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O caráter vinculante do plano diretor

CAPÍTULO 3. PLANO DIRETOR E O MARCO JURÍDICO-URBANÍSTICO

3.1. O caráter vinculante do plano diretor

só a coleta de dados empíricos, mas a própria generalização analítica dos resultados.

3.1. O caráter vinculante do plano diretor

Traçar um perfil jurídico do plano diretor implica refletir, necessariamente, sobre a natureza jurídica de suas prescrições.

A Constituição Federal – ao determinar que ao plano diretor cabe definir a função social da propriedade urbana – confere ao planejamento territorial uma natureza jurídica distinta do planejamento econômico.

Foi na Constituição brasileira de 1934 – fortemente influenciada pela Constituição de Weimar de 1919 e pela Constituição mexicana de 1917 – que se inseriu um capítulo específico no texto constitucional destinado à regulamentação do papel do Estado na ordem econômica e social 46.

A inserção dessas normas nos textos constitucionais durante o século XX tem origem na transição do Estado liberal para Estado social. Com efeito, a mudança do papel do Estado – inserida no contexto de disputas entre os modelos econômicos capitalista e socialista – trouxe consequências aos ordenamentos jurídicos.

De um lado, o Estado liberal, inspirado nas idéias do liberalismo clássico, com papel reduzido no domínio econômico e destinado, basicamente, a proteger os indivíduos do próprio Estado, com o objetivo de garantir os direitos individuais. De outro, o Estado Social, que nasce com a tarefa de concretizar direitos sociais, razão pela qual assume uma intervenção maior na economia, com um papel de condutor do desenvolvimento, destinado a corrigir certas distorções do mercado.

No Brasil, o texto constitucional de 1988 adota como regime a economia de mercado, o modo capitalista de produção. A livre iniciativa é considerada um princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, Constituição Federal), bem como fundamento da ordem econômica (art. 170, caput, Constituição Federal). Ao lado da livre concorrência (art. 170, inciso

46 Cf. Gilberto Bercovici. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2005, p. 11-17.

IV, Constituição Federal), o princípio da livre iniciativa consagra um dos pilares do Estado liberal: a liberdade de mercado. Neste sentido, estabelece o parágrafo único do art. 170 que o exercício de qualquer atividade econômica é independente da autorização dos órgãos públicos.

Como consequência imediata do princípio da livre iniciativa privada, tem-se que resta ao Estado brasileiro uma atuação restrita na ordem econômica; ou seja, um papel subsidiário na exploração de atividade econômica, limitando-se sua atuação em hipóteses excepcionais, a saber, em casos de imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo (art. 173, caput, Constituição Federal).

Paralelamente, o Estado surge como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento (art. 174, Constituição Federal). A função planejadora do Estado, entretanto, é regulamentada considerando também um novo papel estatal na implementação de políticas públicas47.

Assim, além de regular o papel do Estado na ordem econômica, o texto constitucional aponta para uma necessária transformação social, que se dá tanto ao longo do tempo como no espaço48. As ações de planejamento estão, pois, sempre voltadas para o futuro49.

São próximas, portanto, as relações estabelecidas entre o planejamento econômico e o planejamento territorial. De acordo com Eros Roberto Grau50, o planejamento econômico pode ser considerado como “uma forma de ação racional caracterizada pela previsão de comportamentos econômicos, sociais e futuros, pela formulação explícita de objetivos e pela definição de meios de ação coordenadamente dispostos”. Trata-se, portanto, de planejamento das ações do Estado ao longo do tempo. O planejamento territorial, por sua vez, constitui-se enquanto planejamento das ações do Estado no espaço físico-geográfico com vistas ao ordenamento territorial51.

47 Cf. Fábio Konder Comparato. “A organização constitucional da função planejadora”. In: Ricardo Antônio Lucas Camargo (org.). Desenvolvimento econômico e intervenção do Estado na ordem constitucional: estudos jurídicos em homenagem ao prof. Wahsington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 77-94.

48 Cf. André de Laubedere. Direito público econômico. Coimbra: Almedina, 1985, p. 310; Gilberto Bercovici.

Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros

Editores Ltda, 2005, p. 31. 49

Cf. Gilberto Bercovici. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2005, p. 70.

50 Cf. Eros Roberto Grau. A ordem econômica na Constituição de 1988. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2004, p. 309.

51 Sobre as estreitas relações entre planejamento no tempo e planejamento no espaço, cf. André de Laubedére.

A distinção entre planejamento no tempo e espaço gera consequências jurídicas importantes. Com efeito, apesar das relações existentes entre as duas formas de planejamento estatal, ambas possuem regimes jurídicos bastante diferenciados52.

A complexidade e os desafios da definição da natureza jurídica do planejamento econômico já têm sido objeto de debate na doutrina jurídica nacional e internacional. Em sua tese de livre docência, Eros Grau53 elenca as diversas posições da doutrina jurídica sobre a relação entre planejamento, plano e direito. As principais dificuldades na definição da natureza jurídica do planejamento econômico dizem respeito ao valor jurídico do plano. Este, como instrumento utilizado em economias de mercado, deve necessariamente conciliar certa flexibilidade de um plano econômico com a rigidez de uma lei. Sendo dotado de caráter programático, surge uma série de questões sobre os limites do seu caráter vinculante em relação aos particulares e ao poder público.

A Constituição Federal, porém, define com clarezaa natureza do planejamento econômico a ser exercido pelo Estado. O planejamento econômico é determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (art. 174, Constituição Federal).

Trata-se, na verdade, de consequência lógica do principio da livre iniciativa. É o empresário quem deve definir o que e quanto produzir, bem como por qual preço vender. Isso significa que, para atrair o setor privado ao processo de planejamento, o Estado deve utilizar mecanismos indiretos54. O caráter indicativo do planejamento econômico nasce em contraposição ao caráter vinculante do planejamento econômico típico de países socialistas.

Neste sentido, “[...] o Estado não pode impor aos particulares nem mesmo o atendimento às diretrizes ou intenções pretendidas, mas apenas incentivar, atrair os particulares, mediante planejamento indicativo que se apresenta como sedutor da iniciativa privada” 55. O planejamento indicativo se realiza, pois, por meio de ações de fomento, de concessões de benefícios e estímulos aos particulares56.

52 Cf. André de Laubedére. Direito público econômico. Coimbra: Livraria Almedina, 1985, p. 315.

53 Cf. Eros Roberto Grau. Planejamento econômico e regra jurídica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1978, p. 9-77.

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Cf. José Afonso da Silva. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006, p. 91.

55 Cf. Celso Antônio Bandeira de Melo. Curso de direito administrativo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 642.

56 Cf. José Afonso da Silva. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006, p. 92.

Diferente, porém, é o tratamento conferido ao planejamento territorial municipal. Tendo como seu principal instrumento o plano diretor, o planejamento das ações no espaço adquire natureza jurídica peculiar57. As prescrições obrigatórias encontram maiores possibilidades em matéria de ordenamento territorial. No lugar da natureza indicativa, as diretrizes e ações previstas no planejamento territorial assumem caráter imperativo. Embora próximas, possuem regimes jurídicos distintos58.

No âmbito federal, a Constituição já prevê como instrumentos jurídicos distintos os planos nacionais e regionais de ordenamento do território e os planos nacionais e regionais de desenvolvimento econômico e social (art. 21, inciso IX, Constituição Federal).

No caso específico do planejamento territorial municipal, há que se considerar a competência específica do Município em promover o adequado ordenamento territorial mediante o planejamento e controle do uso, ocupação e parcelamento do solo urbano (art. 30, inciso VIII, Constituição Federal). Esse planejamento do espaço é função preponderante municipal e tem como instrumento básico o plano diretor.

As normas relativas ao plano diretor, trazidas pelo marco jurídico-urbanístico no Brasil, evidenciam a natureza jurídica do planejamento territorial municipal. Em primeiro lugar, como já dito, o plano diretor passa a ser considerado obrigatório aos Municípios com mais de 20 mil habitantes. Ademais, trata-se de instrumento de planejamento que deve ser, necessariamente, aprovado por lei (art. 182, §1º, Constituição Federal). A rigor, a ausência de plano diretor pode, inclusive, ser causa de aplicação das penas previstas pela Lei de Improbidade Administrativa (art. 52, inciso VII c/c art. 50, Estatuto da Cidade).

Mais do que isso: é o plano diretor que estabelece o conteúdo concreto da função social da propriedade urbana (art. 182, § 2º). Trata-se de forma de planejamento que não pode ser considerada como intervenção no domínio econômico propriamente dito, mas no domínio restrito do direito de propriedade, a respeito do qual a ordem constitucional permite a interferência imperativa do Poder Público por meio da atuação da atividade urbanística59. Com efeito, ao planejar o território do Município para os dez anos seguintes (art. 40, § 3º, Estatuto da Cidade), o

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Vale notar, que o planejamento territorial municipal pode-se desenvolver, também, por meio de outros instrumentos, tais como as leis de uso, ocupação e parcelamento do solo, zoneamento econômico-ecológico, Agenda 21, planos de gerenciamento costeiro, entre outros.

58 Cf. André de Laubedére. Direito público econômico. Coimbra: Livraria Almedina, 1985, p. 314-315.

59 Cf. José Afonso da Silva. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006, p. 93.

plano diretor define o conteúdo do direito de propriedade urbana e, consequentemente, assume caráter obrigatório tanto para o setor público como para o setor privado. Trata-se de verdadeira exceção ao art. 174 promovida pelo próprio texto constitucional.

Pode-se concluir, portanto, que as disposições do plano diretor são totalmente determinantes também aos proprietários privados, que a ele estão obrigados a ajustar o seu comportamento60. É certo que a lei do plano é eficaz nos limites de suas determinações, importando em efeitos vinculantes para os órgãos públicos e para os particulares, que ficam sujeitos às suas normas61.

Não se pode negar, porém, as consequências para a livre iniciativa, principalmente no que se refere a uma atividade econômica específica: a atividade empresarial imobiliária. As determinações do plano diretor incidem nos aspectos econômicos dos empreendimentos imobiliários, ao regular direta e indiretamente o preço da terra e imóveis urbanos. Isto ocorre em diversas situações, como: (i) ao definir as zonas de expansão urbana; (ii) ao alterar o uso do solo rural para o urbano; (iii) ao estabelecer a possibilidade de novos loteamentos na cidade; (iv) ao definir parâmetros de uso e ocupação, bem como os potenciais construtivos dos terrenos; (v) ao alterar os usos permitidos (por exemplo, de residencial para o comercial, de estritamente residencial para o uso misto); (vi) ao estabelecer incentivos à ocupação de determinadas áreas e (vii) ao definir as formas de parcelamento do solo62. O plano diretor interfere no mercado imobiliário até mesmo quando combate a especulação imobiliária, nos termos do art. 182 § 4º da Constituição Federal, ao induzir a ocupação de imóveis e terrenos vazios.

Trata-se de limite constitucional à livre iniciativa, mas não à propriedade privada propriamente. A função social não pode ser confundida com limitação do direito de propriedade. Como se sabe, as limitações administrativas dizem respeito ao exercício do direito pelo proprietário. De maneira distinta, a função social interfere na estrutura do direito mesmo63.

60 Neste sentido, cf. Carlos Ari Sundfeld. “O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais”. In: Adilson Dallari e Sérgio Ferraz (coord.). O Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001, São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2002, p. 50.

61 Cf. José Afonso da Silva. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006, p. 147.

62 Cf. Mariana Levy Piza Fontes, Paula Santoro e Renato Cymbalista. “Estatuto da Cidade: uma leitura sob a perspectiva da recuperação da valorização fundiária”. In: Laura Bueno e Renato Cymbalista (orgs.). O município

em ação: elaboração e aplicabilidade de planos diretores. São Paulo: Anna Blume, 2007, p. 67.

63 Cf. José Afonso da Silva. Direito urbanístico brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2006, p. 75.

Com efeito, o próprio texto constitucional condiciona a livre iniciativa a determinados fins públicos, a certos valores constitucionais, sendo também considerados fundamentos da República, entre outros, a cidadania (art. 1º, inciso II, Constituição Federal), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, Constituição Federal), o valor social do trabalho (art. 1º, inciso IV, Constituição Federal).

Outrossim, além da livre iniciativa, a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e tem como finalidade assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, caput, Constituição Federal).

Outros são também os princípios da ordem econômica que acabam por condicionar a livre iniciativa. É o caso da função social da propriedade (art. 170, inciso III, Constituição Federal); da proteção ao consumidor (art. 170, inciso V, Constituição Federal); da livre concorrência (art. 170, inciso IV, Constituição Federal); da defesa do meio ambiente (art. 170, inciso VI, Constituição Federal) e da superação das desigualdades regionais e sociais (art. 170, inciso VII, Constituição Federal).

Esse caráter vinculante do plano diretor – baseado na diferença fundamental entre planejamento econômico e planejamento territorial – amplia a possibilidade de se conferir força normativa a suas determinações e, sobretudo, avançar na concretização da função social da propriedade urbana, no desenvolvimento das funções sociais da cidade e na garantia do bem-estar de seus habitantes.