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O processo de elaboração do plano diretor

CAPÍTULO 3. PLANO DIRETOR E O MARCO JURÍDICO-URBANÍSTICO

3.2. O processo de elaboração do plano diretor

Conforme já mencionado no Capítulo 2, uma das principais críticas formuladas durante a Assembléia Nacional Constituinte aos planos diretores relaciona-se ao caráter tecnocrático, supostamente racional e neutro de um planejamento urbano baseado em concepções funcionalistas de cidade. Grosso modo, alegava-se que o regime militar buscou uma legitimidade na técnica porque a legitimidade popular havia sido suprimida.

De acordo com Marcos Nobre64, com a crise do Estado do bem-estar social, a democracia passa a ser reivindicada como princípio geral de legitimação. O surgimento de novos movimentos sociais coloca em xeque a pretensa neutralidade da atuação da burocracia estatal baseada puramente em decisões “técnicas”. É a partir da crítica social e de movimentos sociais que se consegue abrir novos espaços de participação e de deliberação dentro do próprio aparelho do Estado. O cidadão já não é mais visto como mero cliente do Estado ou como aquele que simplesmente dirige-lhe suas reivindicações. O cidadão passa a influenciar na lógica de decisão estatal. Ampliam-se os mecanismos de participação e deliberação nas diversas instâncias de decisão.

A natureza e a posição que podem ou devem ocupar esses mecanismos de participação e deliberação de cidadãos no Estado Democrático de Direito desempenham papel central no debate contemporâneo da teoria democrática65. A questão que se coloca é a relação teórica e prática que esses mecanismos de participação direta dos cidadãos estabelecem com o regime democrático representativo.

Segundo Leonardo Avritzer66, durante o século XX, o Brasil se transforma em um dos países com o maior número de práticas participativas. Com a democratização, surgem no país essas novas formas de participação popular. Pelo processo constituinte e sua posterior regulamentação, são criados mecanismos de participação com estrutura bastante diversificada em suas formas e desenhos. É o caso, por exemplo, do orçamento participativo e dos conselhos gestores de políticas públicas, tal como os conselhos de saúde, os conselhos de moradia, entre outros. É o caso também do processo de elaboração dos planos diretores, conforme o que se estabeleceu pelo art. 182 da Constituição Federal e sua posterior regulamentação pelo Estatuto da Cidade.

64 Cf. Marcos Nobre. “Participação e deliberação na teoria democrática: uma introdução”. In: Vera Schattan P. Coelho e Marcos Nobre (org.). Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 21-40.

65 De acordo com Marcos Nobre, podem ser apontados cinco modelos teóricos de democracia como pontos de referência do debate contemporâneo. São eles: (i) o modelo elitista de democracia (Schumpeter); (ii) modelo pluralista (Dahl), (iii) modelo “legal” (Hayek e Nozik), (iv) modelo participativo (Pateman; Poulantzas, Macpherson), (v) modelo democratas deliberativos (Bernard Manin e Habermas). Cf. Marcos Nobre. “Participação e deliberação na teoria democrática: uma introdução”. In: Vera Schattan P. Coelho e Marcos Nobre (org.).

Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo:

Editora 34, 2004, p. 21-40.

66 Cf. Leonardo Avritzer. Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático. Opinião Pública, Campinas, v. 14, n. 1, p. 43-64, jun. 2008.

Com efeito, de acordo com a legislação brasileira, o processo de elaboração e aprovação dos planos diretores deve incorporar o componente democrático em duas dimensões. A primeira diz respeito à própria exigência de aprovação do plano diretor por lei municipal (art. 182, § 1º, Constituição Federal c/c art. 40, Estatuto da Cidade), obrigatória, vale lembrar, aos Municípios com mais de 20 mil habitantes ou integrantes de regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas até o prazo de 30 de junho de 200867, sob pena de improbidade administrativa (art. 182, §1º, Constituição Federal c/c art. 50 c/c art. 52, inciso VI, Estatuto da Cidade).

A incorporação do componente democrático realiza-se também pela exigência de que a participação popular no processo de planejamento municipal, especialmente na elaboração dos planos diretores, seja condição obrigatória sob pena de improbidade administrativa (art. 29, inciso XII, Constituição Federal c/c art. 40, art. 43 e art. 52, inciso VI, Estatuto da Cidade).

Os novos mecanismos de participação dos cidadãos são, portanto, reconhecidos pela legislação urbanística brasileira. Determina-se a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal” (art. 29, inciso XII, Constituição Federal). A própria política urbana tem como diretriz geral a “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (art. 2º, inciso II, Estatuto da Cidade).

Com efeito, no processo de aprovação e elaboração do plano diretor, os Poderes Legislativo e Executivo garantirão:

I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos (art. 40, § 4º).

No processo de elaboração e aprovação dos planos diretores, portanto, articulam-se as regras do regime democrático representativo com novos espaços de participação e deliberação. Assim, incorpora-se o componente político ao planejamento territorial. Mais do que isso, a

67 O prazo para aprovação dos planos diretores era de cinco anos da entrada em vigor do Estatuto da Cidade (art. 50, Estatuto da Cidade). Tendo em vista que sua entrada em vigor concretizou-se três meses após sua promulgação (art. 58, Estatuto da Cidade), o prazo final para elaboração do plano diretor era outubro de 2006. O texto original, porém, foi alterado pela Lei Federal nº 11.673/08, que o prorrogou até 30 de junho de 2008 (art. 50, Estatuto da Cidade).

própria definição da função social da propriedade urbana fica condicionada a um processo político democrático.

Tais disposições realizam-se por meio de regras e procedimentos específicos. O desenho institucional da participação popular na elaboração dos planos diretores é detalhado pela Resolução nº 25 do Conselho Nacional das Cidades 68.

Convém esclarecer que o Conselho Nacional das Cidades é órgão consultivo e deliberativo, que integra o Ministério das Cidades e é composto por diversos representantes do poder público e da sociedade civil (art. 10 da MP 2.220/01 c/c art. 29, inciso III c/c art. 31, inciso X c/c art. 33, inciso VIII, da Lei Federal nº 10.683/03 com regulamentação posterior pelo Decreto 5.031/2004, posteriormente revogado pelo Decreto nº 5.790/2006).

Os integrantes do Conselho Nacional das Cidades são eleitos durante o processo de Conferência Nacional das Cidades (art. 19, Decreto nº 5.790/2006). Como exemplo, vale citar o processo da 1ª Conferência Nacional das Cidades (2003), que mobilizou cerca 320.000 pessoas no país, contando com a participação de mais de 3.000 Municípios69.

Tanto o Conselho Nacional das Cidades como a Conferência Nacional das Cidades compõem, juntamente com o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e o seu Conselho Gestor (Lei Federal nº 11.124/05), um complexo de instâncias de participação popular responsável pela garantia da gestão democrática da política urbana no âmbito federal.

O Conselho Nacional das Cidades, no regular exercício de suas competências, promulgou a Resolução nº 25, na qual se definem critérios nacionais mínimos para que se considere o processo de elaboração dos planos diretores efetivamente participativos70. O primeiro deles é a coordenação compartilhada entre poder público e sociedade civil em todas as etapas do processo (art. 3º, §1º, Resolução 25, Conselho Nacional das Cidades).

68 Disponível em: <http://www.cidades.gov.br>. Acesso em: 24 abr. 2010, 17h43min.

69 BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos. Plano diretor participativo. Raquel Rolnik (coord.). Brasília, 2005.

70 Cabe ao Conselho Nacional das Cidades emitir orientações e recomendações sobre a aplicação do Estatuto da Cidade (art. 10, inciso IV, MP 2.220/01). Embora suas resoluções tenham conteúdo facultativo, a Resolução nº 25 do Conselho Nacional das Cidades tem sido utilizada pela doutrina especializada e como fundamento de ações judiciais que questionam o processo de elaboração de planos diretores por ausência de participação popular. Como exemplo, vale citar o caso da revisão do plano diretor de São Paulo (Exemplos: Ação Civil Pública nº 05307116907-0; Medida Cautelar 05309022372-4; Ação Civil Pública 05308111161-0 propostas perante a vara de Fazenda Pública da Comarca de São Paulo). A ausência de participação popular tem sido fundamento de outras ações civis públicas. É o caso do plano diretor do Município de Salvador e do plano diretor do Município de Fortaleza (BRASIL. Ministério das Cidades. Banco de experiências. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br>. Acesso em: 24 abr. 2010, 17h43min).

Além da coordenação compartilhada, o processo de elaboração dos planos diretores deve respeitar a publicidade por meio de: (i) ampla comunicação em linguagem acessível nos meios de comunicação de massa; (ii) ciência do cronograma, locais de reunião, apresentação de estudos e propostas com antecedência mínima de 15 dias; (iii) publicação e divulgação dos resultados dos debates e propostas adotadas nas diversas etapas do processo (art. 4°, Resolução nº 25, Conselho Nacional das Cidades).

As audiências públicas realizadas durante o processo de elaboração dos planos diretores devem também seguir critérios específicos de realização, divulgação dos editais, etapas e sistematização, nos termos do estabelecido pelo art. 8º.

O processo participativo deve levar em conta a diversidade, por meio da realização de debates por segmentos sociais, por temas e por divisões territoriais (art. 5º, Resolução nº 25, Conselho Nacional das Cidades).

A Resolução nº 25 do Conselho Nacional das Cidades exige ainda que os processos de elaboração dos planos diretores estejam articulados com a gestão democrática das cidades como um todo e que sejam consideradas as proposições oriundas dos processos participativos de discussão do orçamento, das conferências, fóruns e demais conselhos de políticas públicas (art. 6º).

Tais regras do processo participativo na elaboração dos Planos Diretores foram editadas com a expectativa de superar a visão tecnocrática do planejamento urbano, tradicionalmente caracterizado pela baixa legitimidade social e política, objeto de diálogo restrito a determinados setores e interesses da área imobiliária urbana71.

A reorientação democrática do planejamento seria, então, capaz de criar um espaço de debate democrático e, ao mesmo tempo, revelar a cidade real, tornando os conflitos visíveis, dando voz aos que nunca tiveram e fazendo emergir os diferentes interesses sociais72. A finalidade principal do processo participativo é a criação de uma esfera pública, que forme o cidadão para o debate público. Porém, não há garantia que a democratização das relações sociais vá ocorrer necessariamente. A proposta precisa ser operacionalizada, e isso implica ação e enfrentamento dos conflitos73.

71 BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos. Planejamento territorial urbano e política fundiária. Cadernos Ministério das Cidades, Brasília, v. 3, p. 15, 2004.

72 Cf. Ermínia Maricato. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, p. 71. 73 Idem, ibidem, p. 74.

Se, de um lado, o componente democrático passa a desempenhar um papel central na elaboração dos planos diretores, revelando os conflitos e interesses presentes na cidade, de outro, o conteúdo do plano diretor deve apontar para as soluções, conferindo força normativa às aspirações dos habitantes da cidade.

Tais soluções e respectivas dificuldades de operacionalização serão percebidas a partir da análise da realidade concreta, especialmente por meio do conteúdo dos planos diretores que compõem o presente estudo de caso.

Não obstante, o marco jurídico-urbanístico já aponta para a necessidade de garantir soluções eficazes aos conflitos jurídico-urbanísticos revelados pelo processo de participação popular. É o que se percebe a partir da análise das normas gerais relativas ao conteúdo do plano diretor.