• Nenhum resultado encontrado

A POSIÇÃO ESQUIZO-PARANÓIDE E SUAS REPERCUSSÕES NO AGIR DOS ASSASSINOS EM SÉRIE

3.2. Sobre o narcisismo destrutivo da voracidade à sideração: Klein, a inveja e a voracidade

3.2.3. Rosenfeld e Meltzer: narcisismo destrutivo, terror, tirania e sideração

Em seus escritos sobre Uma abordagem clínica para a teoria psicanalítica das

pulsões de vida e de morte: uma investigação dos aspectos agressivos do narcisismo,

Rosenfeld (1971a), destaca acompanhando o pensamento freudiano, que a pulsão de morte apesar de nunca se manifestar em sua forma original, terá a tendência a se apresentar a partir de um processo destrutivo dirigida contra o self e os objetos em situações típicas narcísicas graves.

Por este motivo, neste artigo, o autor passa ao estudo dos quadros que denomina como narcisismo destrutivo, entendendo-os sob a ótica freudiana da questão da fusão e desfusão das pulsões de vida e morte. Além de todo o estudo freudiano sobre as questões do narcisismo, e principalmente após a conexão das idéias referentes aos estados narcísicos de prazer e ódio, especialmente quando o sentimento de ódio volta-se contra o objeto externo na intenção de sua destruição, em suas estreitas relações com a pulsão de morte.

Rosenfeld destaca ainda a importância dos achados de Abraham (1919) sobre os pacientes que apresentavam posturas de um narcisismo mais pronunciado e de como as relações transferenciais com estes pacientes perpassavam pelo viés da depreciação e desvalorização do analista. A conexão clínica e teórica nos diz Rosenfeld, entre narcisismo e agressão, teria sido mérito destas primeiras observações.

Sobre Reich (1933), salienta que este retratou o paciente narcísico como aquele movido por uma atitude de superioridade e imbuído por comportamentos de provocação e sentimentos de inveja e destrutividade.

Porém, é mesmo nos conceitos kleinianos que o autor mais se inspira neste artigo para tratar dos temas referentes ao narcisismo destrutivo. Sabemos que a cisão do objeto idealizado diante do objeto mau é uma característica do desenvolvimento inicial, no objetivo da manutenção de um estado desfusional entre as pulsões de vida e morte. Em presença deste movimento, a teoria kleiniana nos aponta que o passo seguinte será o acontecimento da cisão entre as partes boas e más do self.

Durante a posição esquizo-paranóide, salienta Rosenfeld, os mais complexos estados de desfusão pulsional podem surgir, e continua: “Podemos encontrar esses estados em pacientes que nunca ultrapassaram totalmente esta fase inicial de desenvolvimento, ou que regrediram a ela” (1971a, p.248). Assim, a inveja primitiva se constitui como um derivado

direto da pulsão de morte. Não só contra a mãe nutridora, mas também inveja daquilo que a criança gostaria de possuir.

Vale salientar, entretanto, que a cisão é um mecanismo de defesa normal e saudável, constitutivo do inicio do desenvolvimento e que visa à proteção do self e do próprio objeto dos perigos da aniquilação, por meio dos impulsos destrutivos advindos da pulsão de morte.

No entanto, no caso dos quadros narcísicos, o papel da desfusão assume a ação central, a relação objetal onipotente encontra-se envolta na força dos impulsos destrutivos invejosos - casos que Rosenfeld denomina de fusão patológica:

(...) para os processos em que na mistura de impulsos libidinais e destrutivos, o poder dos impulsos destrutivos fica muito reforçado, enquanto na fusão normal a energia destrutiva fica mitigada ou neutralizada (1971a, p.249).

Ao analisar em separado os aspectos libidinais e agressivos, salienta que nos primeiros, a supervalorização do self, baseado no mecanismo da idealização, sustenta as identificações projetivas e introjetivas de tom onipotentes como os objetos bons e suas qualidades. O narcisista tem a sensação que o que emana de bom e valioso, seja advindo do mundo externo ou dos objetos externos que a ele pertence ou é onipotentemente por ele controlado.

Já do ponto de vista destrutivo, há também a influência da idealização do self, no entanto, de suas partes onipotentes e destrutivas, uma vez que elas permanecem excindidas e distantes dos relacionamentos com o mundo externo e contra qualquer relação de objeto libidinal positiva, ou mesmo qualquer parte libidinal do self – o que leva, segundo Rosenfeld, a desvalorização do outro, uma verdadeira indiferença em relação aos objetos e ao mundo – um impeditivo se forma em termos de relações objetais.

Os casos de narcisismo destrutivo são marcados por situações em que gradualmente, as partes libidinais do self são aniquiladas restando apenas as destrutivas, pois os elementos que tentam as relações de objeto, nos diz Rosenfeld, são destruídos:

Parece que estes pacientes lidaram com a luta entre impulsos destrutivos e libidinais tentando livrar-se de sua preocupação e amor por seus objetos, matando seu self dependente e amoroso e identificando-se quase que inteiramente com a parte narcísica destrutiva do self, que lhes fornece uma sensação de superioridade e autoadmiração. (1971a, p.251).

O conceito de gangue ou quadrilha surge a este ponto de seu texto e nos pareceu muito pertinente a nossa pesquisa, pois Rosenfeld o aponta, demonstrando que o narcisismo destrutivo, parece tão organizado em alguns pacientes que simula a situação de uma organização criminosa, em que a existência de um líder garante o controle de todos os demais membros e para que se apóiem mutuamente, assim, o trabalho é mantido de forma destrutiva e eficiente.

Figueiredo (2009), em seus escritos As diversas faces do cuidar, no capítulo em que faz considerações sobre os destinos da crueldade como elemento de destruição e transformação de subjetividades a partir dos elementos presentes no filme Cidade de Deus, nos mostra como os impulsos destrutivos são capazes de exercer certa atração sobre as personagens do filme – conectando estas situações ao conceito de gangue de Rosenfeld.

A certa altura de seu texto, o autor nos traz a imagem do labirinto, um lugar marcado pela falta de saídas e com ela nos apresenta ao Minotauro – Nêmesis – figura mitológica, guardião do labirinto, que ilustra o anjo da vingança, em outras palavras, o objeto interno persecutório. Labirinto – favela - em que Zé Pequeno, personagem central se coloca como líder da gangue, aquele em que pelo pavor e pelo poder dos impulsos destrutivos tem:

(...) como resposta „afirmativa‟ ao aniquilamento que a consagração ao mal emerge como a única afirmação possível, e é neste contexto que devemos entender a barganha fáustica que se consuma no beco de Exu de onde Dadinho, virado em Zé Pequeno, parte para a conquista do poder total e para o extermínio em massa. O que se vê então é o mal em dosagem concentrada (o mal em miniatura) em oposição complementar às fantasias de onipotência: desde criança, ficamos sabendo, Dadinho queria ser „o dono da Cidade de Deus‟. (FIGUEIREDO, 2009, p.174).

Em acordo com tais idéias e com o mesmo conceito de gangue de Rosenfeld, Meltzer, em seu trabalho, Terror, perseguição, pavor – uma dissecação das ansiedades paranóides

(1967), baseado nos trabalhos de Klein, e em suas experiências clínicas, nos traz a importância da identificação projetiva e dos processos de cisão, no campo das relações objetais. Haveria destarte, segundo ele, uma proteção ilusória sentida pelo indivíduo narcisista contra o terror, a perseguição e o pavor provocados pelas ansiedades persecutórias, advindas das excisões das partes más do self e do aprisionamento das partes sadias. Esta onisciência da parte destrutiva levaria à tirania, o que provocaria pavor das partes sadias do self, de perder a proteção contra o terror, artifício em verdade ilusório – uma vez que o comportamento do tirano é semelhante à de um perseguidor.

No artigo intitulado Tirania (1968), Meltzer nos revela ter se deparado, na clínica, com pacientes que apresentavam conflito entre a confiança e a dependência dos bons objetos primários e a confluência com os ciúmes possessivos em relação a estes mesmos objetos. Naqueles observou que as fantasias sobre castigos e excisão de partes más do self (extremamente cindidas), eram projetadas no mundo externo, o que de imediato nos leva aos efeitos da sideração.

Usando como analogia as situações de guerra, destaca a tirania infligida ao outro, como um prazer na crueldade. Neste sentido, a tirania intenciona infligir ao outro a desonra, a humilhação e o desprazer. Sobre as situações de guerra, citando Engels (1850) em seu trabalho The Peasant War in Germany, nos diz:

Muitos prisioneiros eram executados da maneira mais cruel possível, os outros eram mandados para casa depois de terem tido o nariz e as orelhas decepados... os camponeses eram atacados e dispersados por Zapolya; o próprio Dosa foi feito prisioneiro, assado num trono de brasa e comido vivo por seus próprios homens, cuja vida só era preservada sob esta condição. (ENGELS apud MELTZER, 1968, p.164).

Nestes escritos, Meltzer discorre sobre a análise de um de seus pacientes psicóticos, que expressava em seus desenhos, fantasias de corpos femininos mutilados. Estas fantasias destrutivas transformavam o mundo interno deste paciente, segundo o autor, num verdadeiro campo de extermínio.

Ao roubar a vitalidade dos objetos e diante da incapacidade de reparar tal fantasia de aniquilamento, se dá a submissão à tirania, que consiste na incapacidade de estabelecer vínculos com o objeto bom. Desta forma, surge uma “relação viciosa com a parte má do eu” (MELTZER, 1968, p.169).

A partir de tal relação viciosa, como destaca o autor, se estabelece o terror, o qual, projetado, paralisa e sidera as vítimas dos assassinos seriais. A tirania das partes más do self impede a configuração da posição depressiva e fortalece as organizações narcísicas de personalidade.

Voltando a Rosenfeld, esta organização narcísica, na pretensão de manter seu status

quo, imprime ao sujeito o enfraquecimento de suas próprias defesas, nestes termos, das partes

boas de seu self, aspecto que fortalece as destrutivas, e manteria o narcisismo. O objetivo, nestes casos, seria o de sustentar a idealização e o poder superior do narcisismo destrutivo, por isso, a ênfase do autor na especificidade desta situação:

Em muitos destes pacientes, os impulsos destrutivos estão ligados a perversões. Nessa situação, a aparente fusão das pulsões não leva a um enfraquecimento do poder das pulsões destrutivas; ao contrário, o poder, e a violência ficam muito aumentados pela erotização da pulsão agressiva. Sinto que é confuso acompanhar Freud na discussão das perversões como fusão entre as pulsões de vida e de morte, porque nestas instâncias a parte destrutiva do self tem o controle sobre todos os aspectos libidinais da personalidade do paciente e, portanto, é capaz de distorcê-los. (ROSENFELD, 1971a, p.253).

Obviamente não se pode esquecer, apesar desta importante observação, que este quadro narcísico estará ligado de forma mais consistente às organizações psicóticas, nestas, como bem examina Rosenfeld, prevalece o domínio de partes do self onipotentes ou mesmo oniscientes, extremamente cruéis, que chegam a criar a fantasia de que dentro do objeto delirante é possível viver uma realidade plena de ausência de dor e irrestrita quanto às expressões do sadismo. O que se observa é uma auto-suficiência narcísica e a absoluta restrição a qualquer tipo de relação objetal.

De tal sorte que mesmo as ações dos impulsos destrutivos delirantes e extremamente cruéis podem transparecer em atos disfarçados como benevolentes ou salvadores, como salienta o autor. O que se processa, nestes termos, é transformar as partes sadias do self, em partes destrutivas, as aprisionando no mundo delirante e onipotente. Não raro iremos encontrar relatos de assassinos seriais que “justificam” seus atos criminosos ao afirmarem, por exemplo, que estão limpando o mundo de pessoas que seriam danosas a este ou as sacrificando por um bem maior. A questão do sacrifício das vítimas é algo presente na narrativa de Marcelo e também de Francisco, tema que pretendemos aprofundar no momento devido.

Para Rosenfeld, este não seria um estado desfusional, mas uma fusão patológica, o estado narcísico gera uma situação de retraimento e as partes sadias do self, se tornam dominadas pelas pulsões destrutivas e por todo processo de onipotência, poder este cada vez mais crescente.

Assim, estas partes destrutivas onipotentes do self se tornam separadas e controlam a organização patológica – a onipotência observa Rosenfeld: “(...) tem efeito hipnótico sobre todo o self (...)” (1971a, p.254). Interessante notar (obviamente guardando-se as devidas diferenças entre os sonhos e as passagens ao ato) que, não raro, nos relatos dos sonhos e fantasias em alguns dos pacientes de Rosenfeld há descrições de assassinatos cruéis e ataques violentos e destrutividade ampla. E ainda, mais uma vez chamamos atenção para a proximidade com o conceito do efeito hipnótico utilizado por Rosenfeld daquilo que

poderíamos aproximar com a capacidade de sideração dos assassinos em série, entrevistados nesta pesquisa.

No constante conflito existente entre as partes psicóticas e as partes sadias da personalidade, o autor enfatiza que as partes psicóticas narcísicas mantêm as tentativas de “dominar, enredar e paralisar” (ROSENFELD, 1971b, p.136) as partes mais sadias do self. Os processos de integração do ego precisarão exatamente que estas partes possam adquirir algum espaço no psiquismo, de modo a operar um certo tipo de saída da paralisia. Mesmo porque, em sua opinião, em última instância, a identificação projetiva em termos de relação transferencial, no caso de pacientes psicóticos, sempre se constitui num risco, uma vez que sua forma de relação objetal é arcaica e seu destino será o de buscar o controle do corpo e da mente do analista.

Quando Luís Cláudio Figueiredo nos incentivou a falar sobre a sideração neste estudo ainda não tínhamos muito claro como poderíamos articular de modo conceitual a questão, pensamos que talvez o caminho pudesse surgir, com as idéias de Klein e Rosenfeld sobre a identificação projetiva. Então, passamos a pensar o conceito como uma espécie de capacidade hipnótica de domínio sobre a vítima que tem o assassino serial a ponto de convencê-la a acompanhá-los a locais inseguros para depois torturá-las e matá-las. Vejamos o que nos diz Figueiredo sobre a capacidade que tem alguns pacientes diante do analista (2008, p.29):

O que importa neste momento é recolher a idéia de que, ao tratar um caso de dissociação patológica, o analista deve ser capaz de deixar-se afetar pelas partes cindidas e dissociadas do paciente de um modo muito intenso, e isso significa em muitas circunstâncias abandonar-se ao fascínio quase hipnótico (ora excitante, ora sonífero, mas sempre da ordem do amortecimento e da invalidação de certas capacidades afetivas ou cognitivas) que algumas partes dissociadas exercem.

Obviamente que aqui Figueiredo retrata uma dissociação terapêutica, como enfoca Khan (1971), no entanto, gostaríamos de chamar atenção exatamente para esta capacidade que têm as partes dissociadas de exercer isto que o autor denomina de fascínio ou capacidade hipnótica e que no nosso estudo denominamos de sideração, no sentido que o próprio termo aponta. Pois sideração fala da capacidade de: “aniquilar, atonizar, atordoar, aturdir, estarrecer,

fulminar, paralisar”24. Traduz-se, pela disposição de impossibilitar que qualquer ação seja tomada. Medusa petrificava aqueles que olhassem diretamente nos seus olhos.

No breve artigo intitulado A cabeça da Medusa, Freud (1922) salienta: “A visão da cabeça da Medusa torna o espectador rígido de terror, transforma-o em pedra” (p.329). Ao “olhar” (ver, ouvir, falar) no sentido psicanalítico, para a psique de Marcelo ou Francisco, fica-se também petrificado, imobilizado pelo poder de suas sádicas fantasias.

A sideração, pude sentir durante alguns momentos das entrevistas ou mesmo antes de realizá-las, em que tanto Marcelo como Francisco exercem uma espécie de disposição de domínio hipnótico daquele que o ouve, diante do relato de seus feitos. Em alguns momentos, como expectadores paralisados de seus atos, ali permanecemos, subjugados, não por uma força “perversa”, mas pelo poder avassalador dos conteúdos que são excindidos. Assim também, aparentemente, permaneceram suas vítimas, pois no caso de Francisco de Assis Pereira – o Maníaco do Parque, por exemplo, as duas vítimas que dele escaparam relatam sensação próxima destas considerações que ora referendamos.

A sideração nos parece traduzir-se pela questão da excisão das partes más do self e de como este processo atinge o outro de modo a gerar o que Rosenfeld denomina como esta tentativa de paralisar as partes sadias do psiquismo. Mesmo porque, em última análise, Rosenfeld acredita que a identificação projetiva é, essa tendência que o paciente apresenta, em análise, de repetidamente, excindir e projetar para dentro do analista todo conteúdo danoso.

Ao relatar o caso de um paciente que “força” sua entrada para o psiquismo de outras pessoas, Rosenfeld, ao nosso entender, descreve o contexto da sideração, que nos pareceu bem plausível de ser pensada como esta força de penetração no objeto. Quando Marcelo e Francisco, por exemplo, sideravam suas vítimas, elas eram enredadas, paralisadas e por fim aniquiladas, sem restrições, dando-lhes a segurança de que o objeto persecutório ou quiçá, como já referimos, as partes más de seus próprios selfs (reeditados naquelas figuras) não lhes poderia causar danos. O ato do domínio é, sobretudo, o exercício que comanda a sideração, no objetivo final do aniquilamento.

Percebe-se, enfim, que a natureza das ansiedades, defesas e especialmente as relações objetais que tratamos neste estudo, as quais se configuram numa tamanha complexidade e envolta por mecanismos tão arcaicos e vivências tão narcísicas, se conjugam num corolário de impulsos destrutivos e de vivências de aniquilação, despedaçamento, voracidade e

desintegração e são de tal monta indissociáveis, que apenas a questão do ódio seja capaz de nos dar um caminho mais próximo para chegarmos à compreensão da significação do lugar das vítimas no psiquismo dos assassinos seriais. Por este motivo, será este o tema de nosso próximo tópico.