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Discussões preliminares acerca da noção de progresso

Capítulo 2 O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à

2.1 Discussões preliminares acerca da noção de progresso

do progresso desenvolvida por Bacon é o objetivo do primeiro tópico que intitulamos, „discussões preliminares‟. No segundo tópico, apresentaremos as discussões que o Lord empreende a respeito dos teólogos, políticos e acadêmicos. As duas primeiras esferas se mostravam contrárias ao avanço do saber. O filósofo rebate-as e defende que a ampliação do conhecimento não será contraditória à religião, à consolidação dos negócios, nem tão pouco à obediência às leis. No terceiro tópico, trabalharemos aspectos que, de acordo com a filosofia de Bacon, dão sustentação ao desvendamento e a interpretação cuidadosa da natureza. Ou seja, dizendo de outro modo, apresentaremos fatores que servem de base à noção de progresso pensada por Bacon.

2.1 Discussões preliminares acerca da noção de progresso

Segundo Menna (2011), Bacon teve um papel desempenhado na Revolução científica [do século XVII] e uma grande importância na difusão da ideia de progresso. Dupas, na introdução do seu O mito do progresso, não hesitou afirmar que “a primeira enunciação de progresso teria partido de Francis Bacon em Novum Organum”. (DUPAS, 2006, p. 19). No primeiro capítulo de O mito do progresso, cujo título é „a evolução do conceito de progresso‟, Dupas assenta que, “em termos gerais, progresso supõe que a civilização se mova para uma direção entendida como benévola ou que conduza a um maior número de existências felizes”. (DUPAS, 2006, p. 30). Dupas destaca Robert Nisbet como um radical adepto da ideia de progresso, para quem o conceito de progresso influenciou civilizações e povos durante toda a história, dos gregos até a atualidade.

Ante a discussão sobre a “gênese” da ideia de progresso, fundamentado nas explicações de Nisbet, Dupas mostra que a ideia de progresso pode ser encontrada nos gregos por meio tanto de Hesíodo, quando este reflete sobre a percepção de avanço ao longo do tempo, quanto de Prometeu. Conforme o autor de O mito do progresso, o mito principal de Hesíodo é sobre a formação da terra e as eras de cinco raças de humanos que os deuses criaram:

A primeira raça é a dourada, criada por Cronos – predecessor de Zeus –, ignorante das artes, da moralidade, do pacifismo e da felicidade; a segunda era a prateada, que tinha sede de guerra e foi extinta por Zeus; a terceira, de bronze, para além do combate marcial também defendia valores, mas se

destruiu sozinha; a quarta raça dos homens-heroi, viveu as guerras de Tebas e Tróia... finalmente a quinta, a dos homens de aço, era do próprio Hesíodo e vivia em meio a tormentas, injustiças e privações. (...) Em meio às infelicidades momentâneas, tempos melhores viriam com disciplina, trabalho e honestidade. (DUPAS, 2006, pp. 32-33).

Eis a descrição do mito sobre a formação da terra tal como apresentara Hesíodo. Para Dupas, Nisbet vê o desenrolar das cinco eras hesiodianas “como crença na evolução, ainda que com alguns retrocessos”. A raça de aço, por exemplo, embora maligna, não possuiria sinais de que seria extinta por Zeus, admite Nisbet.

Na esteira interpretativa de Nisbet, expõe Dupas, “outro mito fundador da ideia de progresso seria o de Prometeu. Observando a condição deplorável da humanidade, ele [Prometeu] entregou o fogo aos homens e capacitou-os ao desenvolvimento e à criação da civilização”. (DUPAS, 2006, p. 33). Percebe-se que Prometeu se encarregou de beneficiar a humanidade. Propiciou aos homens aquecimento, em especial durante as noites frias, forneceu um relevante instrumento para espantar animais que pudesse devorá-los, permitiu que a humanidade fizesse passagem de um estado deplorável para uma condição de civilidade. Prometeu seria a mediação entre o estado de absoluto medo, insegurança e ausência de recursos para se enfrentar as adversidades e outro um pouco mais tranquilo, menos hostil. Dupas escreve ainda que Nisbet enxerga fortes evidências da ideia de progresso, inclusive na obra de Platão, especialmente As leis, “quando ele [Platão] fala do longo período de tempo no qual a vida social se desenvolve até o surgimento da cidade”. (DUPAS, 2006, p. 33).

Robert Nisbet contribui muito com a análise de Dupas no sentido de apresentar o percurso ou a „evolução‟ da ideia de progresso, isso fica claro na leitura do seu primeiro capítulo de O mito do progresso. Após a exposição de que a ideia de progresso poderia ser encontrada nos gregos, por exemplo, em Hesíodo e Prometeu, ou, ainda nas Leis de Platão, tal como defende Nisbet, para este mesmo teórico, no período medieval o maior representante da ideia de progresso foi Santo Agostinho. “Agostinho desenvolve a ideia globalizadora de unidade na humanidade, uma espécie de ser com infância, adolescência e maturidade. Ele divide a história em seis etapas, de Adão a Cristo, apontando os níveis de progresso de cada uma delas”. (DUPAS, 2006, pp. 34-35). O progresso parece ser concebido assim, como uma trajetória, na qual períodos ou épocas se sucedem e na ordem de sucessão os últimos são melhores que os anteriores. Na perspectiva de Agostinho, nos permite afirmar Dupas, anacronicamente, o progresso teria uma relação com a graça, com a palavra e com a ação de Deus em resgate àqueles que cressem. Enquanto o símbolo de progresso no período antigo

fora o fogo roubado dos deuses e dado aos homens por Prometeu segundo Nisbet, o progresso adquirido no medievo podia ser constatado mediante o machado de aço e o arado, além dos avanços nas artes, arquitetura e astronomia28.

Conforme apresenta o autor do Mito do progresso, para Nisbet, contribuiu também com a ideia de progresso, “as invenções mecânicas de Roger Bacon no século XIII, assim como seus trabalhos em ótica e física” (DUPAS, 2006, p. 36). A ideia de progresso, escreve Nisbet, “retornou pouco a pouco na etapa final do Renascimento... [e] Jean Bodin..., ainda com vínculos renascentistas, é tido como o primeiro autor do período a tratar do progresso”. (DUPAS, 2006, p. 37). Bodin compreendia que o presente era melhor que o passado e que o futuro seria melhor que o presente. Após trazer para a discussão Bodin, finalmente, mas ainda considerando a análise de Nisbet, Dupas menciona Francis Bacon. Demonstra que as grandes navegações influenciaram a concepção de progresso do filósofo, e que para este,

a grande renovação do conhecimento foi visar sua utilidade e a melhoria da vida humana29. Em vez de sonhar com o passado, haveria que se acrescentar muito mais conhecimento no futuro. A sabedoria seria irmã do Tempo. Era a época dos primeiros grandes saltos tecnológicos – imprensa, pólvora e bússola –, mudando o estado geral na literatura, na guerra e na navegação. Bacon deixou sugerida a proposta do New Atlantis, um colegiado de cientistas investigadores [da natureza] voltados a novas descobertas que pudessem alterar as condições de vida do ser humano. (DUPAS, 2006, p. 39), destaque meu.

Ainda sobre esta discussão preliminar a respeito do conceito de progresso, e que nos ajuda a compreender a atmosfera cultural na qual Bacon estava inserido ao pensar aquele conceito, Dupas recorre à Grande enciclopédia Delta Larrouse. Afirma que esta “chama de

progresso movimento ou marcha para frente; [progresso é] desenvolvimento; aumento;

adiantamento em sentido favorável ou desfavorável”. (DUPAS, 2006, p. 18). Esta concepção não é distante da que pensou Bacon. O filósofo foi entusiasta da ideia de progresso, admitindo o último como sendo um avanço, um caminhar para adiante, sobretudo, no sentido de melhorar as condições de vida do homem sobre o planeta. Contudo, o Barão de Verulam sabia que o progresso, enquanto um avanço da ciência, também pode se desdobrar em sentido contrário.

28 Confira esta discussão em (DUPAS, 2006, p. 36). 29

Essas duas facetas que envolvem o progresso e a ciência podem ser visualizadas no mito da Esfinge, interpretado por Bacon em A Sabedoria dos Antigos. Ali, a Esfinge, descreve o filósofo,

era um monstro que combinava diversas formas em uma só. Tinha voz e rosto de donzela, asas de pássaro e unhas de grifo. Postava-se no cume de uma montanha perto de Tebas e assolava os caminhos, espreitando os viandantes a quem assaltava e dominava de súbito. E após dominá-los, propunha-lhes enigmas obscuros e embaraçosos, que teria aprendido das Musas. Se os míseros cativos não conseguissem solucioná-los e interpretá- los sem demora, e hesitassem confusos, ela os despedaçava cruelmente. (...) Eis uma fábula bela e sábia, inventada aparentemente em alusão à Ciência, sobretudo quando esta é aplicada à vida prática”. (BACON, 2002, p. 88).

A citação de Bacon mostra com clareza que o filósofo, apesar de entusiasta ferrenho da ciência e da ideia de progresso, não era ingênuo em relação àquelas. Ao interpretar o mito ele nos alerta que, enquanto por um lado a Esfinge tinha voz de donzela, asas de pássaro e unhas de grifo, características que encantavam aqueles que tinham contato com ela, por outro lado, a Esfinge também era um monstro que amedrontava, subjugava e despedaçava cruelmente os incapazes de desvendar seus enigmas.

Analisando ainda a passagem citada acima, percebe-se que nela há termos como, por exemplo, cume, montanha, enigma e embaraço, que para Bacon não são fortuitos. O cume da montanha habitat da Esfinge aponta para o lugar que a ciência ocupa, e esse lugar é criticado com veemência pelo inglês. No seu modo de pensar, a ciência precisa ser expressa mediante uma linguagem clara, não ambígua nem enigmática, aspecto que tornaria a ciência mais acessível. O conhecimento científico só será útil se descer do cume da montanha e manter correspondência com a vida cotidiana das pessoas. A face boa do progresso está atrelada a esta relação.

Ainda sobre a não ingenuidade de Bacon quanto ao progresso científico, corroboram com o nosso argumento, Guimarães e Santos, quando afirmam:

No desenrolar desse processo de efervescência intelectual, a desconstrução de paradigmas tidos como sólidos até então, também são submetidos ao crivo rigoroso e mordaz de filósofos como Bacon, que questionam veementemente em suas obras e nas incursões que fazem nos experimentos científicos do seu tempo, o senso de limitação e as características negativas das teorias e doutrinas difundidas como verdades absolutas, mas que ao serem submetidas ao olhar criterioso da ciência, suscitam a dúvida, a incerteza e o sentimento de não permanência das coisas. A ideia de progresso é, concomitantemente, razão de entusiasmo [por um lado] e

desconforto [por outro lado] frente às novas descobertas (...). (GUIMARÃES & SANTOS, 2010, p. 31). Destaque meu.

Segundo os autores citados, o progresso se apresenta como um paradoxo. Por um lado, amplia o potencial humano propiciando que obstáculos sejam superados. Mas, paralelamente, afirmam eles, “a ideia de progresso é também motivo de ansiedades, angústias e receios de catástrofes em devir, diante das transformações profundas que envolvem tanto o mundo histórico quanto o natural”. (GUIMARÃES & SANTOS, 2010, p. 31). O inglês reconhecia esta problemática que envolve o progresso. Sua interpretação do mito da Esfinge mostra bem a compreensão dos dois lados que acompanham a ciência, o avanço da técnica e, portanto, o progresso. São perguntas que de certo modo se interpenetram no decorrer deste capítulo: o que seria o progresso para Bacon? Quais elementos deveriam juntar-se ou repelirem-se na composição da noção de progresso para o filósofo? O progresso defendido por Bacon implica mesmo em danos e desvantagens à natureza?

O progresso, para Bacon, está fortemente relacionado com duas frentes. De um lado, o projeto de reforma do conhecimento. Do outro, o avanço nas descobertas dos segredos da natureza. Contudo, seria um equívoco afirmar que para o Lord o progresso teria como meta um avanço ilimitado da ciência e da técnica, ou ainda, um avanço ilimitado da dominação antrópica sobre a natureza. Esclarece-nos Dussán, “Bacon concibe el proyecto de renovación metodológica de la filosofía natural y su posterior efecto en el bienestar humano a partir de la transformación de las condiciones materiales, enlazado íntimamente a una reforma moral de la filosofía y de los filósofos”. (DUSSÁN, 2009, p. 100). Fica claro que, nessa perspectiva, o progresso baconiano não só está relacionado com a transformação das condições físicas e materiais, ou ainda, com a transformação da natureza, mas também – e muito importante – vinculado ao bem estar da humanidade e a uma reforma moral da filosofia [natural] e dos filósofos [os próprios pesquisadores].

Dussán afirma que, se se prestar atenção nas obras baconianas de juventude, perceber- se-á que o projeto de reforma da filosofia natural está vinculado a virtudes morais. Na sua interpretação, a reforma da filosofia natural tal como pretendia Bacon, deveria não ignorar as considerações morais, religiosas e teológicas. Para Dussán, o inglês encontra sentido para o seu projeto epistemológico nas virtudes morais, respectivamente, “la caridad y la humildad” (cf. DUSSÁN, 2009, p. 100). Essa interpretação se aproxima de Bernardo de Oliveira, quando este escreve que:

A correta investigação da natureza é um dever religioso, no qual os homens refletem e estendem o trabalho divino, honrando o criador. (...) Assim, Bacon se vale da autoridade da escritura para legitimar seu programa de reforma do conhecimento e recheia a interpretação heterodoxa que faz do cristianismo com citações dos profetas e passagens bíblicas que reforçam seu projeto. (OLIVEIRA, 2002, p. 134).

Não obstante, embora as virtudes morais como a caridade e a humildade – oriundas do campo teológico – tenham relevante papel na filosofia baconiana no que se refere à condução da investigação acerca da natureza, não podemos afirmar que para o inglês a religião seja o fundamento do seu programa de reforma. Pelo contrário. Religião e ciência não se confundem. São palavras do próprio filósofo, “Dá à fé o que é da fé”. (BACON, 2007, p. 140). Seguindo este raciocínio, Zaterka argumenta que para Bacon, “confundir teologia com filosofia ou vice-versa é incorrer num grave erro, ou seja, continuar no registro da vã filosofia”. (ZATERKA, 2004, p. 99). Esse posicionamento do Lord em relação à separação entre ciência e religião é encontrado também na seguinte passagem:

Não obstante, há que se recordar a propósito deste último ponto [separação entre teologia e ciência], e em outros lugares se necessário, que na demonstração da dignidade do conhecimento ou saber separei desde o

começo o testemunho divino [teologia/religião] do humano

[filosofia/ciência], e tal é o método que tenho seguido, tratando os dois separadamente. (BACON, 2007, p. 96). Destaque meu.

Segundo o Lord, o conhecimento divino é algo inacessível ao homem. Há coisas que são do campo da fé e com elas a ciência não deve se misturar. Podemos pesquisar a natureza, mas não os mistérios de Deus. As virtudes morais e a ética são importantes na tecelagem do programa de reforma do conhecimento baconiano. Porém, o filósofo não admite que a religião se infiltre na ciência, ou ainda, que as duas se misturem. A utilização que Bacon faz de passagens das Escrituras, por um lado pode significar um reforço para a importância das virtudes morais, como defende Dussán. Mas, por outro, um recurso retórico como nos alertam Oliveira (2002) e também Paulo Rossi em Da magia à ciência. Insistindo ainda no argumento de que ciência e religião são distintas, na leitura de (MENNA, 2011, p. 70), constatamos o seguinte: “Bacon separa religião de ciência e entende que a liberdade de pesquisar está restringida ao reino da natureza e do homem”. De acordo com Bacon, o conhecimento de Deus é algo inacessível ao intelecto humano. Sendo assim, o que nos resta é concentrar esforços no sentido de buscar conhecer aquilo que é possível conhecer, ou seja, a natureza e,

provavelmente, até mesmo o homem. O progresso fora interrompido quando a filosofia deixou de estudar a natureza e se voltou para a interioridade. Afirma Rossi, para Bacon,

Nas homeomerias de Anaxágoras, nos átomos de Leucipo e Demócrito, no céu e na terra de Parmênides, na discórdia e amizade de Empédocles, no fogo de Heráclito, está presente “um sabor da filosofia natural, da natureza das coisas, da experiência, dos corpos” (Novum Organum, I, 63) que foi se perdendo quando a filosofia voltou-se ela própria para o mundo interior em vez da natureza, para problemas de caráter moral e lingüístico, abandonando a pesquisa severa das coisas naturais. (ROSSI, 2000, pp. 26-27).

Acompanhemos no tópico a seguir as discussões que o filósofo empreendeu. Ante os teólogos, Bacon argumentou que a causa da Queda não fora o conhecimento da natureza, mas o orgulho, a vontade de se tornar independente de, ou, semelhante a Deus. Perante os políticos, o Lord defendeu que o avanço do saber não seria contraditório à consolidação dos negócios nem à obediência das leis. Em relação à problemática que envolve os doutos e sábios, Bacon apontou que a falta de investimento por parte dos Estados em pesquisas, a busca exagerada por lucro e dinheiro, o não reconhecimento por parte dos Estados para com os seus homens pensantes e pesquisadores bem como os tipos de estudos desenvolvidos pelos doutores da época, mas completamente desalinhados da realidade das pessoas, constituíam-se empecilhos que inviabilizavam o avanço da ciência e, por isso, careciam ser reformulados.