• Nenhum resultado encontrado

Paródia na Literatura Grega

3. POESIA DRAMÁTICA

A comédia ática, sobretudo a comédia antiga (a do século v a. C.), caracte- riza-se por um envolvimento directo nos assuntos da πόλις, seguindo uma agenda política por demais evidente 105.

O período durante o qual o drama ateniense se desenvolve corresponde a um tempo marcado por sucessivos confrontos bélicos, a maior parte dos quais no contexto da Guerra do Peloponeso (431-404 a. C.). Os poetas cómi- cos, atentos à realidade política actual, fazem representar em palco assuntos de interesse público, com comentários a acontecimentos da época, não se abstendo de lançar ataques frontais aos governantes da cidade, sobretudo àqueles de maior relevo na chefia das várias matérias relativas à cidade: admi- nistração interna, educação, cultura, religião, comércio e guerra. Contendo, desta maneira, um importante valor como documento sociológico 106, «a arte

cómica sempre se arrogou o direito de ser um comentador privilegiado do quotidiano de Atenas», tendo-se inspirado nesse mesmo quotidiano, objec- tivo e directo, «de que retratou as crises e as tensões» 107.

Comprometido em mostrar no palco da comédia as ruinosas condições sociais e económicas resultantes das operações militares levadas a cabo para defesa e manutenção do poderio naval que prejudicavam gravemente a vida

103 Bertolín Cebrián (2008, 51). 104 Bertolín Cebrián (2008, 51-52). 105 Goldhill (2006, 85).

106 Gil Fernández (1974, 82). 107 Silva (2006, 8-9).

dos agricultores e camponeses, Aristófanes (o único dos poetas da comédia antiga de que se conservam peças completas) revela ser o mais importante testemunho histórico e a mais completa fonte da vida social de Atenas, dos finais do século v a. C. 108 As comédias que compôs, devido à ligação directa e

imediata com a realidade contemporânea, partilhada, portanto, entre o autor e os espectadores, são designadas como políticas, no sentido etimológico do termo. Aristófanes serve-se com frequência do drama cómico como veículo para a denúncia das injustiças sociais, para a sátira ao governo ateniense em geral (especialmente por causa das opções tomadas a favor da continuidade da guerra) e ainda para a invectiva pessoal a figuras de maior destaque na época, entre as quais ocupam um lugar de preferência Cléon, no contexto político, e Eurípides, no contexto literário.

A par da censura à governação da cidade, um outro tipo de crítica é desenvolvido no teatro aristofânico, a crítica literária. O comediógrafo recria, exagera e ridiculariza, entretecendo-os na trama das suas peças, episódios conhecidos dos géneros canónicos, a tragédia e a epopeia. E ainda que seja o drama trágico euripidiano o objecto literário mais reproduzido e deformado por Aristófanes, a poesia épica não deixa, porém, de ter um peso significativo na produção humorística deste autor 109. É, aliás, a poesia épica, em especial

a de Homero, o género, de entre todos os outros logo a seguir à tragédia, o mais parodiado na produção cómica ateniense.

O reaproveitamento do material da epopeia pelos comediógrafos antigos não começa por surgir na época áurea do teatro de Dioniso, mas nos primór- dios do género, concretamente, pelo que é possível averiguar, na obra, hoje residual, do primeiro dramaturgo reconhecidamente cómico, Cratino. Dele é a autoria da peça Ὀδυσσεύς (Ulisses), uma paródia à Odisseia de Homero, em cujos fragmentos conservados se nota o desenvolvimento caricatural de «uma imagem deformada e risonha dos bem conhecidos errores de Ulisses» 110.

A prática de reutilizar o material épico adaptando-o a um contexto bem mais vulgar torna-se tradição entre os poetas de comédia, que visam, mediante o contraste, muitas vezes inesperado, entre o solene e o tri- vial, fazer rir os espectadores. Este o fim último da arte cómica: provocar o riso na assistência. Com esse propósito, os comediógrafos atenienses, Aristófanes em particular, servem-se da autoridade de Homero, citando-o mas nem sempre de forma exacta. Deformam e exageram os recursos sérios que tomam de empréstimo (texto, cenas e topoi), com a variação necessária

108 Fairbanks (1903, 666).

109 Dover (1972, 76 e 73), Silva (1987, 20), Macía Aparicio (1998, 201; 2000, 212). 110 Silva (1987, 15).

para que o produto recriado seja reconhecível no novo enredo como prove- niente do cânone épico. Pertencendo os cantos homéricos a uma memória colectiva, constituindo obras largamente difundidas por entre o público da época, Aristófanes apropria-se desse modelo com grande liberdade, ora o repetindo, ora o deformando parodicamente, para que do choque entre a imponência da palavra épica e a mediocridade da situação cómica irrompa o riso galhofeiro 111. Na investigação empreendida por Macía Aparicio, cujos

resultados começam a ser expostos em «Homero y Aristófanes» 112, o autor

reúne em cinco grupos as várias maneiras pelas quais a influência homérica penetra e modula o teatro aristofânico: 1) referências directas a Homero, 2) situações, cenas e episódios, 3) versos de aparência homérica, 4) palavras, epítetos e fórmulas de tonalidade épica, 5) aspectos gerais ressoantes da lin- guagem e do estilo elevados.

Aristófanes apodera-se do património deixado por Homero ajustando-o aos interesses da comédia, i.e., utiliza o acervo épico para criticar a guerra e aqueles que a alimentam e a motivam e para denunciar as injustiças sociais, apresentando alternativas fantasiosas e utópicas à realidade cruel das gentes mais humildes 113.

Na peça intitulada Paz, de 421 a. C. (ano em que se firmara a Paz de Nícias), o poeta expressa o desejo pelo fim das hostilidades entre os Gregos 114. Trigeu,

lavrador ateniense descontente com a guerra e por ela prejudicado, decide voar até ao Olimpo, montado num escaravelho gigante, com o propósito de salvar toda a Grécia. Concluída com sucesso a missão, Trigeu regressa ao plano terrestre acompanhado pela Folgança (Θεωρία), que restitui ao Conselho da cidade, e pela Deusa dos Frutos (Ὀπώρα), que toma por esposa, iniciando de seguida os preparativos para o consórcio. Nesse ambiente festivo, aparece Hiérocles, um adivinho, vendedor de oráculos que, prejudicado com o fim da guerra e interessado em manter o negócio das adivinhações, vaticina uma série de oráculos contrários à libertação da deusa Paz (Εἰρήνη). O salvador

111 Cf. Dover (1972, 73) e Macía Aparicio (1998, 209; 2000, 241). 112 Macía Aparicio (1998, 199-209).

113 Aristófanes retrata constantemente nas suas peças a classe dos camponeses como a mais interessada na obtenção da paz. Vide Gomme (1938, 98).

114 A Paz de Aristófanes surge num período de grande tensão e expectativa, uma vez que as duas cidades rivais, Atenas e Esparta, haviam suspendido as operações belicistas para se ocuparem das negociações pela obtenção da paz. A Batalha de Anfípolis (onde perderam a vida os dois principais opositores à concretização de uma aliança, Cléon, o comandante das hostes atenienses, e Brásidas, o general lacedemónio) veio proporcionar um momento de tréguas entre as facções adversárias. De facto, apesar das muitas reivindicações de ambos os lados, foi firmada, imediatamente após as festividades em honra de Dioniso (no mesmo ano da Paz), a Paz de Nícias, pensada para durar meio século. Cf. Tucídides, História da Guerra do Peloponeso 5.1-24.

da Grécia responde-lhe lembrando palavras homéricas que expressam o fim dos conflitos militares e o domínio da paz mediante a celebração de banque- tes (Paz 1088-1098). À disputa travada entre Trigeu e Hiérocles (represen- tativa da contenda política de 421 a. C., ano farto em negociações difíceis entre os que defendem a prossecução da Guerra do Peloponeso e aqueles que advogam o estabelecimento de um período de tréguas) segue-se, no banquete nupcial, a actuação do filho de Lâmaco (general ateniense, apologista activo da guerra), que recita versos homéricos de teor beligerante e, por isso, repudiados por Trigeu (Paz 1268-1289). Além de declamar palavras e expressões retira- das da Ilíada, o jovem cantor recria uma cena bélica típica dos confrontos entre Aqueus e Troianos (Paz 1273-1274 e 1276; Il. 4.446-451, 8.60-65) 115.

Aristófanes serve-se de expressões homéricas e de versos exactos ou alterados, originalmente inseridos num contexto belicista, onde o clamor da refrega se faz ouvir e os guerreiros se enfrentam uns aos outros, para os apli- car num momento cénico em que se festeja a libertação da Εἰρήνη com um festim nupcial. O resultado deste deslocamento situacional traduz uma rup- tura, no texto aristofânico, entre forma e conteúdo, e por isso Trigeu tanto se esforça por repudiar a poesia homérica que lembra a guerra, precisamente porque deseja apenas que imperem no banquete cantos em louvor da paz. É a partir deste contraste paródico que o comediógrafo critica, no episódio mencionado e em harmonia com o sentido global da peça, o tema da guerra a favor das alegrias que a paz propicia 116.

A par da censura à guerra e seus dissabores para a cidade, a comédia grega antiga toma também como alvo de sátira os progressos ocorridos no âmbito da edução, da religião, das ciências e da filosofia 117. As Nuvens e as Vespas,

representadas nos anos 423 a. C. e 422 a. C. respectivamente, centram-se nos conflitos familiares entre diferentes gerações, entre pai e filho, como sinto- máticos da crítica aos sofistas e aos novos modelos de educação, numa peça, e da crítica ao defeituoso funcionamento do sistema judicial, na outra peça.

O enredo das Vespas decorre do aprisionamento doméstico de Filócleon imposto pelo próprio filho, Bdelícleon, para que aquele não mais volte a desempenhar o seu ofício nos tribunais. O pai, todavia, viciado em julga- mentos, procura a todo o custo escapar à vigilância, nem sempre atenta, dos

115 Os três versos da Paz também surgem como fórmulas noutros passos da Ilíada, se considerados individualmente.

116 Silva (2007, 102). O poeta meónio, na qualidade de grande especialista em questões beligerantes, é con- vocado para o contexto mais vulgar da comédia justamente para, através dele, se expressar a recusa de tudo quanto esteja relacionado com a guerra. «Lembrar Homero», admite Silva (2007, 97), «será sem- pre conviver com a guerra e reconstituir os cenários de sofrimento e de glória que ela proporciona.» 117 Dover (1972, 214).

dois escravos às ordens do filho, Xântias e Sósias, recriando um estratagema odisseico para fugir ao cárcere: o velho esconde-se debaixo de um burro que Bdelícleon leva para vender no mercado, como Ulisses, refém na caverna do ciclope, se ocultara sob um carneiro que Polifemo levava para pastar (cf. Vespas 175-182, Od. 9.420-467). A tentativa sai malograda, mas, mesmo quando descoberto, Filócleon não desfaz o retrato heróico por si assumido, dando-se a conhecer como Ninguém, Οὖτις (Vespas 184), ou seja, servindo- -se de mais um dos ardis de Ulisses, que desse modo também se apresentara ao ciclope (Od. 9.366) 118.

A paródia ao episódio da Ciclopeia contribui para a construção de Filócleon como um anti-Ulisses, um Ulisses ao contrário, pois, ao pretender igualar-se ao herói astuto, não consegue, porém, alcançar os mesmos resul- tados. Este retrato paródico é desenvolvido a curto e a longo prazo, no curso da acção cómica. O coro, formado por juízes anciãos, sugere ao colega de ofí- cio, impedido de os acompanhar para o tribunal, que, como «Ulisses dos mil artifícios» (πολύμητις Ὀδυσσεύς, Vespas 351), se disfarce com farrapos para fugir de casa 119. Assim como Ulisses, o herói dos disfarces, ilude os preten-

dentes, na segunda metade da Odisseia, sob o aspecto e a indumentária de um mendigo, também Filócleon deveria desse modo ludibriar o filho. O velho pai, cujo retrato se aproxima ao do herói homérico por meio da reutilização paródica de uma cena, de um motivo e de um epíteto épicos, comporta-se como uma personagem que tudo faz para enganar os outros, mas que é pelos outros enganado.

A paródia à epopeia, manifesta no início da acção, não é, como MacDowell sustenta, uma piada mitológica ocasional 120, uma vez que os contornos

anti-ulisseicos de Filócleon se mantêm no decurso da peça: o juiz mostra- -se ineficaz na arte retórica ao não conseguir convencer o filho do mérito da profissão que exerce, pelo contrário deixa-se por ele convencer (Vespas 526-749); no julgamento do cão Labes, Filócleon é vítima de dolo quando, querendo condenar o animal que roubou, é levado a depositar o voto na urna da absolvição (Vespas 990-1002); por fim, ao ser reeducado nos mais

118 A Ciclopeia homérica constitui igualmente o episódio sobre o qual se desenvolve a paródia no drama satírico euripidiano Ciclope.

119 «Πολύμητις Ὀδυσσεύς es una fórmula muy frecuente en Homero: ochenta y seis ejemplos, sesenta y ocho de ellos en la Odisea, y una sola ocasión en que el adjetivo no se le aplica a Ulises.» (Macía Aparicio 2000, 218)

120 No comentário ao v.181, no momento em que Bdelícleon pergunta se haverá algum Ulisses debaixo do burro, MacDowell afirma que Aristófanes «gives us a comic parody of the legend, but there are no close verbal similarities to show that he is specifically parodying either Odyssey 9. 424-63 or Kratinos’s play Ὀδυσσῆς.» O estudioso conclui que «When Bdelykleon mentions Odysseus, he is simply making a joke» (MacDowell 1971, 156).

refinados padrões sociais da elite ateniense, o velho pai revela ser um inábil contador de histórias, não tendo vivido aventuras gloriosas, quando jovem, para entreter os convivas num banquete (Vespas 1174-1208). A peça aristo- fânica, que apresenta no palco da comédia um Ulisses ao revés, encerra com a fórmula θῖν’ ἁλὸς ἀτρυγέτοιο, «na praia do mar não vindimado» (Vespas 1521), recorrente na poesia homérica e alusiva ao tema das viagens 121.

A paródia à poesia épica, concretamente à natureza astuta de Ulisses, visa nas Vespas denunciar a falência do sistema judicial ateniense, como também criticar a retórica de matriz sofística 122. Nas Nuvens, peça de teor intelectual,

Sócrates e os sofistas são os alvos sobre os quais recai o ataque mordaz do comediógrafo, por serem mestres dos novos modelos educativos, eles que ensinam a fazer prevalecer a causa injusta sobre a causa justa. Sócrates, o mais conhecido dos filósofos na época, transformado em personagem aris- tofânica, dirige o Frontistério, uma escola onde se ensina uma gama variada de doutrinas, entre as quais se contam as áreas das Ciências (Astronomia, Cosmologia, Física, Meteorologia), do Direito (Ética, Moral) e das Letras (Gramática, Retórica). Nessa instituição académica, pretende Estrepsíades aprender as modernas correntes do pensamento, a fim de se ver livre das dívidas acumuladas. Fraco de memória e velho demais para as exigências do estudo, convence o filho, Fidípides, a tomar o seu lugar na escola como discí- pulo do Raciocínio Injusto, de modo a sair de lá um sofista refinado.

É precisamente no debate entre o Raciocínio Justo e o Raciocínio Injusto que a autoridade de Homero é invocada, por este último, para legitimação da prática oratória: εἰ γὰρ πονηρὸν ἦν, Ὅμηρος οὐδέποτ’ ἂν ἐποίει / τὸν Νέστορ’ ἀγορητὴν ἂν, οὐδὲ τοὺς σοφοὺς ἅπαντας, «De facto, se isso fosse mau, certa- mente que Homero nunca chamaria agoreta a Nestor e a todos os letrados em geral» (Nuvens 1056-1057) 123. Segundo o mais consagrado dos poetas épicos,

Nestor, conselheiro de Agamémnon, e todos os letrados em geral são excelentes oradores. O epíteto ἀγορητής («orador») não é, porém, na poesia homérica, apenas atribuído ao combatente de Pilos (Il. 1.248, 4.293). Tersites, o mais feio de entre os Aqueus, não apresentado pela ascendência de que provém (sinal da sua baixa condição social), também recebe o mesmo qualificativo em Il. 2.246. Esta personagem pronuncia-se contra os excessos do poder aristocrático e, na qualidade de representante do estado de desmoralização dos soldados após a retirada de Aquiles da guerra, acusa em assembleia pública o comportamento arrogante de Agamémnon. Ainda que hábil na articulação das palavras, Tersites

121 Vide também o uso da fórmula homérica θῖν᾽ ἁλὸς ἀτρυγέτοιο no fr.128 de Hipónax. 122 MacDowell (1971, 5), Jesus (2010, 33).

acaba por ser espancado por Ulisses, o que provoca o riso colectivo dos presen- tes. Perto do final da peça (Nuvens 1321-1332), Estrepsíades sofre agressões de Fidípides, já instruído nas subtilezas do discurso sofístico e capaz de demons- trar que é justo um filho castigar o pai (Nuvens 1332-1439). Enquanto a figura épica é espancada por ser um hábil orador, a personagem cómica, pelo con- trário, suporta a violência física de alguém versado no estilo oratório. Ambas, porém, tornam-se objecto de ridículo 124.

Homero é, desse modo, convocado para o contexto mais vulgar da comé- dia para servir as intenções de Aristófanes em criticar os efeitos nefastos da educação sofística e para satirizar a própria classe dos sofistas e entre eles Sócrates, designado pejorativamente como «sacerdote de banalidades sub- tilíssimas» (λεπτοτάτων λήρων ἱερεῦ, Nuvens 359) e como «omnipotente vigário» (ὦ παμβασίλει’ Ἀπαιόλη, Nuvens 1150) 125.