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O contexto histórico-cultural do município: desafios para elaboração do plano diretor

CAPÍTULO 5. O PLANO DIRETOR DE SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM)

5.1. O contexto histórico-cultural do município: desafios para elaboração do plano diretor

O Município de São Gabriel da Cachoeira (AM) localiza-se na fronteira do Brasil com a Colômbia e Venezuela, e possui a extensão de 109.185,00 km2 (cento e nove mil, cento e oitenta e cinco quilômetros quadrados), constituindo-se em um dos maiores municípios do país 127.

O acesso ao Município está restrito às vias fluvial e aérea. A BR 307, que ligava a sede do Município ao Distrito de Cucuí, encontra-se hoje desativada, tendo em vista suas condições precárias. No que diz respeito ao acesso fluvial, São Gabriel da Cachoeira localiza-se em área de densa rede hidrográfica, representada principalmente pelo Rio Negro, um rio navegável internacionalmente, que liga o Município à Venezuela, Colômbia e Manaus.

A grande extensão territorial do município, o acesso restrito e sua localização em área de fronteira já representam, em si, um enorme desafio para a elaboração do plano diretor.

Ademais, o município possui uma enorme diversidade étnico-cultural. Sua população é indígena em sua maioria e composta por mais de 20 etnias distintas, tais como Tukano, Desana , Tariana, Tuyuca, Wanana, Kubeo, Pira-Tapuya, Miriti Tapuya, Arapaso, Karapanã, Makuna, Siriano, Baniwa, Kuripako Baré, Werekena Hup, Yuhupda, Dow Nadöb, Yanomami.

127 O Município de São Gabriel da Cachoeira é maior que muitos Estados brasileiros. A título de exemplo, vale conferir a extensão do Estado de Alagoas (27.767,66 km2), do Espírito Santo (46.077,52 km2), da Paraíba (56.439,84 km2), de Pernambuco (98.311,62 km2), do Rio de Janeiro (43.696,05 km2), do Rio Grande do Norte (52.796,79 km2), de Santa Catarina (95.346,18 km2) e do Sergipe (21.910,52 km2). (Cf. Kazuo Nakano; Francisco de Assis Comaru. “São Gabriel da Cachoeira: o planejamento e a gestão territorial em um município indígena da Amazônia”. In: Renato Cymbalista e Paula Santoro (org.). Planos diretores: processos e aprendizados. São Paulo: Instituto Polis, 2009, p. 113-129).

As etnias presentes nessa região falam atualmente cerca de 20 línguas oriundas de quatro grandes famílias linguísticas – Tukano, Aruak, Maku e Yanomami. Além dessas línguas, muitos indígenas falam ainda o português e o espanhol. Note-se que a legislação municipal reconheceu como oficiais 3 (três) dessas línguas: Nheengatu, Tukano e Baniwa (Lei municipal nº 145/02).

Essa ampla complexidade cultural do Município de São Gabriel da Cachoeira se expressa não só pela diversidade linguística. Cada um dos povos indígenas presentes na região compartilha concepções mitológicas, práticas rituais, atividades econômicas e arquitetura128. A diversidade étnico-linguística, inclusive, se traduz em regras particulares de casamento, conforme apontado por diversos estudos antropológicos 129.

A diversidade indígena da região já foi reconhecida pelo Estado brasileiro. Durante a década de 90, foram demarcadas 5 (cinco) terras tradicionalmente ocupadas por índios na região, nas quais residem aproximadamente 554 comunidades indígenas, totalizando uma extensão de 106 mil km², e que representam 80 % do território municipal130.

O Município de São Gabriel da Cachoeira é, definitivamente, um município indígena. Porém, à questão indígena alia-se a importância geopolítica da região, seja do ponto de vista dos recursos ambientais disponíveis, seja por sua localização em região de fronteira.

128A diversidade étnica e cultural dos grupos da região do Rio Uaupés possui explicação mitológica. A origem dos grupos e de seus territórios primordiais tem como evento fundamental “a viagem da grande cobra canoa”. Cada um dos grupos emerge do corpo da cobra e recebe uma língua e uma parafernália ritual próprias, um complexo de bens simbólicos como nomes, mitos, rezas xamânicas, músicas e o direito de fabricar determinado item da cultura. Sobre a divisão e hierarquia dos grupos em sibs e fatrias, cf. a literatura antropológica especializada (Cf. Cristiane Lamar. De volta ao Lago do Leite: gênero e transformação no alto Rio Negro. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2005; Geraldo Andrello. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006).

129 Os povos indígenas da região constituem-se como grupos de descendência patrilineares, os quais são determinados pela regra da exogamia linguística. Grosso modo, o homem deve se casar com uma mulher que fale língua distinta da sua. A diversidade linguística não é exatamente um problema, já que as crianças aprendem a falar mais de uma língua durante a infância. A própria convivência familiar já é em si uma experiência multilinguística. (Cf. Cristiane Lamar. De volta ao Lago do Leite: gênero e transformação no alto Rio Negro. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2005, p. 53-55).

130 Durante a década de 90, foram demarcadas as terras indígenas Alto Rio Negro, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II, Rio Apapóris e Rio Téa (Cf. Aloísio Cabalzar e Carlos Alberto Ricardo. Povos indígenas do alto e médio

Rio Negro: uma introdução à diversidade cultural e ambiental do noroeste da Amazônia brasileira. São Paulo:

Instituto Socioambiental; São Gabriel da Cachoeira: FOIRN - Federação das Organizações indígenas do Rio Negro, 1998). O Município de São Gabriel da Cachoeira tem parte de seu território localizado também na terra indígena Yanomami, que se estende pelo Estado de Roraima. Na época de elaboração do plano diretor, estavam ainda em processo de demarcação as terras indígenas Marabitana Cue-Cué e Balaio. Esta última foi homologada recentemente pelo Decreto Presidencial, de 21 de dezembro de 2009.

O município é integrante da Amazônia Legal (Lei federal complementar nº 124/07) e possui duas unidades de conservação em seu território: o Parque Nacional Pico da Neblina (Decreto nº 83.550/79) e a Reserva Biológica Estadual Seis Lagos (Decreto nº 12.836/90).

A região que compõe a bacia hidrográfica do rio Negro configura-se como território estratégico do ponto de vista geopolítico desde a colonização do Brasil, incluindo-se entre as áreas objeto de disputa das fronteiras entre Portugal e Espanha até o final do século XVIII131.

São Gabriel da Cachoeira surge como povoado destinado a funcionar como base da ação missionária de jesuítas, franciscanos e da ordem carmelita, que pretendiam promover a catequese dos índios. Foi implantado um forte militar em 1759 cujo objetivo era preservar a região das invasões estrangeiras e promover sua ocupação 132.

É durante o regime militar, especialmente a partir da década de 70, com o declínio da influência dos salesianos 133, que a região passa a ser vista sob a perspectiva da “segurança nacional”. O Município é considerado como de interesse da segurança nacional (art. 1º, inciso I, da Lei Federal nº 5.449/68) e, então, é implementado o Programa de Integração Nacional (1970) – cujo objetivo, entre outros, era a construção da BR 307, que o ligaria aos povoados de Cucuí, e da BR 210, referente a um dos trechos da Perimetral Norte.

Mais tarde, São Gabriel da Cachoeira é também objeto do Projeto Calha Norte (1985), que tinha como objetivo específico concentrar esforços de vários órgãos governamentais em uma política de ocupação do território nacional ao norte das calhas dos rios Amazonas e Solimões. A zona prioritária para o início da implantação do projeto era a faixa de fronteira, onde se previa a instalação de várias unidades do Exército.

A militarização das fronteiras acelera o processo de urbanização de São Gabriel da Cachoeira. A cidade passa a funcionar como pólo de atração de trabalhadores de outras partes do país e de um grande número de famílias indígenas 134.

131 Sobre a colonização do rio Negro em geral e os acontecimentos históricos relacionados aos antepassados de escravidão indígena, surtos de sarampo e varíolas, a política de aldeamentos, a criação da Capitania do Rio Negro, até o ciclo econômico da borracha, cf. Geraldo Andrello. Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauaretê. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2006, p. 71-106.

132 Cf. Cristiane Lamar. De volta ao Lago do Leite: gênero e transformação no alto Rio Negro. São Paulo: Editora UNESP:ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2005, p. 155-156.

133

Os salesianos foram responsáveis pela instalação dos internatos na região do rio Negro no início do século XX. As crianças indígenas eram separadas de suas famílias para fins educacionais sob o pretexto “civilizatório”. Relata- se que, nos internatos, os índios eram proibidos de falar suas línguas, e as práticas xamânicas e festas de caxiri eram duramente combatidas (Cf. Cristiane Lamar. De volta ao Lago do Leite: gênero e transformação no Alto Rio Negro. São Paulo: Editora UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NUTI, 2005, p. 155-156).

É inegável a existência os enormes desafios, na elaboração de plano diretor de um Município de gigantescas proporções, dotado de complexa diversidade étnico-cultural e localizado em região estratégica do ponto de vista geopolítico.