crítica adotada pela ciência não pressupõe verdade, certeza ou infalibilidade do método e abordagem utilizados; pressupõe, sim, que o conjunto de crenças apresentado seja decididamente não dogmático, que esteja sujeito à crítica, correção e modificação.

Para o senso comum, uma proposição só pode ser negada ou afirmada. Para a ciência, ambas as perspectivas estão abaixo da dimensão crítica de julgamento das proposições: mantê-las em aberto e pensar livremente sobre elas, considerando associá-las a evidências ou críticas ao mesmo tempo. Para o senso-comum, então, “não é racional prosseguir se você não crê estar suficientemente justificado”. Mas o que não é razoável é precisamente esta afirmativa popular. Seria sim irracional prosseguir acreditando que não estou justificado, mas não acreditar que estou justificado é diferente de acreditar que não estou justificado. A primeira opção corresponde ao pensamento crítico e científico (CHISHOLM, 1989, p. 6).

Já em relação ao ceticismo, a proposta de Pirro de que toda afirmação deve ser contrabalançada, ou que ao menos devemos considerar que toda e qualquer afirmação pode ser anulada por uma afirmação contrária, é uma afirmação não contrariada no sistema cético (CHISHOLM, 1989, p. 9). Chisholm conclui que as proposições têm maior força

epistêmica do que as “contraproposições”. E, citando Moore, afirma que crenças têm status epistemológico primário, enquanto dúvidas são juízos epistemológicos secundários, do tipo “e seu eu estiver enganado”. No primeiro caso temos o reforço psicológico e lógico de “saber que sabemos de algo”, enquanto no segundo caso temos uma condição ainda plausível mas menos “energética” de questionamento de nossa convicção primária (CHISHOLM, 1989, p. 14-20).

Jung e McNamara, portanto, estão de acordo com a abordagem epistemológica assertiva. O fato de não corresponderem à noção de ciência do início do século XX – de que a ciência almeja a certeza e que a mais leve dúvida razoável é suficiente para impedir o prosseguimento de um programa científico – não é suficiente para que desautorizemos seus trabalhos.

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 130-133)