• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 As mudanças na família ocidental contemporânea e a união consensual a

1.2. A união consensual no contexto latino-americano, brasileiro e paulista: um pouco de

1.2.3. As uniões consensuais no Estado de São Paulo

No Estado de São Paulo, as uniões consensuais possuem algumas características desse tipo de união constatadas na América Latina e no Brasil, entretanto, elas possuem especificidades que a destacam em relação a essas regiões, conforme se discute a seguir. No final do século XVII, a descoberta do ouro em São Paulo deslocou o eixo econômico do Brasil para a região Sudeste. Com isso, ocorreram mudanças econômicas que afetaram o estilo de vida da sociedade colonial (SAMARA, 2002). Dentre elas, ressaltam-se o crescimento dos núcleos urbanos, do tráfico de escravos, dos celibatários, dos concubinatos e, consequentemente, do número de filhos tidos como ilegítimos. Isso fez com que a sociedade paulista convivesse com o conflito em torno da ilegitimidade, isto é, o preconceito e, simultaneamente, a tolerância em relação à presença desses filhos (SAMARA, 2002). Porém, essa não era a maior preocupação das famílias mais nobres, mas sim a posse da terra e de escravos - que significavam prestígio e poder-, e a manutenção das alianças matrimoniais entre a elite que pudessem garantir a continuidade desse modelo (SAMARA, 2003).

Em que pesem as resistências sociais e eclesiásticas à existência das uniões concubinárias, os estudos mostram que elas eram uma realidade marcante no Estado de São Paulo nos anos setecentos e assim persistiram durante vários anos seguintes (SAMARA, 2003; LOPES, 1998). O estudo das devassas episcopais ratifica essa linha de pensamento ao revelar que o concubinato era um costume tão disseminado no período colonial que se tornou o delito mais presente na época (SILVA, 1984). Com fundamento em testamentos e depoimentos pesquisados, Samara conclui que as ligações de caráter transitório predominavam em detrimento das mais duradouras, revelando a existência de uniões descontínuas com vários parceiros (SAMARA, 2003). O reconhecimento dos filhos havidos nessas relações era realizado judicialmente e dependia de provas concretas porque se objetivava evitar escândalos e a dissolução dos costumes (LEVY, 2006; SAMARA, 2003). As concubinas e as mães solteiras viviam

com seus filhos denominados ilegítimos, trabalhando e chefiando as famílias à reversão dos valores dominantes nas esferas de poder (LEVY, 2006). Contudo, a maneira pela qual a população e as autoridades viam essas “ligações ilícitas” foi se modificando ao longo do tempo, de modo que elas passaram a ser encaradas como costume e tradição, “mais do que o resultado de imoralidade e desorganização sociais” (LOPES, 1998, p. 57).

As despesas acarretadas pelo processo de casamento – que incluem o processo de certidão e a cerimônia religiosa – “levavam à junção pura e simples” dos paulistas (CANDIDO, 2010, p. 272). Essa situação era mais frequente nos casos de cônjuges separados e de viúvos, pois as famílias queriam que suas filhas solteiras regularizassem a sua situação (CANDIDO, 2010). A dificuldade de obtenção dos documentos necessários para os processos de banhos é compreendida como um impeditivo para o casamento na capitania de São Paulo, pois eles eram caros para a maioria da população, que não podia arcar com as despesas exigidas para o matrimônio (SILVA, 1984). Contudo, na capitania de São Paulo, a partir do século XIX os escravos conseguiam as dispensas matrimoniais, isto é, documentos que os isentavam do pagamento das taxas em virtude da falta de condições financeiras, ou que os liberavam dos impedimentos canônicos que obstavam a realização do sacramento (SILVEIRA, 2005).

Outra importante singularidade que deve ser salientada é que a família paulista, assim como a de outras áreas do sul do país, é diferente daquela descrita por Freyre na região de lavoura canavieira do Nordeste (SAMARA, 1987). O contraponto da família patriarcal estabilizada na narrativa do pensamento social vem sendo produzido pela contestação de uma organização familiar aplicável aos vários segmentos sociais (SAMARA, 1987). Em cada lugar, a família tem contornos particulares, portanto, irredutíveis a um mesmo padrão de família (SAMARA, 1987). De fato, a família paulista é um exemplo de configuração bastante distinta em virtude de suas características próprias. Constatava-se o predomínio do tipo de família que possuía uma

estrutura mais simples e era constituída por um número reduzido de integrantes12

(SAMARA, 2002). Dois fatores podem ter contribuído para esse fato: a grande mobilidade espacial da população e a alta taxa de mortalidade infantil (SAMARA, 2002). A falta de convivência no cotidiano da família extensa não levou ao

12 Especificamente na cidade de São Paulo em 1836, Samara ressalta que as famílias nucleares

predominavam e o número médio de habitantes por domicílio era entre 1 e 4 elementos, exceto as famílias aumentadas, que contavam com mais componentes e muitos escravos (SAMARA, 2002).

enfraquecimento das relações familiares e afetivas nessa sociedade, pois as relações padrinho/afilhado e tio/sobrinho eram bastante valorizadas (SAMARA, 2002). Por outro lado, verificava-se que as famílias extensas ou do tipo patriarcal eram apenas uma das formas de organização familiar e não representavam muitos domicílios, apenas um segmento da população (SAMARA, 2002). Na sociedade paulista destacava-se também a presença dos agregados à família - domésticos, ajudantes, aprendizes, lavradores –, justificada pela necessidade de mão-de-obra. No entanto, também havia agregados ligados à família por laços pessoais (SAMARA, 1983). A presença de todos eles aponta a existência das relações paternalistas na família patriarcal de São Paulo (SAMARA, 1983).

O desenvolvimento industrial, econômico, político e social constatado no Estado de São Paulo é outro diferencial para se analisar as uniões informais. No século XIX, o desenvolvimento econômico provocado pela cafeicultura e pelos investimentos pesados em ferrovias intensificaram sobremaneira o desenvolvimento urbano e das indústrias, bem como aumentaram as possibilidades de circulação no território. Paulatinamente, as atividades comercial e financeira acentuaram as funções urbanas, com ramificações de Santos e São Paulo em direção ao interior. Transporte, comércio e bancos ampliaram os segmentos assalariados, confirmando uma sociedade crescentemente diferenciada à medida que avançavam os anos nas primeiras décadas do século XX. As cidades interioranas do Estado de São Paulo também se desenvolveram e possuíam serviços característicos que remontam ao século XIX, como água e esgoto, iluminação pública e doméstica, telefonia local e regional, transporte urbano, diversificada rede escolar, centro culturais e recreativos, estabelecimentos de assistência à saúde, assistência social e edição diária de jornais. Esses distintos desenvolvimentos verificados no Estado de São Paulo refletiram no surgimento de uma sociedade eminentemente urbano-industrial que adotou a divisão social do trabalho e mudou as formas de organização do processo produtivo e as maneiras de vida das famílias, proporcionando a inclusão feminina no mercado de trabalho com a consequente independência econômica da mulher, e, principalmente, possibilitando uma mudança mais rápida no pensamento crítico e reprovador que permeava a união consensual, o que contribuiu para que a sociedade a aceitasse mais facilmente. Com isso, os paulistas, com destaque às mulheres, puderam optar mais livremente pela união consensual.

Além disso, a presença de algumas nacionalidades no fluxo migratório para São Paulo – com destaque à italiana e espanhola – influenciou o desenho de família traçado

no Estado, conforme já abordado. A migração também foi responsável pela introdução maciça de população com padrões laborativos distintos e reprodutivos elevados, com possível impacto sobre os níveis de fecundidade locais (OLIVEIRA, 1985). O tipo de organização do trabalho amplamente adotado teria oferecido sustentação a estes padrões demográficos, premiando as famílias prolíficas (OLIVEIRA, 1985).

Oliveira relata que mais recentemente, na década de oitenta, muitas uniões consensuais iniciaram-se pela fuga de jovens para a constituição de novos lares (OLIVEIRA, 1985a). Eles saíam de suas casas para viver com a família do outro, ou para formar um domicílio autônomo sem o consentimento dos pais e sem oficializar a união (OLIVEIRA, 1985a). As fugas se justificavam pela instabilidade ou pela insuficiência econômica, bem como pela dinâmica interna da família de origem, muito controladora ou que apresentava relações conflituosas, precipitando ou antecipando a formação de novas uniões (OLIVEIRA, 1985a). Muitas dessas uniões eram oficializadas depois de um tempo de convivência, apesar de isso não ser uma regra (OLIVEIRA, 1985a).

No Estado de São Paulo, as uniões consensuais são peculiares porque são significativamente frequentes na população jovem. Esta parece uma mudança cultural iniciada pelos jovens. As hipóteses mais aventadas para esse fato são: busca por realizações pessoais antes da formalização do casamento, como a aquisição da casa própria; decisão de passar por uma experiência anterior ao casamento (união de caráter experimental), cujo comportamento está se disseminando, e associação a questões econômicas, já que a união informal requer menos gastos – não apenas com as luxuosas festas, mas com todas as formalidades que o casamento pressupõe. Contudo, há poucas décadas atrás, a decisão de não casar parecia significar mais uma posição ideológica. Em diversas situações, quem tomava essa decisão não raro era caracterizado como contrário às regras do sistema. Posteriormente, ela perdeu a conotação revolucionária que tinha.

Por derradeiro, a escolha do Estado de São Paulo como recorte espacial deste trabalho deriva de suas distintas particularidades. As hipóteses explicativas quando ele é contrastado com os demais estados do país são variadas, conforme demonstrado, como a sua própria história que envolve a intensa urbanização e industrialização, os fluxos migratórios, a burocratização e os efeitos da estrutura etária populacional. Além das citadas peculiaridades, a opção de estudar as uniões consensuais no Estado de São Paulo também resulta das facilidades que como advogada regularmente cadastrada na Ordem

dos Advogados do Brasil Secção de São Paulo eu teria para acessar o banco de dados do respectivo Tribunal de Justiça sobre os processos de união estável computados. Conforme se explica no quarto capítulo, eles envolvem segredo de justiça, o que faz com que sejam acessados apenas pelas partes e por advogados, que tem a obrigação de guardar o sigilo. Por isso seria praticamente impossível obter os dados desejados em outro Tribunal de Justiça a não ser o do Estado em que sou cadastrada na OAB.