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Considerações acerca das epígrafes iniciais, rastros e ecos da filosofia baconina na

Capítulo 3 A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais

3.1 Considerações acerca das epígrafes iniciais, rastros e ecos da filosofia baconina na

Iniciamos o capítulo recorrendo a duas epígrafes. A primeira é de Dussán. Nela, ele afirma que não tem faltado críticas a Bacon. Muitas dessas críticas acusam o filósofo de ter desenvolvido uma ciência de engenheiros cujo fim está direcionado somente a criar instrumentos e objetos. Uma ciência que, em última instância, subordina a verdade à utilidade. A segunda epígrafe, no entanto, é do próprio Bacon, e por si só, contraria em larga medida o tom das críticas denunciadas por Dussán. De saída, o filósofo nos situa, que tais críticas não correspondem com o que ele pensou a respeito da natureza e do avanço da ciência e da técnica. Conforme mostramos no primeiro capítulo, para Bacon, o domínio da natureza está atrelado a duas esferas. De um lado as ciências. Do outro, as artes. As ciências e as artes são as duas vias em função das quais o homem se relaciona com a natureza e a pode “controlá-la”. Assim, aperfeiçoar e fazer avançar o conhecimento são imprescindíveis para que a vida humana alcance benefícios e longevidade. Entretanto, destaca o inglês, o processo de ampliação do conhecimento não pode ser desvinculado da reflexão. Por isso a pertinência da

segunda epígrafe. Os homens cultos – e deste rol fazem parte os filósofos e cientistas – precisam refletir e avaliar suas responsabilidades e funções. Os operadores da ciência precisam adentrar-se em si mesmos e chamarem a si mesmos às contas. Uma vez que os homens incultos, ao contrário, não teriam essa capacidade. O que fica claro, portanto, é que, para o Lord, reflexão e ação compõem um par.

Acerca das críticas que geralmente são atribuídas a Bacon, Dussán salienta que duas são as leituras que se sobressaem. A primeira toma como foco de interesses os aspectos epistemológicos, especialmente, “el método inductivo de la ciencia”. Já a segunda, sobretudo, num tom mais severo de crítica e até de certo „desprezo‟,

es la acusación que se ha hecho a Bacon de promover un tecnicismo que se expande desde la producción de artefactos hacia los demás dominios humanos sin restricción alguna, incluidos los dominios ético y político. De acuerdo com la interpretación que de él hicieran Horkheimer y Adorno (1994, p. 60), Bacon aparece como promotor del utilitarismo o como el germen del dominio de la razón instrumental. (Dussán, 2009, p. 100).

Interpretações desta natureza, pondera Dussán, forjam uma imagem de Bacon, que apresenta o último como sendo um autor de pouca importância tanto para o pensamento filosófico quanto para o pensamento científico. O que não é verdade. Segundo Dussán, “Bacon concibe el proyecto de renovación metodológica de la filosofía natural y su posterior efecto en el bienestar humano a partir de la transformación de las condiciones materiales, enlazado íntimamente a una reforma moral de la filosofía y de los filósofos” (DUSSÁN, 2009, p. 100). A proposta de Bacon no sentido de reformular a filosofia natural, abrir novo caminho que possibilite um conhecimento progressivo e adequado da natureza, não deixa de considerar os limites que são oriundos das esferas epistemológica e ética. Além disso, é extremamente importante ressaltar que, o avanço da ciência e da técnica não é para perturbar, nem prejudicar o homem. Mas, melhorar as condições de vida sobre o planeta. A ciência e a técnica deveriam proporcionar, o que poderíamos chamar em termos atuais, „qualidade de vida‟. No Progresso do conhecimento, seu autor declara: “que apliquemos nosso

conhecimento de modo que nos dê repouso e contentamento, e não inquietude ou insatisfação”. (BACON, 2007, p. 22). Esse traço, pode-se dizer, é uma espécie de fio

condutor na filosofia baconiana. Não há como deixar de reconhecer a dimensão ética que subjaz ou que acompanha a filosofia do Lord. Acrescenta o filósofo:

mas antes aspirem os homens a um avanço ou progresso ilimitados em ambas [teologia e filosofia[natural]]; cuidando, isso sim, de aplicá-las à

caridade, e não ao envaidecimento; ao uso, e não à ostentação; e também de não misturar ou confundir imprudentemente esses saberes entre si. (BACON, 2007, p. 25).

Analisando as duas citações, encontramos pontos relevantes do pensamento de Bacon, mas que não são lidos quando se discute natureza, progresso técnico-científico e tantos outros temas ligados ao meio ambiente. Para o inglês, a aplicação da técnica e da ciência deveria visar repouso e contentamento. Não o contrário. Uma possibilidade para tornar isso real seria, de um lado, distinguir os saberes, não misturar teologia e filosofia, portanto, separar religião e ciência – coisa que Jonas não faz, pois fundamenta sua ética exatamente sobre bases religiosas –. Aspirar ou desejar o progresso – até mesmo na teologia –, mas agregar a ele caridade, não vaidade, não ostentação, portanto, uso. O progresso, enquanto resultado dos avanços técnico- científicos, assume estado de utilidade, na medida em que os conhecimentos são aplicados ao uso e à prática. No ato de operar essa passagem a caridade não faz mal. O que prejudica a utilidade do saber, conforme o inglês, seria a vaidade e à ostentação. Delas o pesquisador, o intérprete da natureza precisa se afastar.

Mais adiante, ao apontar uma das causas que levou Roma à ruína – o apego à riqueza – , escreve o inglês, “mas estes e todos os demais males cessarão quando cessar o culto ao dinheiro...” (BACON, 2007, p. 36). Aspectos como o desapego ao dinheiro e ao lucro, alinhamento entre produção de conhecimento e aplicação à realidade, orientação para que o saber seja construído e os resultados postos na perspectiva do bem estar coletivo, são marcas da filosofia baconiana. Marcas essas, que parecem ser ignoradas por autores do meio ambiente, como é o caso de Jonas, Brennan e Grün, por exemplo. Referindo-se à filosofia baconiana, Dussán afirma, “su propósito último es hacer que la filosofía llegue al hombre común y corriente” (DUSSÁN, 2009, p. 103). Dussán completa e cita Bacon, “al que no se llega si no es por medio de lo útil y de las obras” (BACON, 1985, p. 77). Quando Bacon pensa que os resultados da ciência só serão frutíferos na medida em que alcancem os homens comuns, esse é um traço que se vê, por exemplo, em Um discurso sobre as ciências, de Boaventura. Ali, o sociólogo português propõe que os resultados da ciência se voltem para o senso comum. Ou seja, o conhecimento será frutífero quando conseguir alcançar as pessoas comuns em suas realidades.

De acordo com a análise de Dussán, o objetivo da reforma baconiana seria fazer com que a filosofia se afastasse da esterilidade, se tornasse frutífera e fizesse com que os seus

frutos alcançassem os homens comuns. Esses, aliás, não foram ignorados pela filosofia do inglês. Escreve Dussán nesse sentido que,

El hombre común se convierte en parte de la construcción de conocimiento, y se forma parte desde la posición de quien juzga dicha construcción. Así, el conocimiento comienza a romper sus fronteras y se abre a actores que antes no habían sido tenidos en cuenta. Bacon propone un conocimiento que no está centrado más en las discusiones de las academias ni en el saber de iluminados (magia y alquimia), sino que se hace público en la medida en que los hombres comunes lo valoran. (DUSSÁN, 2009, p. 103).

Para nós, a discussão encabeçada por Dussán a respeito do papel que o homem comum assume na filosofia de Bacon é extremamente relevante. Sobretudo, porque nos debates que tematizam sociedade, natureza e meio ambiente, o homem comum tem sido convocado a ser não apenas ator, mas protagonista. Lembramos aqui, por exemplo, de Boaventura. Este, nas discussões que empreende a respeito de problemas e questões sócio-ambientais, defende estreita proximidade entre ciência e senso comum, adequação entre teoria e aplicação à realidade, pois, na sua concepção, “nosso primeiro problema [especialmente] para quem vive no Sul é que as teorias estão fora de lugar: não se ajustam realmente a nossas realidades sociais” (SANTOS, 2007, p. 19). O sociólogo português admite amplamente a importância do homem comum na relação que envolve a natureza, a sociedade e a construção do saber. Vejamos o que ele declara.

O que estou tentando fazer aqui hoje é uma crítica à razão indolente, preguiçosa, que se considera única, exclusiva, e que não se exercita o suficiente para poder ver a riqueza inesgotável do mundo. Penso que o mundo tem uma diversidade epistemológica inesgotável, e nossas categorias são muito reducionistas. (SANTOS, 2007, p. 25).

Essa postura de Santos, apresenta duplo aspecto. Por um lado, critica e reforça a visão que se tem da chamada ciência moderna, ciência essa que opera dicotomicamente: separa sujeito e objeto, homem e natureza, mente e corpo, ciência e senso comum, etc.. Por outro, considera em larga medida o papel das pessoas ou, se quisermos, dos atores comuns. Não perder de vista “a riqueza inesgotável do mundo”, segundo o autor de A sociologia das

ausências, significa não fechar os olhos para o papel que exercem os grupos, as pessoas

comuns. Ainda nessa direção, pontua Santos, “a meu ver, o primeiro desafio é enfrentar esse desperdício de experiências sociais que é o mundo”. (SANTOS, 2007, p. 24). Na sua avaliação, é preciso que se considere o particular e o local, uma vez que estes são tornados

invisíveis, descartáveis, desprezados. É necessário construir uma ciência que considere o particular, o local e o invisível em contraposição ao global, ao universal e ao hegemônico.

Conforme o autor português, é fundamental que “o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações urbanas marginais, com o saber camponês. (SANTOS, 2007, p. 33). Sem dúvida, à luz do que tem proposto Santos, as pessoas comuns não podem ser tornadas invisíveis. Elas têm um papel. Elas desenvolvem ações. Se pensarmos nas comunidades indígenas – esse inclusive é um exemplo que ele mesmo apresenta – elas são extremamente relevantes no tocante à conservação da biodiversidade amazônica. Até porque, destaca o português, o modo como essas comunidades se relacionam com o ambiente foge às nossas categorias hegemônicas e dicotômicas de ver as coisas muita das vezes. O tempo para nós não é o mesmo que para eles. Isso conta bastante.

Não queremos incorrer em anacronismo. Sabemos que o foco, as preocupações e inquietações de Bacon eram extremamente distintas das de Santos. Porém, levando em consideração as discussões que o sociólogo português empreende a respeito dos temas „natureza e sociedade‟, recorrermos brevemente à sua sociologia porque, embora ele não seja um estudioso da filosofia de Bacon, é possível encontrar nas suas proposituras marcas, sinais e ecos do pensamento baconiano. Ambos defendem alinhamento entre teoria e prática. Ambos defendem a valorização da diversidade de experiências. Bacon, não obstante as limitações do seu tempo, defendia que se viajasse e que se desse volta ao mundo. Na Nova Atlântida encontramos a ideia de se lançar para fora. De períodos em períodos partia de Bensalém embarcação cujo destino era conhecer outras culturas. Dialogar com o diferente era fundamental. Santos, claro, em outro tempo, não só defende a diversidade de experiências como desenvolveu pesquisa em diversas partes do mundo, inclusive países orientais e africanos. Qual objetivo? Aprender com as diferenças, ampliar o conhecimento e buscar cada vez mais construir uma ciência que não seja hegemônica, que não seja uma ditadura dos países mais ricos, mas que seja dialógica, inclusiva e que traga a invisibilidade para a esfera do visível.

Em A sociologia das ausências, por exemplo, Santos expressa: “nossa racionalidade se baseia na idéia da transformação do real, mas não na compreensão do real. E este é nosso problema hoje: a transformação sem compreensão está nos levando a situação de desastre”. (SANTOS, 2007, p. 28). Sem dúvida, esse texto do português está carregado de uma crítica à

racionalidade oriunda ou decorrente da ciência moderna. Santos denuncia que a nossa racionalidade tem priorizado a ação e a transformação em detrimento da compreensão. Ora! Conforme mostramos no primeiro capítulo dessa dissertação, Bacon, no seu Novum Organum, alerta: “O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais”. (I: 1). Na compreensão do inglês, o agir não deve preceder à compreensão. O homem é ministro, servidor, intérprete e agente na natureza. Todavia, sua ação deve considerar os limites: epistemológico e ético. As intervenções na natureza devem ser baseadas no conhecimento adequado sobre ela, sobre suas leis, e ter como fim beneficiar a humanidade. Segundo Santos, o conhecimento científico deve manter com o senso comum uma relação de proximidade. Ciência e senso comum formam uma dicotomia que precisa ser desfeita. Bacon muito antes propôs estreita relação entre ciência e humanidade, ou, assentando em outros termos, ciência e beneficiamento da sociedade.

Essa idéia – que a ciência deve ser desenvolvida para beneficiar a humanidade/sociedade – é reforçada na Nova Atlântida por meio da Casa de Salomão e dos resultados que esta fornece à sociedade de Bensalém. Conforme Bacon, o saber adquirido deve ser posto a serviço da coletividade e propiciar bem estar para todos, independentemente da etnia, posição social, econômica ou política. Jonas, Merchant, Grün e Brennan, ao que tudo indica, não interpretam a Nova Atlântida dessa forma. A Nova Atlântida, embora seja um texto do âmbito da ficção, todavia, indiscutivelmente é também um texto filosófico. Provavelmente, por meio desse texto fictício, Bacon tivesse como pretensão atingir um público maior e distinto do público especializado, acadêmico. Uma vez que, para ele, era muito importante que as vias do conhecimento fossem acessíveis.

Ainda sobre os “encontros” entre Bacon e Santos, no prefácio de Um discurso sobre

as ciências, Santos afirma: “defendo que todo o conhecimento científico é socialmente

construído, que o seu rigor tem limites inultrapassáveis”. (SANTOS, 2008, p. 9). Para o português, a construção do conhecimento não é um ato isolado nem individual. Ao retrocedermos à filosofia de Bacon, vemos que ele criticou severamente a autoridade e a predominância do gênio/indivíduo na construção do saber. Nesse sentido, reforça Rossi, “os procedimentos cotidianos dos artesãos, dos engenheiros, dos técnicos, dos navegantes, dos inventores são elevados à dignidade de fato cultural, sendo que homens como Bacon, Harvey, Galileu reconhecem explicitamente sua “dívida” para com os artesãos”. (ROSSI, 2006, p. 84). A citação mostra bem que, para Bacon, o diálogo entre pesquisadores, o intercambio entre

eles, a colaboração e o compartilhamento de experiências são extremamente proveitosos. E não somente entre os acadêmicos. Os artesão e homens que dominam determinadas técnicas podem muito contribuir com a ampliação do conhecimento. No processo de estudo e interpretação da natureza, destaca Bacon, “conviene ver las diversas glossas y opiniones que se han dado sobre la naturaleza”, (BACON, 1988, p. 115). Sobretudo, porque na concepção de Bacon, a ciência, insiste Rossi, é “uma obra de colaboração e com uma sucessão de pesquisas que necessita, para viver, de instrumentos técnicos, de contatos humanos, de trocas contínuas e da “publicidade” dos resultados” (ROSSI, 2006, p. 125). A ciência na concepção baconiana tem “caráter público, democrático, colaborativa, é feita de contribuições individuais [mas] que visam um sucesso comum, patrimônio de todos”. (ROSSI, 2006, p. 128).

Pode-se afirmar que, para Bacon, a ciência é uma construção social na qual as pessoas comuns e a valorização da diversidade de experiências são consideradas. Para Santos, a relação entre ciência e senso comum deve ser estreita. Ou seja, os resultados produzidos pela primeira precisam está conectados com as necessidades sociais. No final do caminho, ciência e senso comum precisam se encontrar. Enquanto em Santos ciência e senso comum mantém estreita relação, em Bacon, deve haver vínculo estreito entre ciência e humanidade. O conhecimento sobre a natureza, pode-se dizer, é teleológico. Sua finalidade não é o envaidecimento nem a vanglória acadêmica, mas o melhoramento das condições de vida das pessoas. Portanto, os pensamentos de ambos são bastante parecidos.

Em virtude, portanto, desses aspectos que foram elencados acima acerca da filosofia baconiana, cabe o posicionamento de Paolo Rossi:

Os pós-modernos pensam que a modernidade pode caracterizar-se como a época da autolegitimação do saber científico e da plena e total coincidência entre verdade e auto-emancipação. Pensam também a modernidade como a época do tempo linear caracterizada pela “superação”. Pensam ainda que o moderno é a época de uma razão forte... Pensando essas coisas, pensaram mal. (...) Não leram os modernos, mas os manuais que falam deles. (ROSSI, 2000, pp. 116-117).

Não são poucas as críticas empreendidas à ciência moderna. Contudo, ainda nos movimentamos muito sobre os métodos, procedimentos e conceitos que foram fornecidos por ela. O próprio Boaventura escreve que o campo teórico sobre o qual trabalhamos fora elaborado por cientistas que viveram entre o século XVIII e início do século XX. É verdade que precisamos pensar nossos dilemas, precisamos pensar nossa relação com a natureza e o

modo como construímos nossos ambientes. Assim, conceitos são revistos, modificados, reinventados. Porém, nos alerta Paolo Rossi, seria prudente pelo menos se estudar com cuidado os denominados autores modernos. Jonas, Brennan e Grün, provavelmente, puseram num segundo plano o alerta de Rossi.