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As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e o papel do Município

CAPÍTULO 5. O PLANO DIRETOR DE SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM)

5.3. O conteúdo do plano diretor de São Gabriel da Cachoeira (AM)

5.3.1.4. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e o papel do Município

Conforme já mencionado, 81,66% do território de São Gabriel da Cachoeira é ocupado por terras indígenas já demarcadas 164. Sua população, ainda predominantemente rural, reside, em sua maioria, em terras tradicionalmente ocupadas por índios.

As primeiras reivindicações pela demarcação de terras indígenas surgem já na década de 70, mediante tentativas de constituição de um território indígena (art. 30, Estatuto do Índio). Durante a década de 80, o cenário de atores e interesses presentes em São Gabriel da Cachoeira torna-se mais complexo. Marcado pela descoberta do ouro e implantação do Projeto Calha Norte, a região assiste a chegada de militares, garimpeiros e mineradoras165.

É o Projeto Calha Norte que irá propor um primeiro modelo de ordenamento territorial das terras indígenas: um mosaico formado por Colônias Indígenas (art. 26, parágrafo único, alínea “b” c/c art. 29 do Estatuto do Índio) e Florestas Nacionais (Código Florestal, Lei Federal nº 6.771/65).

Em 1987, é fundada a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN, que passa a reivindicar a demarcação contínua das terras tradicionalmente ocupadas por índios em oposição à demarcação em “ilhas” descontínuas.

Durante os anos 90, após uma série de disputas políticas e judiciais, foram homologadas 5 (cinco) terras indígenas contíguas na região do Alto e Médio Rio Negro, totalizando uma extensão de 106 mil km2166.

Por um lado, a homologação de terras tradicionalmente ocupadas por índios soluciona o conflito fundiário existente, pois elimina as dúvidas no que se refere ao real proprietário da área. Com efeito, as terras tradicionalmente ocupadas por índios são bens da União Federal (art. 20, inciso XI, Constituição Federal) e reconhecidas enquanto direito originário dos índios (art. 231, Constituição Federal). Como tal, considera-se nulo e extinto qualquer ato que tenha por objeto a

164 Este percentual pode chegar a número mais alto. Durante a elaboração do plano diretor, ainda estava em processo de demarcação das terras indígenas do Balaio e Marabitanas Cué-Cué. Cumpre notar que a terra indígena Balaio foi homologada recentemente pelo Decreto de 21 de dezembro de 2009.

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Cf. Cristiane Lamar. De volta ao Lago do Leite: gênero e transformação no alto Rio Negro. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2005; Geraldo Andrello. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006.

166Cf. Aloísio Cabalzar e Carlos Alberto Ricardo. Povos indígenas do alto e médio Rio Negro: uma introdução à diversidade cultural e ambiental do noroeste da Amazônia brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental; São Gabriel da Cachoeira (AM): FOIRN - Federação das Organizações indígenas do Rio Negro, 1998, p. 9.

ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas por índios, sem direito à indenização (art. 231, §6º, Constituição Federal).

De outro, essa homologação gera conflitos em termos de gestão territorial. De que forma compatibilizar a gestão de um território cuja propriedade é da União Federal e o usufruto exclusivo dos recursos naturais e a posse permanente dos povos indígenas? Como garantir a permanência do pacto federativo em um Município cujo território é quase que integralmente de propriedade da União Federal?

E como se não bastasse, no município de São Gabriel da Cachoeira estão também localizadas duas unidades de conservação ambiental que se sobrepõem às terras indígenas homologadas: o Parque Nacional Pico da Neblina (Decreto nº 83.550/79) e a Reserva Biológica Estadual Seis Lagos (Decreto nº 12.836/90). A legislação indígena e de proteção ambiental estabelecem, para cada um dos casos, uma forma específica de gestão do território.

As terras indígenas são definidas pelo texto constitucional exatamente como aquelas utilizadas pelos índios para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (art. 231, §1º, Constituição Federal).

O Parque Nacional e a Reserva Biológica, por sua vez, são considerados unidades de proteção integral (art. 7º, inciso I, da Lei Federal nº 9.985/00), cujo objetivo básico é preservar a natureza, admitido, excepcionalmente, o uso indireto dos recursos naturais. A Reserva Biológica, por exemplo, não admite interferência humana direta, salvo medidas de recuperação de ecossistemas e ações de manejo para preservação do equilíbrio ambiental (art. 10, Lei Federal nº 9.985/00). Nos Parques Nacionais são autorizadas somente a realização de pesquisa científica, atividades de educação ambiental, recreação e turismo ecológico (art. 11, Lei Federal nº 9.985/00). Desconsidera-se, em ambos os casos, a necessidade de reprodução física e cultural dos índios.

Outrossim, a sobreposição desenvolve-se também no nível fundiário. A criação de reservas biológicas e parques nacionais se faz mediante a desapropriação (art. 10, §1º c/c art. 11, §1º, Lei Federal nº 9.985/00), instrumento inadequado para a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por índios. Como se sabe, estas terras são consideradas como direito originário dos índios e, como tal, geram a nulidade absoluta de atos que tenham por objeto sua ocupação, domínio ou posse. Não há, portanto, direito à indenização contra a União –

característica inerente aos processos de desapropriação – no que se refere às terras propriamente ditas, mas tão somente às benfeitorias existentes (art. 231, § 6º, Constituição Federal).

O plano diretor de São Gabriel da Cachoeira busca enfrentar esse tipo de conflito jurídico, urbanístico e, obviamente, também ambiental.

A busca de superação do desafio de compatibilizar gestão territorial em terras indígenas de maneira geral tem sido enfrentada também nacionalmente 167. Uma vez homologada a grande maioria das terras indígenas no país, a gestão desse território – e a necessária delimitação do papel do Estado e sua compatibilização com os usos, costumes e tradições dos índios – é o grande tema dos debates políticos e jurídicos sobre a questão indígena atualmente.

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao decidir o caso Raposa Serra do Sol no Estado de Roraima, por exemplo, estabeleceu 19 condições que se referem, em sua maioria, ao tema da gestão territorial de terras indígenas já homologadas 168. O projeto de lei de alteração do Estatuto

167 De acordo com a Fundação Nacional do Índio - FUNAI, as terras tradicionalmente ocupadas por índios já delimitadas totalizam 12,41% do território nacional. Disponível em: <http://www.funai.gov.br>. Acesso em: 24 abr. 2010, 13h20min.

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São elas, in verbis: “(i) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da CF) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar; (ii) o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional; (iii) o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei; (iv) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira; (v) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; (vi) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; (vii) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; (viii) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; (ix) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para tanto contar com a consultoria da FUNAI; (x) o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; (xi) devem ser admitidos o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI; (xii) o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; (xiii) a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público, tenham sido excluídos expressamente da homologação, ou não; (xiv) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico

do Índio, aprovado pela Comissão Nacional de Política Indigenista - CNPI, em junho de 2008, também confere atenção especial ao tema, destinando um capítulo à gestão territorial das terras indígenas 169.

De qualquer maneira, a lei municipal que instituiu o plano diretor teve de enfrentar o desafio de regulamentar a gestão territorial de bens federais afetados a diversos fins, especialmente ao usufruto exclusivo dos índios e à proteção ambiental, o que exigiu uma reflexão profunda sobre o papel do Município e seus limites de atuação.

5.3.2. Soluções propostas

Aprovado pela lei municipal 209/06, o plano diretor enfrenta os conflitos jurídico- urbanísticos a partir de uma estrutura geral composta por (i) princípios fundamentais e objetivos da política territorial, (ii) investimentos prioritários em políticas setoriais, (iii) ordenamento territorial – que subdivide o território em macrozonas, zonas e zonas especiais –, (iv) instrumentos urbanísticos e (v) um sistema descentralizado de planejamento e gestão.

Inicialmente, ao estabelecer os princípios fundamentais e objetivos da política territorial, o plano diretor define de maneira genérica a função socioambiental da cidade (art. 3º, § 2º) e também da propriedade (art. 3º, §2º).

No âmbito das políticas setoriais, considerando as diversas reivindicações que surgiram durante a etapa de leitura comunitária, o plano diretor determina os investimentos prioritários do Município, a fim de orientar a elaboração dos planos plurianuais, das leis de diretrizes

que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º, CF, c/c art. 18, caput, Lei nº 6.001/73); (xv) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa (art. 231, § 2º, CF, c/c art. 18, § 1º, Lei nº 6.001/73); (xvi) as terras sob ocupação e posse dos grupos e das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3º, da CF/88, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; (xvii) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; (xviii) os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, CF/88); e (xix) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento.” (STF, Pet. 3.388/RR, rel. Min. Carlos Britto, j. 19/03/2009)

orçamentárias e das leis de orçamento anuais (art. 6º). O Título II estabelece, pois, regras específicas para a elaboração de planos municipais de habitação, saneamento e mobilidade.

Ademais, determina investimentos prioritários no sistema viário, no sistema de energia elétrica e iluminação pública, na implantação de equipamentos comunitários, de desenvolvimento institucional da administração pública municipal e para o desenvolvimento econômico do Município. Prevê, por exemplo, a prioridade de investimento em um programa de sinalização urbana que respeite as línguas indígenas co-oficiais do Município (art. 10, inciso II), a implantação de postos municipais de saúde, de escolas públicas, de mercados municipais e de centros culturais em locais determinados por mapas (art. 12, inciso I).

Em relação ao ordenamento territorial, o plano diretor subdivide o Município em três macrozonas: a macrozona das terras indígenas, a macrozona urbana e a macrozona rural (art. 16), estabelecendo regras próprias de uso e ocupação do solo para cada uma delas. A macrozona urbana é dividida em zonas. Criam-se também as zonas especiais (art. 31)170.

A macrozona urbana tem por objetivo regular o crescimento da cidade, do uso e ocupação do solo para fins urbanos (art. 23) e subdivide-se em zona urbana 1 e 2 e zona de expansão urbana (art. 24). Para cada uma delas, o plano diretor define parâmetros de uso, ocupação e parcelamento do solo, bem como os instrumentos urbanísticos aplicáveis171. O critério fundamental da subdivisão da macrozona urbana em zonas foi a quantidade de infraestrutura e equipamentos públicos já instalados na área.

A macrozona urbana constitui-se expressamente enquanto perímetro urbano do Município de São Gabriel da Cachoeira (arts. 15, 22 e 29). A macrozona rural, por sua vez, tem por objetivo

170 Para a visualização do macrozoneamento, zoneamento e zoneamento especial, vale a consulta ao mapa 1 (Anexo 11) e ao mapa 2 (Anexo 12).

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Na zona urbana 1, cujo objetivo é regular o uso e ocupação no centro da sede urbana, visando ao melhor aproveitamento da infraestrutura viária, de saneamento básico e equipamentos comunitários, autoriza-se o uso misto residencial e não residencial (art. 26, § 1º), coeficiente de aproveitamento máximo 3, taxa de ocupação máxima de 70%, recuo lateral mínimo (1,5 m), recuo de fundo mínimo de 4 m, lote mínimo de 250m2 e gabarito máximo de 4 pavimentos (art. 26, § 2º). Os instrumentos urbanísticos aplicáveis são: o consórcio imobiliário, o estudo de impacto de vizinhança, a concessão de direito real de uso, a concessão especial para fins de moradia, o direito de superfície e o direito de preempção (art. 26, § 5º). Na zona urbana 2, cujo objetivo é regular o uso e ocupação do solo nos bairros com baixa densidade construtiva, onde a oferta de infraestrutura é precária, autoriza- se o uso misto (art. 27, § 1º), e como parâmetros urbanísticos considera-se o coeficiente de aproveitamento máximo 1,5, a taxa de ocupação máxima 60%, recuo lateral mínimo 1,5m, recuo frontal mínimo de 1,5 m, recuo de fundo mínimo 5,5 m, lote mínimo 250 m² e gabarito máximo 3 pavimentos (art. 27). Os instrumentos urbanísticos aplicáveis são: o estudo de impacto de vizinhança, a concessão de direito real de uso, a concessão especial para fins de moradia, o direito de superfície e o direito de preempção (art. 27, §6º). Por fim, a zona de expansão urbana, cujo objetivo é a definição de áreas para o crescimento urbano futuro da sede municipal, é autorizada a implantação de novos loteamentos e condomínios (art. 29, § 1º), e os parâmetros urbanísticos são os mesmos definidos pela zona de expansão urbana 2 (art. 29, §2º).

desenvolver o manejo agroflorestal e piscicultura sustentáveis, baseados nas características locais e nos conhecimentos tradicionais (art. 18). Não é permitida a implantação de loteamentos para fins urbanos e condomínios na macrozona rural. Os empreendimentos ecoturísticos podem ser implementados após a realização do Estudo de Impacto Ambiental - EIA. É considerada como dever da prefeitura a regularização fundiária de todas as terras públicas e privadas existentes na macrozona rural (art. 19) 172.

Ao distinguir a macrozona urbana e rural, o plano diretor busca solucionar as dificuldades relacionadas à ausência de limites jurídicos entre o rural e urbano. Define-se claramente o perímetro urbano e elimina-se, em tese, a insegurança jurídica e as dificuldades do ponto de vista tributário.

Por fim, convém analisar a macrozona das terras indígenas, que visa promover e incorporar os direitos indígenas assegurados pelo ordenamento jurídico nacional (art. 17). De fato, o plano diretor reitera direitos garantidos pelo texto constitucional relativos às terras tradicionalmente ocupadas por índios (art. 231 e art. 232, Constituição Federal), tais como o usufruto exclusivo dos recursos naturais (art. 17, §1º), a propriedade da União e a posse permanente dos índios (art. 17, § 2º), seu caráter inalienável e indisponível, bem como a imprescritibilidade dos direitos sobre elas (art. 17, §3º).

Com efeito, fica proibida na macrozona indígena qualquer transação comercial e negócio jurídico entre índios, não índios e poder público que prejudique o direito de posse permanente e usufruto exclusivo (art. 17, § 4º). Além disso, o plano diretor estabelece regras de gestão para o caso de sobreposição de unidades de conservação e terras indígenas, ao determinar que, nesses casos, serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a compatibilizar a presença das populações indígenas residentes com os objetivos da unidade, sem prejuízo dos modos de vida, das fontes de subsistência e os locais de moradia dessa população (art. 17, §5º).

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Há que se mencionar, ainda, as tentativas no âmbito federal de se combater a irregularidade fundiária, especificamente na região norte do país. Recentemente, após a aprovação do Plano Diretor de São Gabriel da Cachoeira, foi aprovada a Lei Federal nº 11.952/09, que visa promover a regularização fundiária de ocupações urbanas e rurais situadas em áreas da União na Amazônia Legal, o que pode eventualmente apoiar o Município na implementação dessa diretriz, haja vista a concentração de terras devolutas federais no território abrangido pela macrozona rural.

Determina, ainda, que os planos, políticas, projetos, obras ou programas realizados na macrozona de terras indígenas deverão ser precedidos de consulta prévia a esses povos, com procedimentos próprios e através de suas instituições representativas (art. 89)173.

Ao regular a macrozona das terras indígenas, o plano diretor busca esclarecer o papel do Município no que se refere às terras indígenas. Antecipa, assim, diversas das questões enfrentadas recentemente pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (STF, Pet. 3.388/RR, rel. Min. Carlos Britto, j. 19/03/2009). Por exemplo, a sobreposição de unidades de conservação e terras indígenas, bem como a aplicabilidade da Convenção 169 da OIT, que regula a consulta prévia.

O ordenamento territorial do município como um todo revela os desafios federativos existentes. O plano diretor busca uma convivência, o mais harmônica possível, entre diferentes atores sociais e institucionais, com respectivos interesses e formas de atuação no território. Tenta compatibilizar as competências material e legislativa da União Federal, Estado e Município de maneira concreta.

Estabelece, por exemplo, uma zona especial militar, cujo objetivo é regular a implantação de empreendimentos das forças armadas na sede do Município (art. 39). Ao mesmo tempo, reconhece que, nessas zonas, devem imperar regras especiais de uso e ocupação do solo, determina a realização de Estudo de Impacto de Vizinhança para implantação de novos empreendimentos (art. 39). É assim que o Município pode exercer suas competências constitucionalmente estabelecidas em regiões com grande presença militar.

Mas, além do ordenamento territorial, o plano diretor regula uma série de instrumentos urbanísticos. Ao invés de introduzir os instrumentos previstos como conteúdo mínimo (art. 42, Estatuto da Cidade), o plano diretor dá atenção especial àqueles vinculados à regularização fundiária, tais como a concessão especial para fins de moradia (art. 52), usucapião especial de imóvel urbano (art. 53), concessão de direito real de uso (art. 55), zona especial de interesse social (art. 56). Traz também diretrizes para a aplicação de outros instrumentos urbanísticos: o consórcio imobiliário (art. 48), o direito de preempção (art. 49), o direito de superfície (art. 50) e o estudo de impacto de vizinhança (art. 51).

173 Nos termos do disposto pelo art. 6º, item 1, alínea “a” da Convenção 169 da OIT, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 5.051/04.

Não há, pois, dispositivos relacionados ao parcelamento, edificação e utilização compulsórios (art. 42, inciso I, Estatuto da Cidade), à outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso (art. 28 e 29, Estatuto da Cidade), às operações urbanas (art. 32, Estatuto da Cidade) e à transferência do direito de construir (art. 35, Estatuto da Cidade).

No que se refere à necessidade de aprovação de lei municipal específica para a aplicação do instrumento, o plano diretor define a área, mas mantém a exigência para a execução do direito de preempção (art. 49, §2º, Estatuto da Cidade). No caso do estudo de impacto de vizinhança – EIV, o próprio plano diretor já define os empreendimentos aos quais será aplicado (art. 51, Estatuto da Cidade).

Por fim, o plano diretor regula um sistema descentralizado de planejamento e gestão territorial que articula, de um lado, a dimensão democrática das políticas públicas municipais e, de outro, a cooperação entre órgãos dos três níveis de governo – federal, estadual e municipal.

O plano diretor determina que a gestão do território seja democrática, garantindo-se a participação popular na formulação, implementação e avaliação das políticas públicas mediante diversos instrumentos, tais como: conselho municipal de desenvolvimento territorial, fundo municipal de desenvolvimento urbano, conferência municipal de desenvolvimento territorial, audiências públicas, assembléias territoriais174, consultas públicas, iniciativa popular de projetos de lei, acordos de convivência175, entre outros (art. 64). Esses instrumentos de gestão democrática