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A POSIÇÃO ESQUIZO-PARANÓIDE E SUAS REPERCUSSÕES NO AGIR DOS ASSASSINOS EM SÉRIE

3.3. As vítimas-objeto e algumas questões sobre a psicopatologia do ódio

No tópico 3.2 destacamos a posição de Klein (1957) quanto ao papel do ódio e suas relações com a inveja e a voracidade. Percebemos como a inveja se torna uma fonte primitiva de ódio e como este afeto direcionado ao objeto invejado se transforma em medo de seu potencial destrutivo, derivado tanto dos mecanismos projetivos, como das experiências reais de trauma25. Trazemos agora ao leitor, algumas importantes questões discutidas por Kernberg (1995), que complementam estes pensamentos inicialmente expostos e mais diretamente nos faz pensar sobre o papel das vítimas-objeto no psiquismo dos assassinos seriais e na expressão de seus comportamentos destrutivos diante destas.

Em seus estudos sobre a psicopatologia do ódio, Kernberg (1995) o focaliza como um afeto que se põe no cerne dos estados patológicos de personalidade, em especial nos quadros de perversões e psicoses. Configura o ódio como derivado da agressividade (rage). Em torno deste afeto primário, a pulsão de agressão se agruparia, segundo o autor.

Em casos patológicos graves, o ódio surge como um afeto nas relações objetais. Por isso, abrimos esta breve discussão, no que concerne ao papel do ódio e suas vicissitudes presentes no psiquismo e comportamentos dos assassinos seriais diante de suas vítimas. Entendemos que as vítimas desempenham uma função no psiquismo dos homicidas em série, funcionando enquanto reedições dos objetos primários, por isso o uso do termo vítimas-

objeto. Assim, descreve o autor:

Na psicopatologia grave, o ódio pode evoluir para uma dominação esmagadora dirigida contra o self e contra os outros. Tratando-se de um afeto complexo que pode transformar-se no mais importante componente da pulsão agressiva, sobrepujando outros afetos agressivos universalmente disseminados como a inveja ou a aversão [disgust]. (KERNBERG, 1995, p.24).

25 Salientamos, ainda, que outras contribuições kleinianas sobre o tema do ódio e fantasias sádicas são enfocadas

A partir das observações clínicas em que o ódio se faz presente na transferência, Kernberg propõe pensarmos a agressividade enquanto um estado afetivo básico que ativa reações agressivas na transferência. Desta forma, nos guia até a concepção de que este afeto possui uma função desenvolvimental: a de eliminar um obstáculo para atingir uma gratificação. O bebê sinaliza ao seu cuidador, por meio de um estado agressivo, que aquele precisa contribuir para eliminar o fator estressor – uma espécie de apelo pelo retorno a um estado de gratificação.

Chegamos assim ao ódio (hatred), o qual se constitui por um afeto agressivo complexo, com um espectro amplo que envolve elementos cognitivos, crônicos e estáveis, observa o autor – o que estabelece sua diferenciação do quadro agudo da agressividade. Por isso Kernberg (1995, p. 26) ressalta:

O objetivo primeiro do indivíduo consumido pelo ódio é destruir o objeto, um objeto esse específico da fantasia inconsciente e os derivativos conscientes desse objeto; o objeto é, basicamente, não só necessário como desejado, sendo sua destruição igualmente necessária e desejada.

O ódio, ao consumir o indivíduo, dá margem à configuração de quadros psicopatológicos crônicos em que a destruição do objeto se expressa como uma necessidade, as motivações inconscientes intensificam este afeto. Os casos de assassinato e desvalorização do objeto são salientados por Kernberg como parte dessas formas extremadas do ódio – uma demanda pela eliminação do objeto se processa e este movimento finda por generalizar-se para todas as relações objetais, pois ativam a revivência de relações objetais persecutórias e más.

As vítimas-objeto entram no foco dessa discussão na medida em que os homicidas seriais apresentam esta tendência à generalização, em que os objetos são todos percebidos como persecutórios e aterrorizantes. A necessidade de destruição simbólica e efetiva destes objetos, leva aos comportamentos repetitivos – homicídios em série, de um mesmo perfil de vítimas, em que as condutas de sadismo se sobressaem.

Por este motivo as relações sádicas são parte das expressões do ódio contra os objetos, em que o desejo de dominá-lo e fazê-lo sofrer se interpõe ao de sua destruição. Kernberg (1995) aponta que na transferência, se expressa uma tentativa de procurar um estado do self primitivo totalmente bom, o que, em contrapartida, aciona um processo de destruição difusa,

ao qual o analista é “convocado” a participar, como vítima, por meio do uso maciço de mecanismos projetivos por parte do paciente.

Da mesma forma, compreendemos que o assassino em série estabelece esta relação com as vítimas, as convocando a assumirem o papel de objetos e por meio do uso da identificação projetiva, as sidera, ao ponto de deixá-las susceptíveis e assim, dar margem às suas fantasias de humilhação e destruição.

No que concerne às relações objetais e suas representações na transferência, Kernberg (1995) faz uma importante observação, que destaca exatamente a posição em que o outro é colocado nesta relação, ou seja, a posição de vítima:

Basicamente o paciente representa uma relação objetal entre o perseguidor e sua vítima, alternando estes papéis em suas identificações, enquanto projeta o papel recíproco em direção ao terapeuta. Nos casos mais patológicos, é como se a única alternativa de ser vitimizado seja através de tornar-se um tirano, sendo que as repetidas atitudes de ódio e sadismo apareceriam como se fossem as únicas formas de sobrevivência e significação (...) (p.29).

Em situações de fixações ao trauma, também se observa o estabelecimento de relações objetais odiosas e nestes casos, o autor exemplifica com casos de crianças que são vítimas de espancamentos ou pessoas que foram submetidas a maus-tratos. As fixações nos traumas são elementos presentes nas histórias dos assassinos em série e parecem se repetir em suas condutas criminosas. Tais fixações podem ser percebidas tanto no caso de Marcelo, como no de Francisco. A fixação no trauma ocorre pela relação traumática desenvolvida com o objeto, por ser necessitado, porém, concomitantemente experienciado como mau e principalmente responsabilizado pela destruição do objeto idealmente bom.

O autor chama atenção para as “implicações dolorosas, impotentes e paralisadoras” (p.31) do objeto perseguidor. Assim o ódio é transformado em identificação com este objeto “cruel, onipotente e destrutivo” (p. 31), como forma de revanche contra ele. Vejamos suas colocações a respeito:

Os pacientes com tal motivação, sadicamente, maltratam os outros, porque eles próprios tiveram a experiência de serem maltratados, igualmente por objetos sádicos; inconscientemente, eles tornam-se seus próprios objetos persecutórios, ao atacarem sadicamente suas vítimas. Eles não podem escapar da contingência de serem vítimas e executores ao mesmo tempo. Como vitimizadores, não podem viver sem sua vítima – o self projetado, despojado e perseguido; como vítimas, eles permanecem ligados internamente a seus perseguidores e, algumas vezes, também externamente, quando apresentam

comportamentos que chocam violentamente o observador. (KERNBERG, 1995, p. 31).

Essa descrição de Kernberg parece retratar os casos apresentados nesta Tese de uma forma bastante interessante, na medida em que salienta as duas faces da relação objetal constituída por estes indivíduos, em que os processos de cisão provocados pelos mecanismos projetivos, nos mostra a face das fantasias em que estes ocupam a posição de vítimas, atacadas pelos objetos persecutórios e para deles se defender e se “vingar”, se tornam, eles próprios, perseguidores, vitimizadores.

Nestes termos, o desejo de humilhar a vítima se põe em movimento, no sentido de mais uma manifestação do ódio, no objetivo de apaziguar as demandas do superego arcaico. E exatamente sobre estas demandas, foco deste estudo, Kernberg aponta:

(...) os pacientes mais difíceis são aqueles nos quais a intensa agressão caminha de mãos dadas com a psicopatologia profunda do funcionamento do superego, de tal forma que as restrições internas contra o perigoso estabelecimento da agressão estão ausentes, e o terapeuta pode realisticamente temer a liberação de forças destrutivas, extrapolando a capacidade que o tratamento tem para contê-las. Isso se aplica a alguns pacientes que apresentam a síndrome do narcisismo maligno (...). (KERNBERG, 1995, p.35).

A força do superego arcaico e sua atuação nos comportamentos dirigidos às vítimas, marca não apenas o sadismo presente nos atos dos homicidas em série, mas as características do movimento da compulsão à repetição, em que novas vítimas-objeto são destruídas, de modo que não há barreiras de contenção aos impulsos destrutivos – o que se demonstra pela escalada do sadismo e destrutividade a cada nova vítima. O caso de Marcelo retrata bem esta questão, em que o estupro e espancamento de suas vítimas deram lugar ao estrangulamento e ao vampirismo. Já no caso de Francisco, as condutas sexuais, se tornaram ainda mais violentas até a prática dos dois homicídios, em que o escavamento e esquartejamento dos corpos foram executados.

O que se observa nestes casos, é o prazer contido nas relações odiosas em que as fantasias inconscientes são dispostas na realidade externa. O ódio como uma realidade psíquica, passa a ser expresso na realidade externa, por meio da passagem ao ato em que a identificação projetiva está maciçamente presente e a destruição ao objeto edifica seus contornos. Por este motivo, os comportamentos destrutivos possuem um potencial erógeno,

em que infligir dor ao outro conduz à excitação - configuração do espectro prazeroso do ódio sádico. Por isso: “A ameaça fantasiada de aniquilamento, de destruição física e mental, é a fonte imediata de tentativas de repelir tanto a influência do objeto como a percepção do self sob o impacto do ódio”. (KERNBERG, 1995, p.218).

Por esta via, o ódio se constitui como um estado afetivo derivado do prazer sádico de destruição, desprezo, crueldade e humilhação contra o objeto. Este objeto amado, do qual se esperava amor e acolhimento, diante da frustração se torna odiado e persecutório. O ódio advém da incapacidade de lidar com a frustração e se nutre da necessidade de aniquilamento. A compulsão à repetição se instaura e:

(...) o ódio primitivo em um nível intenso, contínuo, cria uma reação circular que não apenas perpetua, mas patologicamente, aumenta o ódio propriamente dito. Através de mecanismos projetivos, particularmente a identificação projetiva, a agressividade diante do objeto frustrante provoca a distorção do objeto, sendo então a frustração agora interpretada como um ataque deliberado. Este sentimento de ser atacado por um objeto anteriormente necessitado e amado é a experiência mais primitiva de amor traído e produz potentes ressonâncias ao longo de toda a sequência de estágios pré-edípicos e edípicos de desenvolvimento. (KERNBERG, 1995, p.219).

As relações objetais são internalizadas de modo distorcido, como salienta o autor, uma vez que o indivíduo vive uma experiência de um self agressivo e enraivecido e que se sente depreciado diante do objeto persecutório. O ódio passa a destruir as relações objetais, pela intensificação dos mecanismos de cisão, em que se observa a fragmentação e um mundo dividido em objetos bons e maus. As vítimas-objeto são postas neste jogo em que perseguidor e perseguido são faces de uma mesma situação, em que elas, ao reeditar os objetos internalizados de seus perpetradores, são aniquiladas, repetidas vezes.

CAPÍTULO 4