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O agir compulsivo dos assassinos seriais: algumas questões importantes sobre a compulsão à repetição, o overkill e a assinatura

O SUPEREGO ARCAICO E SEUS MODOS DE FUNCIONAMENTO

4.3. O agir compulsivo dos assassinos seriais: algumas questões importantes sobre a compulsão à repetição, o overkill e a assinatura

No predomínio das pulsões parciais no processo do desenvolvimento libidinal, mais facilmente o componente sádico, que prevalece no ato de domínio erótico do objeto, converte- se em pulsão de destruição. Tais vicissitudes do componente sádico da pulsão sexual lançam alguma luz sobre o agir compulsivo dos homicidas em série.

O traço de repetição compulsiva das fantasias é marcante nos comportamentos dos homicidas em série, que repetem, como num ritual, a atuação de fantasias sádicas de captura, sodomização e morte de suas vítimas. Esta característica também se inscreve em suas atitudes ritualísticas, auxiliando a constante reconstrução da fantasia aniquilatória. Os rituais se fazem presentes desde a escolha de um mesmo perfil de vítimas, até as práticas empregadas na tortura e morte daquelas.

Freud (1920) denominou de atualizações este mecanismo repetitivo, ou seja, a revivência de experiências passadas traumáticas na realidade atual. Assim, a descarga pulsional se faz pela via da passagem ao ato, que repete as experiências desprazerosas, em virtude da conexão com o fenômeno da compulsão à repetição. Tais experiências são então repetidas sob a pressão de uma compulsão.

Em As origens da transferência, Klein (1952) lança mão da hipótese de que são exatamente as influências e pressões exercidas pelas primeiras situações de ansiedade que constituem um dos fatores que fazem aflorar a compulsão à repetição. Diante de tal hipótese, compreende que apenas a partir da amenização das ansiedades persecutórias, a tendência à repetição pode ser abrandada.

Desta forma, a compulsão à repetição inscreve-se a partir das fantasias sádicas, compulsivamente direcionando estes indivíduos para a prática de novos crimes, que em sequência, se repetem. Portanto, o exercício do sadismo tende a uma escalada gradual de imposição de sofrimentos e humilhações às vítimas, neste sentido, os homicidas seriais desenvolvem “técnicas”, em seus modus operandi, que se tornam cada vez mais destrutivas.

A compulsão do assassino em série baseia-se, também na necessidade de proteger-se deste fantasma do objeto persecutório, de onde provém a prática das fantasias. A atuação destrutiva no meio externo se traduz pela impossibilidade da contenção pulsional, permeada por outra necessidade mais drástica, a de aniquilação do objeto. A partir desta necessidade, o sadismo e os impulsos destrutivos se estabelecem como marcantes na dinâmica psíquica destes indivíduos.

Em Princípios psicológicos da análise de crianças, Klein (1926) ressalta que sob o comando da compulsão à repetição, as fantasias infantis são traduzidas em ações no meio externo. Este, um mecanismo primitivo, sobrepõe a importância do princípio do prazer sobre o da realidade e demonstra a face sádica e cruel de tais fantasias.

Quanto à questão do sadismo, este foi descrito por Freud (1924, p. 204), no processo de projeção na realidade externa:

A libido tem a missão de tornar inócua a pulsão destruidora e a realiza desviando esta pulsão, em grande parte, para fora – e em breve, com o auxílio de um sistema orgânico especial, o aparelho muscular – no sentido de objetos do mundo externo. A pulsão é então chamada de pulsão destrutiva, pulsão de domínio ou vontade de poder. Uma parte da pulsão é colocada diretamente a serviço da função sexual, onde tem um papel importante a desempenhar. Esse é o sadismo propriamente dito.

Keppel (1997) revela que há algo mais que os assassinos em série pretendem além do homicídio. Há a intenção de infligir repetidas injúrias à vítima, de modo que o assassinato é apenas um ato incidental. O propósito do crime é verdadeiramente a imposição da sodomização extrema. Algo que está “para além do assassinato”. É este o conceito de

overkill. No início das práticas criminosas, o assassinato propriamente dito é o objetivo, com

o passar do tempo o mais importante são os atos sádicos, o assassinato passa a ser uma mera consequência da sodomização.

É este movimento que estabelece a crueldade, como elemento importante da sexualidade pré-genital, assim descrita por Freud (1905, p. 180):

A crueldade é perfeitamente natural no caráter infantil, já que a trava que faz a pulsão de dominação deter-se ante a dor do outro – a capacidade de se compadecer – tem um desenvolvimento relativamente tardio (...). Podemos supor que o impulso cruel provenha da pulsão de dominação e surja na vida sexual numa época em que os genitais ainda não assumiram o seu papel posterior.

Assim, o assassino em série atua suas fantasias, inclusive sexuais e põe em prática toda a capacidade de destruição, sodomização e uso do outro como objeto. As pulsões

parciais dominantes “tiranizam”, como revela Freud (1917), a economia libidinal. Não sendo

organizadas sob o primado da genitalidade, elas permanecem caoticamente “exigindo” plena satisfação. Por isso, o sadismo adquire posição de destaque, ganha espaço no íntimo de uma relação reificada – em afinidade com a destrutividade e o erotismo.

Os traços da sexualidade pré-genital marcam o campo sexual propriamente dito. A satisfação do assassino em série não está exatamente no ato sexual que comumente impõe às vítimas, mas no sofrimento imposto a elas nestes momentos.

Depois da captura, o homicida serial “arma o terreno” para a segunda parte do seu domínio sobre a vítima, ou seja, o momento da sodomização. As pulsões destrutivas atacam os objetos e são “atuadas”, mediante a ativação muscular e a partir da passagem ao ato violento e cruel imposto à vítima.

É exatamente esta perda de controle (ou descontrole) dos impulsos, outra das principais características desses quadros. A força pulsional é que comanda a ação homicida e há uma perda de controle do ato violento. A pulsão destrutiva, neste sentido, passa a servir à função sexual e constitui o sadismo propriamente dito. A destruição do objeto (das vítimas- objeto como as denominamos) é investida com uma carga erótica plena, objetivando

exclusivamente a satisfação pulsional. Após a satisfação, eles retomam sua máscara social para se desfazerem dela quando as pulsões ordenarem. Assim, Marcelo e Francisco mantinham certo controle dos impulsos nos intervalos entre os crimes.

A pulsão de domínio, pulsão parcial presente nos comportamentos sádicos pré-genitais é exercida e literalmente posta em prática pelo assassino em série nos rituais de sodomização de suas vítimas, num mecanismo de atuação da cota de agressividade, necessidade de domínio e poder exercidas por esses indivíduos no contexto da relação que estabelece com elas.

Ao pensarmos sobre a organização psíquica dos assassinos seriais, falamos de uma ruptura que marca um afastamento da realidade. Pontuamos um afastamento da ordem do deslocamento, uma maneira “astuta”, como bem definiu Freud (1917), de lidar com a realidade, sem que esta construa barreiras de contenção pulsional, por suas intrincadas relações com o mundo das fantasias.

Diante de tais questões, a “função” do objeto fetiche, também como proteção contra o aniquilamento, parece explicar outro comportamento comum aos homicidas seriais: a captura de objetos da cena do crime. De um modo geral, ao matar suas vítimas, os assassinos seriais apossam-se de objetos que lhes pertenciam ou partes de seus corpos. Estes são denominados:

troféus ou souvenirs. Estes “objetos” são guardados em locais seguros, deixando seus

esconderijos nos momentos em que os assassinos em série necessitam reviver as gratificações conquistadas nos momentos dos crimes.

Deste modo, podemos perceber que estes objetos passam a ser revestidos de uma importância erótica, permitindo a revivência da satisfação pulsional, o que faz com que os compreendamos como objetos-fetiche. Ao manipular estes objetos-fetiche, o assassino em série pode, além da rememoração da gratificação alcançada, dispor da certeza, mesmo que provisória, de livrar-se do desprazer causado pela angústia do aniquilamento. Preservando sua posição de poder diante das vítimas-objeto, os souvenirs são tratados pelos assassinos em série, como troféus, que marcam sua vitória diante do fato de não mais ocuparem, eles próprios, a posição de vítima, sendo agora os perseguidores.

Nos escritos sobre As atividades sexuais das crianças, Klein (1932) enfoca o papel da ansiedade e suas relações com a compulsão à repetição, especialmente nos casos em que:

Quando a ansiedade diz respeito a um perigo irreal dirigido ao interior do seu corpo, o indivíduo se vê impelido a transformar aquele perigo em um perigo real e externo (...). Ele continuamente criará uma situação externa de perigo desse tipo, de um modo compulsivo, na medida em que o medo da situação de perigo real, de qualquer forma, não é tão grande quanto à ansiedade que ele

sente a respeito do interior de seu corpo, e com a qual também pode lidar de uma maneira melhor (p.137).

Neste lugar idealizado de suspensão da dor, “não tocar os pés no chão” ao mesmo tempo em que imprime uma superioridade ao indivíduo, protege-o dos perigos, do medo, o protege de alguém, ou de algo mais poderoso que ele próprio. Freud (1927, p. 181) esclarece: “O significado do fetiche não é conhecido por outras pessoas, de modo que não é retirado do fetichista; é facilmente acessível e pode prontamente conseguir a satisfação sexual ligada a ele (...)”.

Um troféu marca uma vitória, um feito importante, marca um momento de glória é assim que o assassino em série nomeia seus atos criminosos. Ele marca seus feitos com sua identificação própria - particularidades de sua própria organização psíquica. A esta característica de individualização, de marca, de assinatura, denomina-se calling cards, ou seja, cartões de visita – que nomeiam, identificam. (KEPPEL, 1997). Por isso, repetem o ritual dos assassinatos, da mesma forma, com o mesmo modus operandi.

Os assassinos em série têm a necessidade de deixar uma “marca pessoal” e é a isto que se chama de assinatura, Keppel (1997, p. 5) ressalta: “(...) uma marca deixada por ele na cena é psicologicamente compelida para satisfazê-lo sexualmente” 39. A assinatura dos homicidas em série também se relaciona a este comportamento de levar souvenirs de seus crimes.

Destarte, a assinatura fala de uma forma de expressão, ela traz a “mostra-ação”, como definiu Queiroz (2000), no sentido da passagem ao ato. Ao “assinar” seus atos, firmam a possibilidade de surgimento de uma identidade, de um ego que seja capaz de lidar com a angústia do aniquilamento.

Os elementos da assinatura não se modificam, mas podem sofrer “aprimoramentos”, na medida em que, quanto mais praticam seus atos cruéis e quanto mais isto lhes traz satisfação, “aperfeiçoam” sua assinatura, seu toque pessoal de terror, tornando-se ainda mais sádicos e violentos a cada nova vítima. O que demonstra, ainda, sua onipotência.

Em Tendências criminosas em crianças normais, encontramos a seguinte passagem no texto kleiniano: “O desejo de punição que é um fator determinante nos casos em que a criança repete constantemente seu mau comportamento, encontra seu análogo nas infrações repetidas pelo criminoso (...)”. (KLEIN, 1927, p.208). Os sentimentos de culpa e ansiedade geram a

39 No original: “(...) an imprint left by him at the scene is psychologically compelled to leave to satisfy himself sexually”. (KEPPEL, 1997, p. 5).

necessidade da repetição das ações, diante da fragilidade do self. Mata-se a mesma vítima- objeto quantas vezes a compulsão à repetição exigir.

De um assassinato para outro, podem ser percebidos traços dos mesmos aspectos psicopatológicos da personalidade do assassino em série. O mais comum é que as vítimas sejam da mesma etnia, idade ou aparência pessoal, mas normalmente em casos, por exemplo, de vítimas que são prostitutas, esse traço pode não aparecer porque o que está em jogo é esta especificidade (ser prostituta) e não o aspecto físico.

Enfim, o agir compulsivo dos assassinos seriais é marcado por esta condição, a de que seus atos não são inadequados, muito pelo contrário, tanto que, não raro, apresentam relatos de que o assassinato de suas vítimas “limpa o mundo” de pessoas indesejáveis à sociedade ou entendem a morte das vítimas como atos de sacrifício. Desta forma, a egossintonia aliada à distorção da afetividade, geram condutas sadicamente orientadas à aniquilação do objeto.

CAPÍTULO 5