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AS VIAGENS MARÍTIMAS

No documento Epopeia e Paródia na Literatura Grega Antiga (páginas 169-190)

A Batracomiomaquia e a Paródia ao Modelo Homérico

CAPÍTULO 5 Paródia à Odisseia

1. AS VIAGENS MARÍTIMAS

A análise literária da Batracomiomaquia tem sido feita, por norma, a partir da dependência intertextual da Ilíada, uma vez que, mediante os recursos da paródia, este efémero confronto animalesco recebe um tratamento gran- dioso à semelhança da célebre guerra entre Aqueus e Troianos. A sequência bélica, em que são expostos em estilo épico formular os sucessivos confron- tos entre os exércitos dos ratos e as hostes das rãs, ocupa porém apenas um terço da narrativa (correspondente aos últimos cem versos), ficando a pri- meira parte (os cerca de cem versos iniciais) reservada ao relato dos eventos que antecedem a guerra e a motivam: o encontro entre um príncipe estran- geiro e um soberano anfitrião. Trata-se da fase das jornadas batracomioma- quianas, em que Psicárpax se comporta como um viajante desafortunado e um navegador pouco experiente. Daqui resulta, portanto, a constatação de que ao argumento bélico se alia também neste poema herói-cómico o enredo das viagens que caracteriza a Odisseia. É meu propósito neste capítulo exa- minar os paralelos temáticos e intertextuais entre a Batracomiomaquia e as navegações de Ulisses, interpretando os efeitos resultantes da transposição desse material épico para o novo contexto literário.

O topos das viagens vem sugerido no verso de abertura da

Batracomiomaquia, quando o poeta afirma Ἀρχόμενος πρώτης σελίδος,

«Começando a contar pela primeira página». A expressão formada pelo verbo ἄρχω («começar») e pelo adjectivo πρῶτος («primeiro») é idên- tica, em termos da estrutura sintáctica, à que surge no primeiro hemistíquio de Od. 23.310 (ἤρξατο δ’ ὡς πρῶτον, «Ele começou por contar como pri- meiro»). Trata-se do episódio em que, derrotados os pretendentes, Ulisses

relata a Penélope os infortúnios que sofreu no mar. O herói começa o seu relato pela primeira aventura que viveu após a partida de Tróia, i.e., fazendo referência aos Cícones, e sumariza de seguida cada uma das aventuras por que passou. Ao contrário da estrutura geral da Odisseia com avanços e recuos no percurso narrativo, este sumário que Ulisses faz a Penélope segue a ordem cronológica dos acontecimentos, e cada uma dessas aventuras é contada de forma breve com igual dose de informação. Assim, o que foi contado exten- sivamente ao longo de oito cantos é aqui narrado em 31 versos e no espaço de uma só noite 1. A alusão aos Cícones no início da Batracomiomaquia cons-

titui portanto um argumento de peso a favor do percurso marítimo traçado neste poema herói-cómico, na medida em que o primeiro verso do proémio é posto em paralelo com aquele que abre o relato de Ulisses a Penélope.

A comparação com o mesmo episódio odisseico é ainda reforçada num outro momento estruturalmente importante da acção, o início da guerra entre ratos e rãs. A expressão καὶ τότε, «e então», do verso 199, que indica o anúncio da guerra pelos mosquitos, constitui um reaproveitamento tex- tual e métrico de Od. 9.59. O passo insere-se na fase final do confronto com os Cícones e dá conta da superioridade bélica destes sobre os Aqueus. Esta aventura decorrida em Ísmaro assume-se não só como marítima, uma vez que se insere na jornada de Ulisses no regresso a Ítaca, mas também como bélica. Trata-se da primeira aventura do herói após a partida de Tróia e nela confluem ambos os argumentos de que a Batracomiomaquia se reveste, o da guerra e o das viagens.

A relação intertextual entre ambos os poemas a partir da referência implícita aos Cícones torna-se fundamental para o entendimento da natu- reza dupla da Batracomiomaquia, não apenas um poema bélico (como quase sempre é estudado, devido à forte componente guerreira presente sobretudo nos últimos cem versos), mas também uma narrativa de viagens.

Esta primeira aventura odisseica, a que se faz alusão em dois momentos marcantes do poema herói-cómico – no início das fases inicial (as causas da guerra) e final (a descrição do conflito) –, assume no seu enquadramento uma função prospectiva, na medida em que antecipa alguns aspectos que caracterizam o confronto entre os ratos e as rãs, concretamente a duração de um só dia de guerra, a vitória dos combatentes inicialmente vencidos e a intervenção de um terceiro exército superior em valentia. Na verdade, tanto o combate animalesco como aquele travado entre Aqueus e Cícones decor- rem no curso de um dia (Batrac. 302-303; Od. 9.56-59) e ambos terminam

com a vitória daqueles que numa primeira fase do confronto haviam sido derrotados: as rãs, aniquiladas por Meridárpax por causa do qual fogem em debandada em direcção ao lago, vencem os ratos com a ajuda dos carangue- jos enviados por Zeus, enquanto os Cícones, cuja cidade fora saqueada pela tripulação de Ulisses, conseguiram subjugar e repelir os navegadores ata- cantes com o auxílio de vizinhos do continente, mais numerosos e valentes. Importa ainda notar que os pequenos animais se defrontam junto ao lago dos batráquios e que os Cícones e os Aqueus combatem junto das côncavas naus. O cenário aquoso/marítimo evidencia assim a presença do topos literário das viagens marítimas no contexto da guerra.

A função prospectiva do proémio da Batracomiomaquia fundamenta- -se não apenas na alusão aos Cícones, mas também naquela que é feita às Sereias homéricas, a partir da repetição, textual e métrica, da expressão οὔατα πᾶσι (Batrac. 5; Od. 12.177). Enquanto, por um lado, o poeta paró- dico afirma fazer chegar «aos ouvidos de todos» os mortais a história que acabou de escrever, por outro lado, Ulisses, narrador de histórias na corte do rei Alcínoo, conta como besuntou «os ouvidos de todos» os companheiros, para que não ouvissem o canto das Sereias. Nesse sentido, tendo em conta o paralelo indicado, a Batracomiomaquia opera uma inversão relativamente ao modelo homérico do qual deriva, sendo o canto herói-cómico comparado a um canto sedutor mas perigoso, um canto que enfeitiça e que arrasta à per- dição de quem o escuta.

A referência, ainda que subtil, ao episódio homérico das Sereias introduz na Batracomiomaquia os temas da tentação 2 e do não regresso, uma vez que

tais criaturas de voz sedutora atraem os marinheiros que as escutam, impe- dindo-os do retorno a casa (Od. 12.41-43). Estes dois temas decorrentes da relação intertextual com o passo homérico mencionado fazem sentir-se, res- pectivamente, no início e no fim do passeio aquático de Psicárpax às costas de Fisígnato: o rato cede à tentação do rei anfíbio de conhecer o modo de vida aquático e por conseguinte, qual marinheiro desprevenido e ignaro do perigo, o príncipe roedor perde a vida nas águas. A oferta de conhecimento é o aspecto comum a Fisígnato e às duas Sereias homéricas (figuras que vivem em ambiente aquoso), e a cedência à tentação corresponde ao comporta- mento de Psicárpax e de Ulisses (personagens que partem da terra pátria e que a ela desejam voltar). As Sereias matam indirectamente ao seduzirem

2 Estudos têm sido já consagrados aos diferentes tipos de tentação a que Ulisses é submetido nos cantos 5-12 da Odisseia (e.g.: Hogan 1976, 187-210). Não se tratando do tema central na fase das viagens, os estudiosos admitem, porém, a presença efectiva das tentações, consideradas obstáculos ou testes que o herói se vê obrigado a superar no trajecto marítimo de regresso a Ítaca.

os homens com a oferta de conhecimento 3. Do mesmo modo, Fisígnato ali-

cia o convidado com promessas de saber e aprendizagem, sem contudo o matar directamente, mas tornando-se sem dúvida o principal responsável pelo afogamento e, consequentemente, pelo não regresso do roedor à casa paterna. Por aviso prévio de Circe, o herói homérico não sucumbe no mar, mas Psicárpax, insciente do perigo que corre e ignorante do que não conhece mas que tem possibilidade de vir a descobrir, deixa-se conquistar pela oferta de conhecimento, por causa da qual perece.

O canto das Sereias representa, segundo Scodel, uma espécie de «anti- -canto» 4. Se se aplicar esta asserção ao presente contexto herói-cómico, con-

clui-se que a Batracomiomaquia é concebida como um reverso da epopeia, uma versão contrária ao canto entendido no seu sentido canónico, ou seja, épico. Nessa medida e retomando o paralelo atrás esboçado entre Fisígnato e as Sereias, enquanto estas se dirigem a Ulisses chamando-o pelo nome, uma vez que detêm o conhecimento sobre todas as coisas que foram e que serão (Od. 12.184, 12.189-191), contrariamente, Fisígnato questiona a identidade do animal estrangeiro, a sua proveniência e a sua estirpe, quando este se aproxima do lago das rãs (Batrac. 13). O soberano dos batráquios desempe- nhando um papel semelhante ao das Sereias homéricas é todavia retratado, no momento do encontro com Psicárpax, como o reverso do mesmo modelo homérico que imita. Ele comporta-se como uma sereia que representa o perigo da tentação do saber, desconhecendo porém a identidade daquele que chega ao seu encontro.

É então possível ler a Batracomiomaquia como um poema narrativo misto, onde confluem dois argumentos, que, delineados no proémio, se vão entrelaçando no decorrer da acção narrativa. As referências aos Cícones e às Sereias numa fase que antecede o relato das aventuras animalescas con- figuram este poema como uma narrativa ao mesmo tempo bélica e de via- gens. Neste último caso, o proémio antecipa temas e aspectos mais adiante tratados e desenvolvidos na história, o mais relevante dos quais parece ser a subversão do modelo odisseico imitado, processo que se concretiza sobre- tudo na reconfiguração do retrato de Ulisses como um navegador inexpe- riente que não regressa à pátria, acabando por sucumbir num dos vários perigos marítimos que enfrentou. «Odysseus», afirma Louden a propósito do antagonismo entre o herói e os grupos de oponentes que lhe preparam emboscadas ou que contra ele se rebelam (a tripulação, os atletas Feaces

3 Marinatos (2001, 406). 4 Scodel (1998, 188).

e os pretendentes), «is the figure in all Greek mythology adept at plotting and surviving ambushes» 5. Psicárpax, como demonstrarei neste capítulo,

comporta-se em passos vários da Batracomiomaquia como figura de um anti- -Ulisses, de um Ulisses incapaz de escapar aos perigos e ao rival com que se defronta.

Fugindo de uma doninha, Psicárpax chega ao lago das rãs, de onde bebe a água doce como mel e junto ao qual se detém a conversar com Fisígnato. Ainda que não haja um número significativo de repetições textuais do episó- dio homérico, a situação é tematicamente semelhante à segunda experiência vivida por Ulisses: fugindo dos Cícones, o herói e a tripulação desembarcam na terra dos Lotófagos, onde jantam e se detêm a conhecer os costumes dos nativos; os marinheiros que comem o fruto de lótus, doce como mel, esque- cem o regresso a casa. Este o padrão subjacente a ambos os episódios:

1) a fuga ao perigo;

2) a chegada a um local desconhecido;

3) o consumo de bebida/comida doce como mel; 4) a demora entre o povo estrangeiro;

5) o não regresso/o esquecimento do regresso.

O episódio dos Lotófagos (a segunda fase das viagens odisseicas) repre- senta o perigo da detenção e do esquecimento 6, apresentando-se, sobretudo

no aspecto do não regresso, paralela ao episódio das Sereias: em ambos os casos, quem come o fruto de lótus e quem ouve o canto das Sereias jamais regressa a casa 7. O aspecto que aqui importa destacar prende-se com a natu-

reza simbólica da água do lago com que o rato se sacia e que partilha com o fruto de lótus o epíteto μελιηδής, «doce como mel» (Batrac. 11; Od. 9.94), típico em Homero. O acto de beber a água equivale ao acto de comer o fruto de lótus, razão pela qual a paragem junto ao lago se torna perigosa, funcio- nando no contexto herói-cómico como indício de desgraça. Ao saciar-se na água de sabor a mel, o rato arrisca-se a esquecer o retorno à casa paterna e a ficar detido na terra estrangeira, como aliás vem a acontecer. Ulisses não come o fruto na terra dos Lotófagos e por isso prossegue a viagem de regresso a Ítaca, ao contrário de Psicárpax que, bebendo a água, fica impossibilitado de voltar a ver família e amigos.

5 Louden (1999, 19). 6 Marinatos (2001, 403). 7 Gresseth (1970, 207).

Ao satisfazer a sede, Psicárpax é abordado por Fisígnato (inicialmente identificado como ser «polifemo»), que questiona o animal estrangeiro sobre as origens de que provém, com oferta de presentes. Já tem sido notado pelos estudiosos a relação homónima entre o epíteto do soberano das rãs e o nome do ciclope homérico: o termo πολύφημος (Batrac. 12) mantém a mesma posição métrica do nome próprio utilizado em Od. 1.70. Trata-se em ambos os casos da primeira referência, nos dois poemas, a cada uma destas personagens. Daqui resulta que a introdução de Fisígnato recorda ao ouvinte/leitor o episódio de Ulisses com o mais forte de entre os Ciclopes, por causa de quem o herói sofreu infortúnios desmedidos no mar, antes de alcançar a terra pátria. Esta referência explícita à terceira etapa das viagens odisseicas vem reforçar o indício de desgraça iminente, anteriormente sugerido pela associação temática entre a água do lago e o fruto de lótus. O paralelo de Fisígnato com Polifemo, afirma Sens, cria expectativas que vêm a ser cumpridas na narrativa, pois, tal como Polifemo, Fisígnato comporta-se como um anfitrião desastroso 8. A ascendência do rei

batráquio e a do ciclope (ambos com associações ao mar) é um aspecto que, pelo contrário, não costuma ser assinalado pelos comentadores do texto herói-cómico, mas que não deixa de ser relevante para a relação entre estas duas figuras: enquanto um é filho de Hidromedusa, a rainha das águas, o outro é filho de Posídon, o deus regente dos mares 9.

As primeiras palavras do anfíbio ao rato constituem, como aliás já tem sido assinalado 10, uma reescrita do discurso inicial de Polifemo aos visitantes

estrangeiros.

ξεῖνε, τίς εἶ; πόθεν ἦλθες ἐπ’ ἠιόνα; (Batrac. 13)

Estrangeiro, quem és? Donde vieste até chegares a esta margem [do lago]? ὦ ξεῖνοι, τίνες ἐστέ; πόθεν πλεῖθ’ ὑγρὰ κέλευθα; (Od. 9.252)

Estrangeiros, quem sois? Donde navegastes por caminhos aquosos?

O paralelo demonstra contudo uma abordagem à tripulação como perso- nagem colectiva, o que justifica a resposta no mesmo sentido, a revelação da identidade do grupo, não da figura individual. Ulisses identifica-se (embora sob um nome falso), quando questionado a esse respeito pelo anfitrião de

8 Sens (2006, 242).

9 A linhagem de Fisígnato costuma ser, por norma, comentada em associação com a de Aquiles (ambos são filhos de um pai chamado Peleu e de uma figura marinha). Sem deixar de a reconhecer como válida, defendo contudo que no contexto em que surge assume maior relevo se comparada com a do ciclope, devido ao estreito paralelo entre o encontro de Fisígnato e Psicárpax com o de Polifemo e Ulisses. Cf. Capítulo 6 sobre os duplos paródicos de Aquiles.

apetite canibalesco: καί μοι τεὸν οὔνομα εἰπὲ / αὐτίκα νῦν, ἵνα τοι δῶ ξείνιον, ᾧ κε σὺ χαίρῃς, «E já agora diz-me o teu nome, / para que te dê um presente de hospitalidade que te alegrará» (Od. 9.355-356). Deste passo homérico extraem-se resultados mais significativos do que do anterior, para a compara- ção entre os pares Polifemo–Ulisses e Fisígnato–Psicárpax. Os descendentes de figuras marinhas questionam a identidade dos respectivos convidados, recompensando-os com a oferta de presentes: Fisígnato oferece uma visita à morada das rãs (que será fatal ao rato), e o ciclope embriagado permite que Ulisses/Ninguém seja, de entre os companheiros, o último a ser devorado. Fisígnato e Polifemo acabam por oferecer a morte como presente de hospi- talidade, uma vez que a rã causa o afogamento do rato, e o ciclope mata seis dos companheiros de Ulisses. No entanto, na qualidade de personagem que funciona como reverso deste herói homérico, Psicárpax sucumbe no habi- tat do anfitrião undívago, ao contrário de Ulisses que consegue escapar da caverna do ciclope impiedoso.

O herói de mil ardis e o rato sequioso acabam por revelar as verdadeiras identidades, ambos demonstrando vaidade e arrogância na forma como se apresentam: um, enfurecido no coração e orgulhoso do modo como enganou o ciclope, vangloria-se da proeza conseguida, quando se encontra a salvo do perigo e o anúncio da linhagem se verifica portanto desnecessário; o outro, como que ofendido por o interlocutor não conhecer a famosa estirpe de que descende, recusa inicialmente a oferta de amizade, não por timidez ou receio mas por declarar alimentar-se de iguarias mais apetitosas do que os produtos de origem vegetal que lhe são oferecidos.

O impulso de gratificação pessoal constitui, a par da curiosidade, uma ten- tação a que o herói se entrega no episódio da ilha dos Ciclopes 11. A curiosi-

dade tentadora encontra-se patente na imprudência de Ulisses em conhecer o habitante da caverna para dele receber a hospitalidade devida (Od. 9.172-176, 9.224-229); a ânsia de gratificação pessoal respeita à necessidade que Ulisses sente em ser reconhecido como autor da cegueira do ciclope, impulso inter- pretado como um acto de hybris por parte do navegador famoso e por causa do qual vem a suportar infortúnios no mar imenso 12. Psicárpax segue uma atitude

igualmente arrogante (na maneira como relata a linhagem de que provém, por todos os outros animais conhecida), curiosa e imprudente (na aceitação do convite para aprender os costumes da vida anfíbia, quando antes recusara a recepção dos presentes de amizade). Ulisses e Psicárpax cedem, portanto, no

11 Hogan (1976, 200).

12 Para uma discussão sobre o comportamento «hibrístico» de Ulisses no episódio da ilha do ciclope, vide Friedrich (1991, 16-28).

encontro com os seres polifemos, a um ímpeto contrário aos seus interesses, em proveito de um reconhecimento pessoal gratificante, acabando por sofrer as consequências funestas da escolha que tomam.

O aproveitamento paródico da Ciclopeia homérica não se restringe à conversa inicial entre os dois animais que se encontram na margem do lago. A figura do ciclope fica ainda sugerida noutros passos do poema herói- -cómico, deformada por um processo de reutilização irónica, como sugere Fusillo 13. Rica em potencialidades cómicas que a paródia realça, esta per-

sonagem serve de modelo a outras criaturas herói-cómicas, como é o caso de Psicárpax e de Meridárpax. No episódio do afogamento, lê-se que o rato amedrontado «caiu de costas», πέσεν ὕπτιος (Batrac. 87). Esta é uma fór- mula homérica frequente na Ilíada para indicar a queda e/ou morte de um combatente e utilizada em Od. 9.371 para descrever a queda de Polifemo, causada por embriaguez. Este selvagem de apetite voraz surge assim, por meio da repetição formular, como um animal de proporções minúsculas, embriagado com as águas revoltas do lago.

De anfitrião impiedoso que se banqueteia com carne humana, o ciclope é transmutado num convidado estrangeiro devorador dos víveres dos homens e vítima de um desastre fatal. Em plena sequência bélica, Psicárpax (um outro rato de nome homónimo ao do protagonista ou o mesmo que é reinserido na narrativa 14) pega num pedregulho de peso descomunal e arremessa-o contra

o adversário Crambóbates, atingindo-o na perna direita. A expressão λίθον ὄβριμον, ἄχθος ἀρούρης do verso 240, usada para descrever o pedregulho, é construída a partir de outras duas expressões do canto nono da Odisseia, a primeira aplicada à lenha trazida pelo ciclope e a segunda à rocha que serve para fechar a entrada da caverna.

λίθον ὄβριμον, ἄχθος ἀρούρης (Batrac. 240) rocha descomunal de grande peso

ὄβριμον ἄχθος (Od. 9.233) peso descomunal

λίθον ὄβριμον (Od. 9.305) rocha monumental

Neste caso, a intencionalidade humorística resultante da imitação paró- dica do episódio homérico reside na caracterização da força desmedida do rato equiparada à do ciclope, bem como no contraste entre a tripulação de Ulisses, incapaz de mover a gigantesca porta rochosa, e o rato vigoroso, hábil

13 Fusillo (1988, 102).

a erguer e a lançar um pedregulho de peso idêntico. Este guerreiro apresenta- -se, por isso, superior em robustez ao navegador homérico que com a ajuda dos companheiros não consegue empurrar, nem muito menos levantar, um peso colossal 15.

Um último exemplo, digno de menção, do reaproveitamento paródico da Ciclopeia homérica respeita à chegada do ciclope à caverna, aterradora para a tripulação. Esta cena é adaptada à entrada de Meridárpax, tardia mas igualmente ameaçadora, no campo de batalha, que causa a fuga das rãs para o lago. Tanto os marinheiros como os combatentes raninos ficam «aterrori- zados», δείσαντες (Batrac. 267; Od. 9.236). Em ambos os passos, o particípio grego ocorre na mesma posição métrica. Deste modo, na qualidade de per- sonagens que causam pavor, Meridárpax e Polifemo são contudo derrotados, um pela força e outro pelo dolo, por aqueles que amedrontam. Por outro lado, as rãs massacradas pelo rato-herói (este frequentemente comparado a Aquiles, quando se mostra em combate no canto 18 da Ilíada) fazem lembrar os companheiros de Ulisses receosos perante o ciclope.

Mais do que a coerência na atribuição dos papéis homéricos às figuras animalescas, assiste-se de preferência neste poema herói-cómico à explora-

No documento Epopeia e Paródia na Literatura Grega Antiga (páginas 169-190)