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Capítulo 1 As mudanças na família ocidental contemporânea e a união consensual a

1.2. A união consensual no contexto latino-americano, brasileiro e paulista: um pouco de

1.2.2. As uniões consensuais no Brasil

As uniões consensuais no Brasil compartilham algumas características com as uniões livres latino-americanas, entretanto, as primeiras possuem algumas peculiaridades que merecem ser realçadas. Assim como na América Latina, viver como marido e mulher é um hábito frequente no Brasil desde o início da colonização,

principalmente nas regiões em que os costumes coloniais e pós-coloniais foram implantados de modo mais firme, como no Nordeste (LEVY, 2006). Todavia, esse hábito envolveu, por um lado, a escassez de mulheres brancas na região, e, por outro, a imigração predominantemente masculina proveniente de Portugal. Com o objetivo de solucionar o infortúnio, em 1550 os portugueses enviaram cartas ao país pedindo a vinda de órfãs e meretrizes, “pois residindo no Brasil portugueses de diferente condição social, os ricos se casariam com as primeiras e os outros com as segundas, sendo preferível à mancebia com índias, pretas e mulatas” (LEVY, 2006, p. 26/27). Apesar disso, em carta à majestade portuguesa, o Padre Manoel da Nóbrega narra outra situação, ressaltando que “nesta terra há um grande pecado, que é terem os homens quase todos suas negras por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por mulheres, segundo o costume da terra, que é terem muitas mulheres” (SILVA, 1984, p. 48). Esse fato reflete a mentalidade dos aventureiros europeus do século XVI que se lançaram ao mar para encontrar metais preciosos, povoando as terras americanas munidos da ideia de que “não há pecado abaixo da linha do Equador” ou “abaixo do Equador, tudo é permitido” (VAINFAS, 1997). Em outra fase da colonização, com o aumento da demanda pela mão-de-obra e a sua importação principalmente do continente africano, as escravas negras foram vistas de maneira diferente, pois se tornaram relevantes parceiras nas relações informais com os europeus (STOLCKE, 2006; SILVA, 1984). Esses relacionamentos inter-raciais geravam os mestiços, que apesar de derivarem de Portugal e da Espanha, duas nações consideradas “puras” e “castas”, eram desprezados, tornando-se inelegíveis para o sacerdócio e para o trabalho público honorário (STOLCKE, 2006).

A facilidade de se estabelecer uniões concubinárias no Brasil colonial é um fato que merece ser destacado, pois, para tanto, se pressupunha apenas a publicidade e a coabitação (LEVY, 2006). Fortemente influenciadas pelo Direito Canônico e pelas regras constantes de resoluções conciliares, as Ordenações Filipinas previram o concubinato ou a mancebia (RIVA, 2012). Eles consistiam na ligação de uma mulher, vivendo em fama de marido e mulher, com mesa e leito comuns, por tais sendo havidos, por toda a vizinhança e vila (Livro 4º, Título 46, §2º; Livro 5º, Título 26, §1º) e entre ajuntamento, simples cópula e mancebia (Livro 4º, Título 92) (RIVA, 2012). De acordo com as Ordenações, era preciso que a concubina possuísse todas as aparências de verdadeira esposa, vivendo na mesma casa e sendo geralmente aceita como a mulher fiel e dedicada ao companheiro (RIVA, 2012). Por outro lado, a análise dos dispositivos

do Código Filipino permite observar a preocupação de diferenciar o concubinato, união mais duradoura e geradora de filhos, do comércio carnal, caracterizado pela união esporádica com finalidade meramente fornicatória (RIVA, 2012). Apesar do tratamento descritivo dado pelo diploma legal vigente à época, é importante salientar que os concubinatos não eram aceitos pela elite brasileira e nem pela Igreja Católica, pois eram consideradas relações inferiores, de menosprezo, ilícitas e impuras, que não serviriam de base para constituir uma família (LEVY, 2006). Mesmo assim, essas uniões se tornaram usuais no Brasil colônia.

Em parte, essa habitualidade está associada ao pagamento dos altos impostos necessários ao cumprimento das exigências burocráticas feitas pela Igreja para a realização do casamento. Além do elevado preço do processo matrimonial, outros entraves burocráticos distanciavam os cônjuges mais pobres do casamento legal, como a sua lentidão e a exigência de apresentação de inúmeros documentos (SILVA, 1984). Silva acredita que a conjunção desses fatores é uma das causas indutoras e disseminadoras do grande número de concubinatos na época (SILVA, 1984). Outros autores, como Vainfas, também seguem essa linha de pensamento. Para o historiador, “a tendência para o concubinato não pode, portanto, ser encarada apenas como uma questão de libertinagem, mas também como a resultante de obstáculos econômicos à celebração do casamento” (VAINFAS, 1997, p. 74-75). Vainfas aponta o paradoxo que significaria essa atitude por parte da Igreja, que estaria então “dificultando a generalização dos casamentos na colônia, e conduzindo a maioria da população para o rumo pecaminoso do concubinato” (VAINFAS, 1997, p. 81).

Por outro lado, é preciso realçar que o crescimento, a durabilidade das uniões consensuais e a pressão da Igreja Católica para transformá-las em matrimônio cristão levaram à celebração dos casamentos ocultos (também denominados matrimônios de consciência, a furto ou a juras) no Brasil, cujo objetivo era legalizar as uniões de casais que viviam há algum tempo em concubinato (LEVY, 2006; SAMARA, 1984). Esses casamentos eram realizados em segredo, e, por isso, aconteciam fora da Igreja ou dentro

dela a portas fechadas, em um oratório particular ou na própria casa dos noivos11

(LEVY, 2006). Eles se casavam sem as formalidades habituais que os considerariam aptos ao casamento, como os banhos, isto é, os processos pré-nupciais cuja função era

11 Levy explica que em algumas vezes os casais se aproveitavam da presença de algum pároco, por

exemplo, ao final da missa, e com outras pessoas como testemunhas se postavam à sua frente, se declarando marido e mulher impondo ao padre o papel de testemunha forçada (LEVY, 2006, p. 32).

verificar os dados dos nubentes, como o nome, a filiação, o local de batismo e a freguesia onde haviam residido nos últimos seis meses (SILVEIRA, 2004). A ocultação dos matrimônios de consciência reside justamente na ausência dos banhos, que deveriam ser públicos para evitar que as pessoas se casassem quando entre elas existisse algum tipo de impedimento canônico (SILVEIRA, 2004). Considerando que para a Igreja os ministros do matrimônio eram os próprios contraentes, a população tinha esses casamentos como válidos (LEVY, 2006). Eles eram registrados em livros específicos e acredita-se que foram bem poucos os registros dessa natureza no Brasil (LEVY, 2006).

A compreensão do termo casamento oculto está associada à justificativa dada pelos nubentes. Eles omitiam um segredo que não deveria ser revelado: o fato de serem todos concubinos há anos. Contudo, os casais decidiam pelo casamento para remediar possíveis transgressões morais e religiosas representadas por viver dessa maneira, pois se acreditava que só o matrimônio cristão poderia lhes salvar de tantos males. Os motivos declarados pelos noivos à sua realização eram diversos: ausência de recursos; impedimento cultus disparitas (quando noivo e noiva possuíam religiões diferentes, o que levaria a impedimentos); razões morais ou religiosas; presença de doenças ou perigo de vida e desejo de legitimar os filhos (SILVEIRA, 2004). Contudo, Silveira observa que as razões mais frequentes suscitadas pelos indivíduos que recorriam ao casamento oculto foram o medo da punição divina (arrependidos dos anos de fornicação, os católicos temiam comprometer as salvação de suas almas) e o desencargo da consciência (SILVEIRA, 2004).

No Brasil imperial as uniões consensuais multiplicaram-se de tal modo que em algumas regiões elas se tornaram o modelo de configuração familiar predominante da população, corroborando a existência de outras formas de organização e de arranjos familiares simultâneos às relações regidas pelas normas do casamento católico (SILVA, 2010). Apesar disso, durante o referido período, a Igreja impunha o casamento através de um discurso sobre a moral conjugal e a indissolubilidade do vínculo (SILVA, 2010). Na época, o matrimônio cristão era uma necessidade da elite dirigente, sobretudo para assegurar seus direitos patrimoniais (SILVA, 2010). Contudo, considerável parcela da população, principalmente a com poucos recursos financeiros, afrontava as normas impostas pela Igreja e mantinha seus relacionamentos à margem do casamento (SILVA, 2010).

Todavia, a partir da segunda metade do século XIX, o Estado Imperial tentou adequar a população aos padrões culturais europeus (SILVA, 2010). Com isso, a família

se tornou o centro das preocupações das autoridades eclesiásticas e civis (SILVA, 2010). Porém, havia as dificuldades em termos de regulação das uniões celebradas pelas minorias não católicas, provenientes da legislação vigente e do incremento da imigração protestante incentivada pelo próprio governo (SANTIROCCHI, 2012). Essas dificuldades foram solucionadas pela promulgação da lei nº. 1.144 de 1861, que conferiu efeitos civis aos casamentos religiosos realizados pelos não católicos, celebrados segundo o ritual religioso professado pelos nubentes (SILVA, 2010). Eles produziam todos os efeitos civis que decorriam do matrimônio contraído na forma do Concílio de Trento, desde que fossem celebrados por meio de escritura pública, lavrada por oficial do registro civil, assinada pelos contraentes e por pelo menos duas testemunhas, ambas homens (SANTIROCCHI, 2012). O casamento celebrado dessa maneira seria indissolúvel, salvo o caso de nulidade (SANTIROCCHI, 2012). Posteriormente, a lei nº. 1.144 foi regulamentada pelo decreto nº. 3.069 de 1863, que estabeleceu as normas básicas referentes ao registro dos nascimentos, casamentos e óbitos dos não católicos (SILVA, 2010). Em 1870, o Estado Imperial instituiu o Registro Civil através da lei nº. 1829, obrigando a Igreja a enviar as informações registradas nos nascimentos, casamentos e óbitos às autoridades civis (SILVA, 2010). Apesar da separação entre Igreja e Estado, novamente ela não conseguiu controlar ou eliminar as uniões ilegítimas, entretanto resistiu à laicização das relações maritais, já que o casamento é considerado um sacramento - e, portanto, o vínculo é sagrado-, de modo que para defendê-lo, pressupunha-se justamente o combate ao concubinato (SANTIROCCHI, 2012; SILVA, 2010).

No Brasil República, as uniões consensuais ou concubinárias permaneciam como sinônimo de uma relação inferior, de menosprezo (LEVY, 2006). Em que pese esse fato, elas eram tão comuns no Nordeste que há cerca de 150 a 200 anos atrás, na Bahia, “a família baseada no casamento formal era a exceção e não a regra” (THERBORN, 2006, p. 185). Essas relações eram habituais principalmente entre brancos e negras, de modo que só eram objeto de falatório se o noivo fosse pessoa de posse (LEVY, 2006). Todavia, o reconhecimento dos filhos havidos delas era feito judicialmente com o objetivo de se evitar escândalos e a dissolução de costumes (LEVY, 2006).

Na primeira metade do século XIX, destaca-se uma substancial tendência de formação de uniões livres em detrimento da união formal nos grupos mais empobrecidos da sociedade. Partindo-se do raciocínio de que o casamento tinha a

finalidade estratégica de propagar as fortunas e os privilégios adquiridos, ele não possuía função alguma à população mais pobre (SAMARA, 1990). Apesar disso, pode- se argumentar que a explicação para optar pela união livre ao invés do casamento está associada não somente ao fator econômico, mas também cultural (AREND, 2001). Nesse caso, a escolha decorreria de um somatório de motivos, como os obstáculos à sobrevivência, a ausência de propriedades e a instabilidade econômica somada a um antigo costume e as dificuldades de lidar com referências institucionais (AREND, 2001). Diferentemente do que acontecia em outros períodos da história brasileira, o viver amasiado não seria apenas uma circunstância de vida, mas uma opção dentro de um universo cultural (AREND, 2001). Porém, a escolha pelo concubinato por parte da elite e das camadas médias, não era socialmente aceita, pois mesmo que não houvesse impedimento legal à oficialização da união, os indivíduos não viviam amasiados devido à pressão familiar (AREND, 2001). Em alguns casos, mesmo que a família soubesse do concubinato, não aceitava o casamento, transformando as amásias e sua prole em parentes de segunda classe (AREND, 2001).

Na época analisada, além da publicidade e da coabitação necessárias à sua configuração no período colonial, o concubinato pressupunha uma relação duradoura e notória capaz de comprovar os possíveis direitos dela provenientes (TORRES- LONDOÑO, 1999). Presumia-se a vida em comum, com aparência de marido e mulher, apesar dela não necessariamente ter que se dar sob o mesmo teto (TORRES- LONDOÑO, 1999).

Outro fato que chama a atenção quando se analisam as uniões consensuais no Brasil República é a grande mudança na maneira pela qual elas passaram a ser vistas. Inicialmente reprovadas e marginalizadas pela sociedade, elas foram paulatinamente reconhecidas e tuteladas pelo Estado, sobretudo nas últimas décadas do século XX, posteriormente às profundas alterações dos costumes e das normas, conforme se analisará na quarta seção deste trabalho. Apesar disso, ainda predomina no Brasil a “tradição de ilegalidade” constatada desde o período colonial. A especificidade do caso brasileiro está no fato de que ela envolve não apenas a população menos favorecida economicamente, mas as pessoas separadas judicialmente que, até o advento da Lei do Divórcio (lei nº. 6.515/77) não tinham outra opção para se unirem novamente (MARCONDES, 2008; BERQUÓ, 1998; OLIVEIRA, 1996; GREENE e RAO, 1992; QUINTEIRO, 1990). A partir da promulgação desta e de outras leis, as uniões consensuais deixaram de ser consideradas ilegítimas e aumentaram expressivamente, se

tornando uma importante opção de conjugalidade aos jovens e aos indivíduos que pertencem a segmentos médios, intelectualizados, de grandes centros urbanos, representando um casamento experimental ou uma discordância ao cumprimento das normas sociais tidas como mais tradicionais (MARCONDES, 2008).