• Nenhum resultado encontrado

PSICOLOGIA DA RELIGIÃO EM JUNG E MCNAMARA

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 138-143)

4 ESTABELECENDO UM DIÁLOGO ENTRE JUNG E MCNAMARA

4.3 PSICOLOGIA DA RELIGIÃO EM JUNG E MCNAMARA

Prosseguindo com a contextualização e crítica dos dois autores, trata-se agora de considerar o que parece ser o clímax e objetivo central das teorias e esforços de ambos. Suas psicologias da religião se caracterizam, primeiramente, por serem tentativas de desvincular a experiência religiosa de ideologias e filosofias religiosas, buscando a objetividade e formatação geral do fenômeno. Também partem ambos de uma posição semelhante às de Mircea Eliade, Rudolf Otto e outros estudiosos da religião que assumem a intenção de não reduzir a religião segundo ideologias mais ou menos confessas da modernidade que tendam a negar a priori qualquer validade objetiva para a positividade da religião, haja visto que “contradiz tudo o que a visão de mundo científica há revelado”.

Conforme explicitado ao longo deste capítulo final, entendemos que as teorias de Jung e McNamara seguem o caminho espinhoso e não raro conflitante de uma defesa científica da religião, que não pode se entregar à nomenclatura e métodos doutrinariamente comprometidos, sem, contudo, aceitar minimamente a doutrina ateísta de fundo pressuposta mais ou menos tacitamente pela grande maioria dos cientistas do século XX.

Em certos aspectos, é preciso reconhecer que a posição de Jung não destoa de numerosos textos de autoajuda e propostas espiritualizantes da Nova Era, que, aliás, se

apropriam animadamente de teorias e fragmentos de sua obra. A ideia de que a “Era Científica” e sua mentalidade mecanicista, ateísta e materialista foi responsável tanto pelo hedonismo desumanizante quanto pela crueldade sem precedentes do Holocausto, de Hiroshima e da divisão radical dos seres humanos em blocos e ideologias fratricidas, é amplamente suportada por Jung. “O homem medieval ainda não se tornara totalmente vítima dessa mundanidade, como o homem da massa de nossos dias, pois, em oposição às forças manifestas e, por assim dizer, palpáveis desse mundo, ele reconhecia também a existência de potências igualmente influentes que era preciso levar em conta” (JUNG, 1984a, p. 224). A teoria hoje tão popular de que o desequilíbrio e unilateralidade da cultura teocêntrica medieval não foram superados, mas apenas antagonizados pelo desequilíbrio e unilateralidade da cultura antropocêntrica moderna – antropocentrismo que não é sequer completo, pois ignora as dimensões espirituais e frequentemente as dimensões morais do humano – é explicitamente aventada por Jung (JUNG, 1984a, p. 225).

A ênfase na superioridade do eros maternal, de que é a energia feminina a responsável pela harmonia e unificação interpessoal, de que o contato com a natureza não representa uma regressão ao estado selvagem, mas antes um reencontro com a fonte da vida imprescindível ao equilíbrio do eu/Self, são todos elementos dominantes a partir do final do século XX, caracterizados por muitos como renascença mística e espiritual do Ocidente.

Da mesma forma como a bomba atômica é um processo de destruição física em massa, como nunca houve até agora assim também uma evolução mal conduzida da psique conduzirá forçosamente a um processo de destruição psíquica em massa. A situação atual é de tal modo sombria, que não podemos reprimir a suspeita de que o Criador do mundo está planejando, de novo, um dilúvio para aniquilar de uma vez por todas a raça humana presente (JUNG, 1984a, p. 227).

Trechos como o acima dão a entender ou suspeitar três possíveis linhas de interpretação. A mais literal sugeriria a ortodoxia religiosa de Jung, a mais secular sugeriria a ironia na aplicação da referência mitológica (Dilúvio). A mais madura e crítica seria a de que Jung aplica conscientemente o simbolismo mitológico para transmitir uma mensagem contundente e apelativa à sensibilidade coletiva, não deixando de ter escolhido a conjunção de palavras com certa aceitação tácita de seu poder. É por isso que, justamente ao tratar dos assuntos mais sérios, de suas preocupações mais graves, as referências a Deus, Criador, Supremo, com proporcional gravidade e até reverência, não permitem crer que o aspecto secular de Jung, declarado e reafirmado repetidamente em suas abordagens

fisicalistas, seja tão intenso quanto ele tenta expressar no início de sua carreira. E na continuidade do mesmo argumento:

Se alguém pensa que uma crença sadia na existência dos arquétipos pode ser inculcada a partir de fora, é tão ingênuo quanto aqueles que querem prescrever a guerra ou a bomba atômica por meios legais [...] A mudança da consciência deve começar dentro de cada um e é um problema que data de séculos e depende, em primeiro lugar, de saber até onde alcança a capacidade de evolução da psique. Tudo o que sabemos hoje é que há indivíduos capazes de se desenvolver (JUNG, 1984a, p. 227).

É pragmático o procedimento de McNamara em sua análise da experiência religiosa. Ele pretende se ater ao fenômeno e seus efeitos – poderosos, diga-se de passagem – sobre a vida humana.

No decorrer do meu trabalho desenvolvi respeito e fascinação por este que é uma das mais poderosas experiências humanas. Não estou interessado em contestar supostas pretensões religiosas ou chama-las de “nada mais que...” Tampouco estou interessado em me tornar defensor da religião. Antes, espero oferecer aos leitores um esforço sincero de compreender a variedade dos fenômenos religiosos e os efeitos profundamente transformativos da experiência religiosa57. (MCNAMARA, 2009, p. xiii)

McNamara levanta o problema de Sterelny, que critica a religião por ser contrafactual. Mas, conforme McNamara, há um padrão claro no processo psicológico/existencial daqueles que empreendem uma jornada religiosa. Caso não houvesse qualquer estrutura racional, um padrão comportamental e uma ordenação discernível na fenomenologia da vida religiosa seriam impossíveis de se traçar. Narrativas religiosas revelam, no entanto, uma similaridade invariável; mais que isso, um padrão. Elas começam com excitação ou fascinação após a descoberta do elemento numinoso, passam após algum tempo por uma fase de negatividade, desânimo e ruptura do fiel com aquela ligação psicologicamente positiva anteriormente cultivada. Tal ruptura – uma “noite escura da alma” (MCNAMARA, 2009, p. 18) – que pode também se demorar por muito tempo, dá lugar a um retorno do indivíduo à união com Deus. Desta forma, excetuando-se os casos em que há abandono da vida espiritual em algum momento, a jornada religiosa conduz sistematicamente a uma sequência de enamoramento-ruptura-reconciliação, em que a fase final é vista sempre como síntese qualitativamente superior de aprofundamento na vida

57

“In the process of my work I have developed a fascination and respect for this most powerful of human experiences. I am not interested in debunking religion’s supposed pretensions or calling it ‘nothing but...’ Nor am I interested in becoming an ideologically motivated partisan for religion. Rather, I hope to offer readers a serious attempt to understand a wide range of religious phenomena and the powerfully transformative effects of religious experience” (MCNAMARA, 2009, p. xiii).

religiosa, com as inúmeras vantagens cognitivo-adapatativas da reelaboração do Self enumeradas por McNamara.

Com uma evidência de padronização da vida religiosa, McNamara afirma haver ao menos dois tipos de factualidade que se chocam com a crítica de Sterenly: a da racionalidade prática e a da estrutura neural subjacente a este padrão. A racionalidade prática, como aponta Kant, teria de se remeter em algum momento à racionalidade teórica (MCNAMARA, 2009, p. 19). Dessa forma, a estrutura psicológica que endossa o sentido da vida, o bem-estar, a liberdade, a paz, e as outras características altamente desejáveis asseguradas pela religiosidade, ao menos sugere a correspondência de alguma estrutura ontológica correspondente (se quisermos aqui manter o paralelismo mente-matéria). Não havendo correspondente no mundo, a que a mente se remeteria com tanta carga psíquica e segundo esquemas tão padronizados? Por outro lado, como a estrutura neural poderia ser arranjada de modo a produzir tal padrão psicológico? Pode a mente evoluir de modo a produzir um objeto puramente imaginário de significado capital para a existência, para o bem-estar da espécie e seus indivíduos?

Jung afirma não estar abordando aspectos metafísicos (Deus, a realidade de Deus), mas sim sempre e tão somente os aspectos psicológicos da religião. Também nega reduzir Deus ao Si-mesmo ou outros arquétipos. McNamara, similarmente, afirma não estar “equacionando o Self ideal a Deus”, isto é, não está, através de sua teoria, explicando – no sentido em que a ciência busca dar explicações suficientes e exaustivas para a realidade do que é percebido – Deus através do Self ideal. Ao contrário, ambos os autores, de forma também semelhante, afirmam que o eu ou Self tem diante de si um constructo psíquico ou neurocognitivo que equivale à imagem que se forma de Deus, mas não à divindade em si. Essa imagem, por outro lado, é formada – com base em estruturas inatas – fora do âmbito da consciência do eu ou Self, seja no inconsciente ou no espaço suposicional. O clímax da vida psíquica, portanto, é introduzir Deus no âmbito consciente, integrá-Lo ao eu ou Self corrente, ou talvez, como se poderia pensar ser mais coerente, integrar o eu ou Self corrente, de contornos mais restritos, ao Si-mesmo ou Self ideal, de contornos mais abrangentes. Com isso, aproxima-se a imagem que se tem de si mesmo à imagem que se tem de Deus; o processo considerado em seus aspectos psíquicos ou neurocognitivos possui, claramente, fortes analogias com seu equivalente nas reflexões de caráter filosófico ou religioso. Para Jung, não poderia ser de outra forma, uma vez que o único meio de que dispomos para conhecer e nos relacionarmos com a realidade, seja em seu aspecto material

ou espiritual, é através da psique e suas funções, que representam a realidade em seus diversos níveis.

A vida religiosa, ou ao menos sua característica mais importante de relacionamento do sujeito com o cosmo, o fundamento do ser ou um sujeito idealizado (não tanto em sentido fantasioso), parece surgir aos dois autores como experiência passível de análise psicológica e neurológica. Embora não tenham feito contribuições conceituais sobre a essência da religião, ou elaborações filosófico-teológicas que ajudassem a compreender o que é esse elemento numinoso e como poderia ser melhor descrito, tanto Jung quanto McNamara se dedicaram integralmente a fazer a análise empírica da fenomenalidade subjetiva na qual esse elemento numinoso desponta. Encontraram com isso o lugar e modo como a consciência se relaciona com o numinoso, e de que forma as estruturas psíquicas e fisiológicas do ser humano podem mediar sua aparição. Se realmente, como foi sugerido acima, estão ambos comprometidos com a vida religiosa, então sua escolha foi de viver, ao menos profissionalmente, às margens dela, sem adentrá-la. Esse sacrifício e abnegação de não desfrutarem do prêmio no qual seguramente acreditam, permanecendo no trabalho de interligação com a ciência contemporânea, confere-lhes um mérito especial. Afinal, o trabalho árduo de preparar o terreno estéril da visão de mundo moderna para a semente da consciência espiritual é dos mais amargos e menos recompensadores, dos mais sujeitos à crítica de todas as frentes. Contrários à Maria que “escolheu a melhor parte”, eles, como Marta, expressaram seu idealismo devotando-se à limpeza do templo.

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 138-143)