• Nenhum resultado encontrado

As três histórias ou estágios da Natureza e a contribuição dos saberes não

Capítulo 1 Em torno do conceito baconiano de Natureza

1.4 As três histórias ou estágios da Natureza e a contribuição dos saberes não

Segundo o Barão de Verulam, o processo de interpretação e conhecimento da natureza passa pela História da mesma. Essa história está dividida. Explica o filósofo que, “La historia de la naturaleza es de tres clases: de la naturaleza en su curso normal, de la naturaleza en sus errores o variaciones y de la naturaleza alterada o trabajada; esto es, historia de las creaturas, historia de las maravillas e historia de las artes.” (BACON, 1988, p. 82). Conforme o Barão, deveria se estudar, sobretudo, a natureza em seus extravios e a natureza trabalhada ou mecânica. Declara ele, “es verdad que hallo numerosos libros de experimentos y secretos fabulosos, y frívolas imposturas para agradar y llamar la atención; pero una colección sustanciosa y rigurosa de los heteróclitos o irregularidades de la naturaleza, bien examinadas

y descritas, eso no lo encuentro”. (BACON, 1988, p. 82). Por isso a necessidade da Restauração.

Somente ampliando o conhecimento sobre a natureza tornar-se-ia possível descobrir e extrair dela prodígios – alcançar a ajuda de Proteu. Principalmente, focando na história da natureza em seus extravios e da natureza trabalhada. Ao defender estudos mais profundos da história da natureza em seus extravios, o Lord aponta duas razões.

Una, la de corregir la parcialidad de los axiomas y opiniones, que por lo regular se fundan únicamente en ejemplos comunes y familiares; otra, porque partiendo de los prodigios de la naturaleza es como mejor se descubren los prodigios del arte y se accede a ellos; pues es siguiendo y, por así decirlo, acosando a la naturaleza en sus extravíos, como después se la puede reconducir al mismo sitio. Ni soy de la opinión de que de esta historia de las maravillas se deban excluir de plano las narraciones

supersticiosas de hechizos, brujerías, sueños, adivinaciones y cosas semejantes, allí donde hay seguridad y demonstración clara de los hechos.

(BACON, 1988, p. 83). Destaque meu.

Com base nesta citação, destacaremos dois aspectos. Um, provavelmente, abriu margem para que leituras e interpretações suspensas da filosofia boconiana, como, por exemplo, às interpretações de Merchant, se propagassem. Trata-se do trecho aonde Bacon afirma que é preciso acossar a natureza. Somente empreendendo “violência”, “atando as mão e acorrentando o corpo” se poderá atingir os prodígios de Proteu. O posicionamento baconiano de que apenas acossando a natureza as artes mecânicas poderiam criar uma espécie de segunda natureza, provocou e continua alimentando – especialmente nas discussões acerca do meio ambiente – duras críticas ao filósofo. Acossar a natureza, de acordo com a filosofia de Bacon, não é, por exemplo, empreender danos ou explorá-la tendo em vista interesses econômicos, enriquecimento de grupos ou fortalecimento do consumo. Acossar a natureza aponta para a necessidade do método experimental. Sinaliza para o trabalho de laboratório. Nesse sentido, escreve Oliveira, “para Bacon, a melhor maneira de se investigar a natureza é submeter a matéria e seus corpos à maior pressão possível de forma a obrigá-la a revelar seus limites”. (OLIVEIRA, 2002, p. 136). Não que a natureza seja escrava, domável, desprovida de valor ou meramente fonte inesgotável de riquezas. Para Bacon, a natureza é o modelo. É pesquisando os eventos que nela ocorrem e procurando imitá-la que as artes poderão alcançá- la. Além disso, os benefícios extraídos mediante a técnica e a ciência devem ser disponibilizados em favor da humanidade.

O outro aspecto diz respeito à consideração por parte de Bacon de elementos que não são do campo da ciência. Embora o filósofo criticasse duramente a magia e o conhecimento secreto, contudo faz uma ressalva: “Ni soy de la opinión de que de esta historia de las maravillas se deban excluir de plano las narraciones supersticiosas de hechizos, brujerías, sueños, adivinaciones y cosas semejantes”. O problema girava em torno da falta de demonstração e de publicidade nos procedimentos mágicos. Na versão em português, completando essa citação que acabamos de elencar, afirma o inglês: “onde haja segurança e demonstração clara dos fatos”. (BACON, 2007, p. 115). Tal postura permite-nos perceber que o pensamento acerca da ciência moderna, nesse caso específico o pensamento baconiano, não é um pensamento que admite apenas o discurso científico como o único válido e portador da verdade. As experiências individuais devem ser levadas em conta e as diversas esferas do saber precisam dialogar. Assenta o inglês:

hemos abandonado demasiado a destiempo y nos hemos alejado excesivamente de los particulares. (...) es deber y virtud de todo conocimiento el condensar la infinidad de experiencias individuales hasta donde lo permita la idea de la verdad, (...) lo cual se logra uniendo las ideas y concepciones de las ciencias. (BACON, 1988, p. 107).

As diversas concepções de ciências, ou seja, as várias áreas do conhecimento precisam considerar a infinidade de experiências individuais e não acadêmicas. Ao apontar uma das deficiências da história da natureza mecânica, pondera o Bacon: “en cuanto a la historia de la naturaleza trabajada o mecánica, encuentro algunas recopilaciones de agricultura, y asimismo de artes manuales, pero generalmente con desprecio de los experimentos familiares y vulgares”. (BACON, 1988, p. 83). Nessa perspectiva, cabe o posicionamento de Dussán26

quando admite que os homens comuns não foram deixados de lado pela filosofia e concepção de ciência baconianas. Levando em consideração a citação de Bacon assentada acima, podemos indagar: não há ali uma fresta para que pensemos, por exemplo, a importância dos chamados conhecimentos tradicionais, saberes populares e do senso comum na relação com a natureza? Segundo o filósofo, não há dúvida de que os experimentos familiares, os conhecimentos vulgares podem muito contribuir com a ciência e com o conhecimento da natureza. O cuidado, porém, deve ser com o uso da linguagem que expresse esses saberes.

26 Acerca da reforma do conhecimento concebida por Bacon, Dussán (2009, p. 102) apresenta uma citação do

filósofo que é a seguinte. “Desnudémonos, vosotros y yo, de nuestra condición de varones doctos, si algo de eso somos; hagámonos como unos del pueblo y, dejando a un lado las cosas mismas, admitamos conjeturas a partir de signos externos, pues al menos esto tenemos en común con los hombres”. (Bacon, 1985, p. 79). Completa Dussán na mesma referência mencionada acima, que “El punto de partida es despojarse de la investidura de docto, esto es, dejar de lado los discursos típicos de los doctos, dejar por un momento la academia y sus argumentaciones y situarse del lado del común de los hombres”.

Provavelmente, esta seria uma das principais tarefas e contribuições da ciência. Reunir os saberes individuais, familiares e vulgares, e comunicá-los por meio de uma linguagem não ambígua. Vejamos o que declara o Lord nesse sentido.

paréceme que la verdadera y fructífera utilidad (dejando a un lado sutilezas y especulaciones vanas) de la investigación de la mayoría, la minoría, la prioridad, la posterioridad, la identidad, la diversidad, la posibilidad, el acto, la totalidad, las partes, la existencia, la privación, etcétera, está en surtirse de prudentes cautelas contra las ambigüedades de la expresión verbal. (BACON, 1988, p. 139).

Através do fragmento sublinhado, Bacon mostra que a relevância e verdadeira frutificação da investigação científica consistem não só em apresentar um conhecimento geral, universal, mas em considerar as partes, o mínimo, a existência – enquanto vida cotidiana e as experiências também dos homens comuns – a diversidade, a totalidade, etc.. Tudo isso pode ser passível de conhecimento. Lembrando que os resultados da ciência têm como finalidade melhorar as condições de vida da humanidade e, para tanto, precisam ser comunicados, visíveis, acessíveis e expressos mediante uma linguagem clara.

Concluindo essa análise acerca das três histórias ou estágios da natureza, Oliveira nos situa a respeito da concepção baconiana de natureza. Segundo Oliveira, “a natureza concebida pelos antigos inclui a raça humana. Para Bacon, no entanto, ela é mais delimitada uma vez que não inclui os humanos. No entanto, por outro lado, ela é estendida recobrindo tudo o que é transformado pelo homem (plasticidade)”. (OLIVEIRA, 2002, pp. 135-136). Eis uma concepção de natureza que desliga o homem daquela. Larrère reconhece e a admite esse feito como uma marca da modernidade. No caso da filosofia de Bacon, tem-se uma natureza que é distinta do homem, mas ecoa a advertência que é preciso obedecê-la. Conforme Oliveira, para Bacon a natureza existe em três estágios27: livre, errática e atada (artificialmente transformada). Na sua argumentação, a natureza

é livre (ou espontânea) quando segue seu curso comum, regular como o movimento das estrelas ou a reprodução dos animais e geração de plantas, com a variedade geral que há destas regularidades no universo. Ela é considerada como errática quando, perversamente, por insolência, ou por violência sobre ela imposta, abandona seu curso normal. Este é o caso das deformidades e anomalias, (...) No terceiro estágio, ela se apresenta constrangida. Moldada e feita como se fosse nova pela arte e mãos dos homens, como nas coisas artificiais. (OLIVEIRA, 2002, p. 136).

27 Segundo Oliveira, esses três modos não são categorias estritas... Essas três naturezas se interpenetram e

A análise de Oliveira, não só explica os três estágios nos quais a natureza se manifesta ou é reinventada, como também incorpora o tema das artes, sendo estas entendidas como o fazer humano. As artes, aliás, que conforme o aforismo (I: 129), ao lado das ciências, constituem o segundo fundamento do poder do homem sobre a natureza. Ainda sobre os três estágios da natureza, afirma Oliveira, “a natureza a ser comandada é a natureza em seu curso ordinário, a dos fenômenos e efeitos perceptíveis. Tal comando só é verdadeiramente possível através da obediência à natureza atada, isto é, através da descoberta e respeito das leis e causas escondidas” (OLIVEIRA, 2002, pp. 137-138). Não obstante, o próprio Bacon chama a atenção: estudar a natureza em seus extravios – ou nos termos de Oliveira – a natureza errática seria muito importante para se atingir o progresso, alcançar resultados capazes de tornar a vida do homem confortável e propiciar-lhe inclusive longevidade. Na Nova Atlântida, por exemplo, há uma série de fatores e resultados trabalhados pela Casa de Salomão que atestam conforto e longevidade aos moradores de Bensalém. Excelente medicina, elevado nível de educação, alimentação saudável, aparelhos que melhoravam a capacidade auditiva para quem possuía deficiência, enfim.

Nesse primeiro capítulo, portanto, procuramos discutir o conceito baconiano de natureza. É possível afirmar que não encontramos uma definição precisa do que seria a natureza para Bacon. O inglês apresenta acepções que, ora parecem está na esteira da teologia cristã, ora parecem está na esteira do atomismo antigo. A natureza, por um lado, pode ser considerada como o livro das obras de Deus. Tal definição foi trabalhada, por exemplo, por Paolo Rossi no terceiro capítulo de A filosofia dos modernos, o texto intitulado: Bacon e a

Bíblia. Como livro, a natureza é passível de interpretação e conhecimento. O homem é seu

intérprete e ministro (I: 1). Possui a liberdade de poder indagá-la, conhecê-la. Mas também a advertência de obedecê-la e sujeitar-se às suas leis. O homem tem um poder de ação sobre a natureza. Porém, “a possibilidade de mexer em suas fundações não significa que não haja leis a serem respeitadas: para se controlar a natureza, adverte Bacon, tem-se antes que obedecê-la” (OLIVEIRA, 2002, p. 137). Mostramos que na perspectiva teológico-cristã, o homem ocupa uma posição de centro, portanto, de comando. Provavelmente, a ideia baconina de dominar a natureza seja um eco dessa perspectiva.

Por outro, tomando como base os mitos de Pã, Celo e Proteu, todos presentes em A

sabedoria dos antigos, encontramos a natureza como sendo a universalidade das coisas, a

totalidade da matéria, a variação de formas e seres. A natureza é apresentada como reacionária. Sob esta perspectiva, os átomos são o fundamento da natureza. A emanação deles

origina tudo que há nela, e neles próprios há uma resistência que confere liberdade, autonomia, auto-conservação. A natureza não é passiva, mas atividade. Por isso, complexa, sutil, superior. Os sentidos e intelecto do homem têm dificuldade de alcançá-la. Dada à dificuldade, faz-se necessário estabelecer um método, fortalecer a ciência, aprimorar as artes. Assim, Bacon sugere: afastar-se da sistematicidade rígida, abandonar os pontos fixos dos quais a natureza humana tanto é apegada, valorizar a experiência e a prática. Pesquisar com cautela a natureza nos seus extravios e a natureza mecânica ou trabalhada. Aguçar a criatividade. Por fim, inclusive na contramão da tese de Mauro Grün – quando afirma que Bacon critica e suprime completamente o papel da tradição –, reconhecer a importância dos saberes individuais e familiares, dos saberes não acadêmicos residentes nos homens comuns, – o que poderíamos chamar nos dias hodiernos de saberes tradicionais, popular ou do senso comum –, lembrando que, faz-se preciso tomar cuidado com o uso da linguagem. Pois, o conhecimento precisa ser útil, comunicável e de domínio público. Tais posturas baconianas reverberam o tema do progresso, objeto do próximo capítulo.