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O arquétipo junguiano e a teoria das narrativas ideais de McNamara

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 133-135)

4 ESTABELECENDO UM DIÁLOGO ENTRE JUNG E MCNAMARA

4.2 RELAÇÕES CONCEITUAIS ENTRE JUNG E MCNAMARA

4.2.2 O arquétipo junguiano e a teoria das narrativas ideais de McNamara

Na linha pragmática através da qual Jung e McNamara sustentam sua abordagem científica da religião, o papel do símbolo e da narrativa modelares exige alguma justificação. Seu emprego, ainda que já longamente explanado, tem maior força no âmbito de uma ciência da religião ou psicologia da religião. Como nos aproximamos daquele tópico, convém lembrar que o presente não apenas quer estabelecer o vínculo entre os autores, como mostrar que ambas as teorias sobre os símbolos se encaminham particularmente para a análise da religião.

Se fosse possível não hesitaríamos em suprimir toda a especulação a respeito das possíveis consequências de uma experiência obscura e longínqua como a do mandala. Mas esse tipo de experiência não é para mim nem obscuro nem longínquo. Muito pelo contrário: trata-se de um fato que observo todos os meus dias em minha vida profissional. Conheço um número consideravelmente grande de pessoas que, se quiserem viver, devem levar a sério sua experiência íntima. Empregando uma linguagem pessimista: não lhes resta senão escolher entre o diabo e belzebu. O diabo é o mandala ou algo equivalente, e belzebu é sua neurose. Um racionalista bem-pensante poderia dizer que eu expulso belzebu e o diabo, ao mesmo tempo, e substituo uma neurose honrada pelo engodo de uma fé religiosa. A respeito do primeiro item nada tenho a dizer, pois não sou perito em metafísica, mas em relação ao segundo devo observar que não se trata de uma questão de fé, mas de experiência. A experiência religiosa é algo de absoluto, não é possível discutir acerca disso. Uma pessoa poderá dizer que nunca teve uma experiência desse gênero, ao que o oponente replicará: “lamento muito mas eu a tive”. E com isso se porá termo a qualquer discussão. É indiferente o que pensa o mundo sobre a experiência religiosa: aquele que a tem, possui, qual inestimável tesouro algo que se converteu para ele numa fonte de sentido e de beleza, conferindo um novo brilho ao mundo e à humanidade. Ele tem pistis e paz. Qual o critério válido para dizer que tal vida não é legítima, que tal experiência não é válida, sendo essa pistis mera ilusão. Haverá uma verdade

melhor em relação às coisas últimas do que aquela que ajuda a viver? Eis a razão pela qual eu levo a sério os símbolos criados pelo inconsciente. Eles são os únicos capazes de convencer o espírito crítico do homem moderno. (JUNG, 1980, p. 104-105)

Como o condicionamento biológico básico (psiquicamente correspondente ao instinto), o arquétipo em Jung tem papel fundamental na estruturação da consciência do eu – que poderia ser aproximado do Self corrente em McNamara. Como o homem de Nietzsche é uma corda estendida entre o macaco e o super-homem, o eu é uma corda que liga o animal ao espiritual, o determinismo biológico ao arquétipo. Jung afirma que estes dois extremos não estão presentes ou contidos no psiquismo, mas são psicóides: dão ensejo ao psiquismo. O arquétipo é o ultravioleta, o instinto é o infravermelho do psiquismo. Não podemos lidar com nenhum deles, e eles só aparecem para a mente com referência ou caracterizados, representados como elementos psíquicos liminares; respectivamente símbolo e subliminar. Dessas coisas “em-si-mesmas” não podemos saber absolutamente nada. Mas podemos conhecer seus efeitos e sintomas. Uma forma indireta, mas a única possível, de pensar o arquétipo, assim como a matéria.

Da mesma forma como o “infravermelho psíquico”, isto é, a psique biológica instintiva, se resolve gradualmente nos processos fisiológicos do organismo, ou seja, no sistema de suas condicionantes químicas e físicas, assim também o “ultravioleta psíquico”, o arquétipo denota um campo que não apresenta nenhuma das peculiaridades do fisiológico mas que no fundo não pode ser mais considerado como psíquico, embora se manifeste psiquicamente. [...] Devemos aplicar este argumento, logicamente, também aos arquétipos. Como, porém, não temos consciência de sua natureza essencial e, não obstante, eles são experimentados como agentes espontâneos, é quase certo que não temos outra alternativa senão a de definir sua natureza como “espírito”, com base em seu efeito mais importante, e isto precisamente naquele sentido que procurei definir em meu ensaio sobre a fenomenologia do espírito. [...] Tanto a matéria como o espírito aparecem na esfera psíquica como qualidades que caracterizam conteúdos conscientes. Ambos são transcendentes, isto é, irrepresentáveis em sua natureza, dado que a psique e seus conteúdos são a única realidade que nos é dada sem intermediários (JUNG, 1984a, p. 220).

A “morfologia do conto fantástico”, conforme elaborada por Propp e citada por McNamara, apresenta uma estrutura pré-determinada. Narrativas precisam ter coerência de significado vital, como demonstraram Freud, Jung, Campbell e Eliade (MCNAMARA, p. 51). Fábulas que apresentam estruturas similares, sugerindo para autores da psicologia ou da ciência da religião a presença de um arquétipo ou a priori mitológico, revelam algo sobre a estrutura neurocognitiva ligada à construção do Self.

Em Jung, os diferentes arquétipos (como anima e animus, velho sábio, mãe ctônica, Si-mesmo, entre outros) seriam como Selves ideais aos quais o Self atual tenta integrar-se.

Ao passo que em McNamara os Selves ideais são superiores, hierarquicamente acima do Self – salvo as naturais exceções patológicas –, em Jung uma hierarquia entre os fatores arquetípicos não seria um termo totalmente apropriado. Entrementes, a semelhança entre ambos estaria no fato de que o repositório geral, coletivo ou “numinoso” precisa ser, na medida do possível, e sem que se alcance um estágio final, integrado ao eu ou Self corrente, a fim de permitir o alargamento evolutivo deste último, uma expansão ou ampliação da consciência (JUNG, 1981a, p. 168).

McNamara reconhece em sua tipologia – desdobrada de Phanke e James – um elemento imagético (visual e metafórico) na experiência místico-religiosa, por sua vez estreitamente ligado ao insight noético que acompanha esse tipo de experiência (MCNAMARA, 2009, p. 16). As ideias religiosas seriam, para o autor, tão intensas e cognitivamente impactantes que não poderiam ser expressas senão por uma complexa simbologia (MCNAMARA, 2009, p. 16). De forma semelhante, o simbolismo obscuro e de difícil interpretação analítica é, para Jung, o resultado necessário do grau de profundidade que a experiência religiosa tem para a vida psíquica, somente podendo ser representado através de um pensamento imagético e metafórico com raízes em processos inconscientes (JUNG, 1984a, p. 153).

No documento hermenegildoferreiragiovannoni (páginas 133-135)