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A crítica de Jonas à filosofia baconiana

Capítulo 3 A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais

3.3 A crítica de Jonas à filosofia baconiana

De acordo com o que apresentamos no tópico anterior, vimos que Jonas toma como principal objeto de análise, a técnica moderna, sobretudo, os efeitos que são causados por ela. Isto porque os efeitos da técnica moderna têm afetado tanto o homem quanto a natureza. O campo de ação fora ampliado. A relação dos homens entre si e dos homens frente à natureza modificou-se completamente. Dada essa realidade extremamente distinta, Jonas sustenta que se faz necessário arquitetar uma nova ética. Ou seja, torna-se fundamental que se estabeleça a chamada ética da responsabilidade. Para o filósofo alemão,

...toda a ética anterior se orientava pelo presente, como uma ética do simultâneo, usando diferentes formas éticas no passado. Podemos considerar os três exemplos seguintes: a condução da vida terrena, a ponto de sacrificar sua felicidade, em vista da salvação eterna da alma; a preocupação previdente do legislador e do estadista com o futuro bem comum; e a política da utopia, com a disposição de utilizar os que agora vivem como simples meio para um fim que se encontra além deles ou eliminá-los como obstáculos a esse fim – da qual o marxismo revolucionário é o exemplo proeminente. (JONAS, 2006, p. 51).

A ética da responsabilidade traz como objetivo arrastar o futuro para o presente. O avanço da técnica potencializou a capacidade de ação do homem. Isso findou tornando o homem perigoso não só para si próprio como também para a natureza. O homem em virtude

do poder tecnológico ameaça os demais homens, seres e perturba o meio orgânico, profundamente degradado, afirma Jonas. É preciso que se cuide e se preserve os recursos naturais a fim de que as gerações futuras tenham o direito não só de existirem como de desfrutar igualmente esses recursos. Nesse sentido, faz-se preciso uma ética que ponha freio aos poderes ilimitados da técnica. As intervenções técnicas do homem têm levado a natureza a um estado de vulnerabilidade. O homem, os seres vivos em geral e os recursos naturais estão sob ameaça, inclusive de extinção. Por isso, afirma Hans Jonas, “torna-se necessário agora, a menos que seja a própria catástrofe que nos imponha um limite, um poder sobre o poder – a superação da impotência em relação à compulsão do poder que se nutre de si mesmo na medida de seu exercício” (JONAS, 2006, p. 236). Esse controle, ou, poder sobre o poder seria possível mediante a nova ética, ou seja, mediante a ética da responsabilidade. Não obstante, para não perder de vista o objeto da análise, podemos indagar: aonde se insere a crítica de Jonas à filosofia de Bacon?

Uma resposta plausível é que a crítica de Jonas à filosofia de Bacon tenha sido arquitetada, exatamente na conjuntura e calor da sua crítica à técnica moderna, aos avanços desta e aos efeitos causados por ela. Segundo Jonas, o avanço ilimitado do poderio tecnológico é consequência e desdobramento da proposta e concepção de progresso esboçados por Bacon. Para emitir sua crítica ao pensamento baconiano, Jonas, em O princípio

responsabilidade, elege tópico com a seguinte denominação: „a ameaça tenebrosa contida no

ideal baconiano‟. Nesse tópico o alemão expressa:

Tudo o que dissemos aqui é válido sob a pressuposição de que vivemos em situação apocalíptica, às vésperas de uma catástrofe, caso deixemos que as coisas sigam o curso atual. É preciso traçar algumas considerações, ainda que o assunto seja bem conhecido. O perigo decorre da dimensão excessiva da civilização técnico-industrial, baseada nas ciências naturais. O que chamamos de programa baconiano – ou seja, colocar o saber a serviço da dominação da natureza e utilizá-la para melhorar a sorte da humanidade – não contou desde as origens, na sua execução capitalista, com a racionalidade e a retidão que lhe seriam adequadas; porém, sua dinâmica de êxito, que conduz obrigatoriamente aos excessos de produção e consumo, teria subjugado qualquer sociedade (...). (JONAS, 2006, p. 235).

Segundo Jonas, o programa baconiano traz como fórmula „saber é poder‟. No entanto, explica o alemão, esse programa, no ápice do seu triunfo, se mostra insuficiente, contraditório, e “incapaz de proteger o homem de si mesmo, e a natureza, do homem”. Por conta da magnitude do poder que se conseguiu através do progresso técnico, tanto o homem quanto a natureza se tornaram vítimas, objetos subjugados e seres ameaçados, complementa o

alemão. O que Jonas desconhece, no entanto, é que a possibilidade do naufrágio fora advertida por Bacon. Para o último, na levada do progresso, benefícios ou danos poderiam acontecer. Daí a importância dos homens cultos, sábios, doutos e pesquisadores adentrarem em si mesmos, pedirem a si mesmos contas, chamarem a si mesmos à responsabilidade. As pesquisas, as atividades técnicas não podem se desenvolver divorciadas da reflexão e do pensamento. A questão é: isso fora levado em consideração? No mito da Esfinge, Bacon apresenta claramente as duas perspectivas nas quais o progresso científico pode se desdobrar. Não há como deixar de reconhecer que de fato estamos diante de uma conjuntura real bastante complexa, paradoxal, marcada por absurdos e dilemas provocados pelos avanços da tecnologia. As ameaças estão por várias partes. No campo bélico, no âmbito da produção alimentícia, na área de produção energética, na fabricação de substâncias químicas, etc. O saber que deveria solucionar problemas, causar conforto e felicidade acaba se mostrando ineficaz e, ao mesmo tempo, gerador de problemas ainda maiores. A busca para se produzir cada vez mais, num curto espaço territorial e de tempo, em virtude do aumento do consumo, por exemplo, tem se desdobrado em problemas sérios de saúde.

Contudo, consideramos, de acordo com o que procuramos mostrar no capítulo anterior, Bacon, embora defensor da ideia de progresso e entusiasta da ampliação do conhecimento, todavia sinalizou bem que tal barco poderia naufragar. Uma provável saída seria contrapor à Esfinge, Édipo. A ciência e a técnica possuem facetas variadas. Procurar avançar na tarefa de conhecer é fundamental. Porém, é preciso coxear, é preciso reflexão acerca das nuances resultantes da ciência e da técnica. É extremamente relevante que em lugar da arrogância, da vaidade e do protagonismo egoísta, se ponha o diálogo, a capacidade de ouvir o outro, a humildade. Para Bacon, não se pode esquecer da importância que tem a cautela, o equilíbrio, a humildade, a obediência à natureza e a confluência entre natureza, conhecimento e sociedade.

Jonas critica a modernidade por conta dos avanços tecnológicos. Afirma que tais avanços são desdobramentos e concretização das ideias baconianas. Propõe, então, como instrumento capaz de regular e de pôr freios ao poder da tecnologia, a ética da responsabilidade. Todavia, encontramos nessa conjuntura jonasiana alguns problemas. Primeiro, o alemão direciona crítica ao autor do Novum Organum, mas passa ao largo dos textos do inglês. Jonas não cita Bacon. Tece uma crítica que não pauta pelas obras de Bacon. Portanto, consideramos uma crítica rasteira, equivocada, desleal intelectualmente falando. É

uma crítica que toma a parte como se fosse o todo, quando na verdade esqueceu de avaliar e considerar esse todo. Qual consequência poderá decorrer de uma crítica ou interpretação como essa, se não o preconceito? Segundo, tem a ver com a fundação da própria ética que ele sugere. Larrère nos ajuda nessa compreensão e aponta as dificuldades que circundam as bases da ética da responsabilidade. Para Larrère, e nesse sentido ela evoca também os posicionamentos de Bernard Sève, a ética de Jonas se fundamenta em um medo que é provocado. Um medo que deve ser mantido “da mesma forma que se ameaçam os crentes com os horrores do inferno” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 274). Um medo, segundo Sève, que vem da dimensão religiosa e que pode ser taxado de hiperbólico. Apenas o conteúdo desse medo é secularizado. Na medida em que, se desloca o inferno enquanto punição para o pecador e o admite como sendo o mal supremo de “uma natureza destruída, no homem e fora do homem” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 274).

Segundo Larrère & Larrére, o que fundamenta a ética de Jonas é a crença e a convicção numa catástrofe inevitável. Declara a autora francesa, “Jonas continua prisioneiro da ilusão de omnipotência da modernidade. Ao agitar uma ameaça hiperbólica, introduz de fato uma nova ética de convicção (a crença numa catástrofe inevitável). A esperança torna-se medo, é a ética, negativa, da profecia da desgraça” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 275). São bases da ética de Jonas, a crença na catástrofe e o medo. Mas não só. Sève afirma que, a “ética da responsabilidade é uma ética religiosa: uma ética ascética da abstinência, do sacrifício, mais do que da moderação” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 274). O próprio Jonas afirma:

Em todo caso, em função de nosso princípio primeiro – que deve nos dizer por que os homens do futuro importam na medida em que nos mostra que o “o homem” importa –, não podemos nos poupar da ousada incursão na ontologia... Já demos a entender que a fé religiosa possui aqui respostas que a filosofia ainda tem de buscar, com perspectivas incertas de sucesso. (Por exemplo, pode-se extrair da “ordem da criação” a ideia de que, segundo a vontade divina, os homens devem estar ali à sua imagem e semelhança, e toda ordem deve permanecer inviolada.) A fé pode fornecer fundamentos à ética... (JONAS, 2006, pp. 96-97).

Jonas critica as éticas tradicionais, declara que elas são antropocêntricas, voltam-se apenas para o presente e ignoram o futuro, critica, sobretudo, a ética heleno-judaico-cristã, mas fundamenta sua ética da responsabilidade exatamente sobre bases da religião, da fé, ou da teologia, como queiramos dizer. E o que torna mais grave a fundação da responsabilidade

sobre o medo, a crença na catástrofe e a convicção religiosa, aponta o casal Larrère, são as implicações políticas. Nesse sentido, escrevem os autores franceses,

daí a dificuldade de inscrever esta ética da convicção no campo político. Ela não se presta, como Bernard Sève demonstra, ao debate democrático: governar sob a ameaça supõe que esta última não possa ser posta em dúvida, exclui-se o debate público que examinaria os riscos. Jonas não acredita na capacidade das democracias para se libertarem dos seus interesses presentes, para preverem a ameaça e imporem a si mesmas a obrigação provinda do futuro. (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 275).

Esses foram os problemas que identificamos em relação a Jonas. Paradoxos o cercam. O alemão discute a modernidade, mas recaindo em elementos que são pré-modernos, podemos afirmar. Propõe uma ética que deve ser aceita sem se questionar, que deve ser tomada como acima de qualquer suspeita, uma ética que não precisa dialogar, não precisa inserir-se no debate público. Para ele, a modernidade se definiu como poderosa, aliou ciência e tecnologia, amparou-se no princípio de que “saber é poder”. Transformou a técnica num impulso infinito da espécie. O poderio causado pela tecnologia perdeu o controle de si mesmo, tornou-se uma ameaça por conta dos estragos apocalípticos que são possíveis, só a responsabilidade seria capaz de barrar esse descontrole e garantir às gerações futuras condições para existirem.

Conforme Larrère & Larrère, ao invés de uma ética que rejeita o debate público, deve- se pensar o princípio da precaução, uma vez que esse se relaciona bem com a prudência39, o bom uso e o debate público. Escreve o casal Larrère, “tomar em consideração as gerações futuras exige conceitos mais especificados, que permitam apreender as gerações na sua sucessão e diferença. A noção de património40 parece cumprir essa função...” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 286). Essa noção, complementa os franceses, é adequada porque “evoca prioritariamente o universo doméstico, a transmissão de bens entre diferentes gerações de uma família: O património evoca a ideia de uma herança legada pelas gerações que nos precederam e que nós devemos transmitir intacto às gerações que nos hão-de suceder” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, pp. 286-287). A noção de patrimônio é bem vista por Larrère, porque trata-se de um conceito, cuja origem é romana, pré-moderna, portanto, uma noção que ignora a dualidade sujeito e objeto. Superar essa dualidade ou dicotomia tem sido a

39

A prudência enquanto uma “virtude grega do limite e da medida, atenta à singularidade dos casos, que é capaz para deliberar e decidir num momento de incerteza, marcada pela contingência”. (LARRÈRE, 1997, p. 280).

40 Em relação ao conceito de patrimônio, afirma Larrère, “o mesmo conceito, de ordem jurídica, foi recuperado

pela sociologia (o património cultural), antes de ser adoptado pelo ambientalismo: fala-se de património natural, de património comum da humanidade, noção reconhecida em direito internacional”. (Idem, p. 286).

tônica das discussões ambientais. Boaventura critica a racionalidade moderna exatamente por “operar” tomando como base essa dicotomia. Pensar essas questões passa fundamentalmente pela necessidade do debate. A convicção, ao contrário, elimina o debate e ignora a racionalidade argumentativa. De acordo com Larrère & Larrère, “se Jonas se inclina para uma solução autoritária dos problemas ambientais – o que lhe valeu numerosas críticas – isso deve-se mais a uma incapacidade para compreender a política do que uma inclinação pela ditadura” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 275).

3.4 As interpretações de Brennan e Grün: Bacon, a máquina de terraplanagem, a