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Seus pais eram imigrantes espanhóis e sua casa era palco de saraus, uma vez que sua mãe cantava zarzuelas e canções flamengas acompanhada ao piano por sua irmã, Amália. Para França (1957, p. 7), há uma lógica em nascer em um meio musical e se tornar músico e compositor de destaque. Ele aprendeu a tocar piano de ouvido e recebeu as primeiras lições de sua irmã, que estudava com Henrique Oswald (1852-1931). No entendimento de Pádua (2009, p. 56), “o contato com a música fez-se de forma natural e despretensiosa, diletante mesmo”. Sua primeira opção era cursar a Faculdade Nacional de Medicina, no entanto devido a um distúrbio nervoso foi recomendado que estudasse música como terapia e em 1917 ingressou oficialmente no Instituto Nacional de Música (atualmente Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Professores importantes da época contribuíram para uma formação sólida e consistente como: J. Otaviano (1892-1962) que lhe ensinou teoria e piano; Frederico Nascimento (1852-1924) harmonia; Henrique Oswald (1852-1931) piano; Francisco Braga (1868-1945) contraponto, fuga, composição e instrumentação. Recebeu também a influência de Alberto Nepomuceno (1864-1920) (KIEFER, 1986, p. 81). Sua obra foi influenciada pelo momento de transição entre o romantismo importado da Europa e o Modernismo que dava seus primeiros passos no Brasil. Abreu e Guedes (1992, p. 1) reforçam que Lorenzo Fernandez “escreveu sua música durante esta travessia cultural – por vezes envolvido, por vezes alheio às grandes mutações”. Em sua produção percebe-se o equilíbrio entre a formação musical tradicional e a novidade do modernismo.

Em 1922, a convite de Graça Aranha (1868-1931) participou como ouvinte da Semana da Arte Moderna, onde se relacionou com Mário de Andrade (1893-1945), Manuel Bandeira (1886-1968), Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo, conhecido por Di Cavalcanti (1897-1976), Francisco Mignone (1897-1986), Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Candido Portinari (1903-1962). De acordo com Igayara (1997, p. 60) “Lorenzo Fernandez é reconhecido por todos os seus contemporâneos como um homem de grande erudição, e seu respeito pela tradição musical pode ser sentido em sua atuação como compositor, regente e pedagogo”.

Mário de Andrade (1934) ao se referir ao companheiro escreveu: “Lourenço Fernandez, muito embora usando as conquistas da técnica musical do nosso tempo, se compraz em adaptá-los com segurança, onde elas sejam duma lógica imprescindível, como que indispensáveis”. Em 1946, Villa-Lobos escreveu um artigo sobre Lorenzo Fernandez no "Boletin Latino Americano de Música" onde afirmou:

um homem perfeito como artista e um artista que tem o direito de viver com uma perfeição relativa, porque é senhor de um nobre caráter, moral e artístico, e de uma inteligência filosófica e musical, culta e segura, que o fazem certamente um dos sólidos alicerces da música erudita brasileira (VILLA-LOBOS, 1946, p. 592).

Figura 7 - Lorenzo Fernandez

Marina Lorenzo Fernandez (2012), em entrevista à autora, ressalta que a “relação de Villa-Lobos e Lorenzo Fernandez foi bastante íntima, tanto que Lorenzo Fernandez ajudou a criar a Academia Brasileira de Música bem como o Conservatório de Canto Orfeônico. Ela afirmou: "quando o Villa viajava, papai ficava no lugar dele. Eles sempre foram muito amigos”. Segundo Kiefer (1986, p. 83), ele atuou em parceria com Villa-Lobos na fundação e nas atividades desenvolvidas pela Superintendência de Educação Musical e Artística da Prefeitura do então Distrito Federal (SEMA). Para Igayara (1997, p. 63) Lorenzo Fernandez e Villa-Lobos “estabeleceram uma profícua colaboração e ambos se destacaram pela atuação pedagógica frente a instituições educacionais da época”. Juntos desenvolveram o programa do canto orfeônico e Fernandez foi ativo colaborador no Conservatório do Canto Orfeônico. Para Corrêa (1992, p. 26)

a maioria dos musicólogos e historiadores nacionais desconhece um fato de transcendental relevância e cujos méritos, a priori, devem ser creditados a Lorenzo Fernandez. Bem antes das reformas encetadas por Villa-Lobos na educação de massas estudantis, através da implantação do canto orfeônico por todo o Brasil, logo após a decretação do Estado Novo, já publicara Lorenzo Fernandez, em outubro de 1930 e março de 1931, dois longos e substanciais artigos em forma de estatutos na revista Ilustração Musical, respectivamente intitulados – Bases para a Organização da Música no Brasil e O Canto Coral nas Escolas – onde antecipa tais reformas (CORRÊA, 1992, p. 26).

Na visão de Pádua (2009, p. 58) por meio da publicação destes dois artigos em forma de estatutos publicados na revista Ilustração Musical, Lorenzo Fernandez sugere um plano de mudanças para o ensino da música no Brasil. No artigo ele aponta três condições para o professor: sólida cultura musical; entusiasmo e devotamento à Arte; e capacidade pedagógica. Para ele, o “professor deve ter aptidões pedagógicas capazes de transmitir aos alunos não só os conhecimentos musicais como também o nobre entusiasmo pelas elevadas manifestações da Arte”. As ideias devem ser apresentadas com clareza e simplicidade, evitar a monotonia, usar jogos infantis, utilizando como por exemplo o método Decroly (1871-1932). Para Cambi (1999, p. 527), o importante na visão de Decroly era conhecer melhor a criança, respeitar o grau de amadurecimento “quanto aos comportamentos afetivo- cognitivos típicos da mente infantil” (...) “toda a atividade de aprendizagem parte na

criança de uma abordagem global em relação ao ambiente, que deve ser respeitado no ensino”; o autor prossegue:

Toda atividade educativa deve partir do concreto para o abstrato, do simples para o composto, do conhecido para o desconhecido, e por tanto todo processo de simbolização deve ser aprendido através de um contato prolongado com a realidade e com seus dados empíricos (CAMBI, 1999, p. 528).

Para Lorenzo Fernandez o professor deveria ser calmo, respeitar o nível de atenção e a resistência física da criança. As explicações deveriam ser claras e simples, mas sem monotonia, usando jogos infantis, histórias e anedotas em relação aos músicos e à música. O importante é o processo e não a rapidez em alcançar os objetivos. Na continuação, o texto apresenta as condições do aluno, ginástica rítmica, respiratória e vocal com exercícios específicos, iniciação ao canto, à técnica musical e ao repertório.

Em entrevista, Marina ressaltou que o pai gostava das crianças e se preocupava com o ensino da música. “Ele compôs as primeiras pecinhas para piano só com as cinco notinhas, mas elas são um doce, porque são fantasiadas, tem todo o fraseado, tem respiração e tudo que você tem que ensinar para a criança, do começo até o fim, está lá. E vai aos poucos dificultando”. Dedicou várias dessas peças para as crianças, seus filhos, sobrinhos e alunos. E continua dizendo: “Ele amava as crianças. Fazia com intenção, para a criança tocar, para ela aprender. No conservatório fez muitos cursos especiais para o início do ensino da música, especial para as crianças”. Ele nunca perdeu a vontade de querer o novo. Tinha alegria em viver, uma paixão, um lado lúdico. Marina contou que o pai fazia muitas brincadeiras com os filhos, como uma vez, que virou a máquina de costura da mãe e montou o bondinho do Pão de Açúcar com caixa de fósforos.

De forma semelhante vários autores fazem referência sobre o valor que Lorenzo Fernandez dava ao ensino, comoPádua (2009, p. 58) ao afirmar que ele foi “grande incentivador de uma moderna pedagogia musical”; Marcondes (1977, p. 269) atesta que “promovia recitais, cursos livres e incentivava a aplicação da moderna pedagogia à iniciação musical infantil”; França (1950, p. 10) complementa que a “vocação de ensinar vem guiando o autor de Imbapara desde a juventude, por um caminho paralelo ao da criança”.

Na década de trinta, o que se chamava de moderna pedagogia musical no Brasil era o pensamento pedagógico que começava a ter autonomia com o desenvolvimento das teorias da Escola Nova, e "tinha um grande otimismo pedagógico de reconstruir a sociedade através da educação" (GADOTTI, 1998, p. 230). Para Barbosa (2001, p. 75), “Escola Nova, Escola Ativa, Escola Funcional, Escola Progressiva, Escola de “aprender fazendo”, foram termos usados sinonimamente para designar as reformas educacionais que ocorreram em todo o Brasil durante 1927-35”. Pode-se notar por meio da influência direta e indireta de John Dewey (1859-1952) e Anísio Teixeira (1900-1971) a configuração da modernização no ensino que modificaram radicalmente seus conceitos educacionais e sua práxis política (BARBOSA, 2001, p. 56). Muitas das influências de Dewey no cenário da Educação Brasileira ainda estão presentes e podem ser vistas em várias linhas de pesquisa educacional, especialmente na educação infantil e artística.

É interessante ressaltar a ênfase dada na atividade prática, na valorização do entusiasmo com os alunos, na importância que o professor deve dar para ensinar questões pertinentes à resolução de problemas, para educar a criança de forma integral, promovendo o crescimento físico, emocional e intelectual, bem como estimular a criança a experimentar e pensar por si mesma. Para Dewey, educação é o “processo de reconstrução e reorganização da experiência, pelo qual lhe percebemos mais agudamente o sentido, e com isso nos habilitamos a melhor dirigir o curso de nossas experiências futuras” (DEWEY, 1978, p. 17).

Lorenzo Fernandez apreciou estes princípios do fazer musical, valorizando o ensino da música como experiência de vida, sem enfatizar somente a técnica e a teoria. Neste cenário, Antonio de Sá Pereira (1888-1966) escreve a obra inédita “Ensino Moderno de Piano” em 1933. Na introdução do livro, Pereira (1933, p. 3) deixa claro que os “três objetivos para os quais devem convergir todos os esforços do aluno são: aprender a ler, a governar os movimentos e a escutar atentamente”.

No magistério, as atividades de Lorenzo Fernandez sempre revelaram a preocupação com o ensino das disciplinas musicais. Criou em 1936 o Conservatório Nacional de Música, que logo mudou de nome para Conservatório Brasileiro de Música (CBM). “Os trabalhos do CBM caracterizavam-se sempre pelo elevado nível de ensino, bem como pelas intensas e diversificadas atividades de extensão”

(KIEFER, 1986, p. 82). Em 1937, Lorenzo Fernandez incentivou a inserção do curso de Iniciação Musical no CBM, apoiando o trabalho de Liddy Chiaffarelli Mignone (1891-1962) e Antonio de Sá Pereira, que afirmavam que a musicalização deveria preceder o ensino do instrumento, para educar o ouvido do aluno (PAZ, 2000, p. 60). Isto sem dúvida contribuiu grandemente para que o CBM fosse um importante centro de estudos e ensino para as crianças.

Segundo o catálogo de obras do compositor (1962), a obra pianística de Oscar Lorenzo Fernandez é de cerca de oitenta peças, sendo a primeira composta em 1918 intitulada “Duas Miniaturas” (KIEFER, 1986, p. 87). A predominância é de peças curtas isoladas ou apresentadas em coleções, como “Historietas Maravilhosas”, “Suíte das cinco notas”, “As Bonecas”, para citar algumas. Kiefer (1986, p. 88) observa que quase a metade das peças para piano tem como núcleo temático a criança, em suas histórias de fadas, em seus brinquedos, presentes e sonhos”. Suas peças para crianças podem realmente ser executadas por crianças, e o grau de dificuldade varia entre “muito fácil” e “fácil”. Para este autor, o compositor revela uma “preocupação com o mundo da criança, mas também com a própria criança enquanto estudante de música”. Durante mais de trinta anos, grande parte de suas composições foram dedicadas à infância, com peças curtas, escritas com "risonha fantasia, tão estimadas pelas crianças brasileiras que encetam o estudo do piano, ou que tomam parte em conjuntos orfeônicos, a essa atividade pedagógica. São duas faces da mesma preocupação com o ensino" (FRANÇA, 1950, p. 11). Em continuação, França (1950, p. 34) afirma que

as atividades didáticas de Lorenzo Fernandez se desdobravam em vários setores. No encerramento do ano letivo de 1944, seus colegas e discípulos promovem-lhe uma homenagem no Conservatório Brasileiro de Música, que um jornal carioca justifica nestes termos: “Professor da Escola Nacional de Música, professor de sucessivas gerações de brasileiros, num magistério particular que era disputado, e que vale por um título; professor, desde o início, do Curso de Formação de Professores de Música e Canto Orfeônico, hoje Conservatório Nacional de Canto Orfeônico; teve ânimo para criar, com alguns abnegados companheiros, o Conservatório Brasileiro de Música e, além disso, de realizar o quase milagre de instalá-lo excelentemente, em sede por enquanto sem par entre as das escolas musicais brasileiras” (FRANÇA, 1950, p. 34).

Para Brandão (1949, p. 13) “Oscar Lorenzo Fernandez impôs-se na história da música brasileira como uma das mais fortes expressões de um ecletismo extraordinário e de acentuada originalidade. A pujança de seu talento se manifestou em todos os gêneros: instrumental, vocal, lírico, de câmara, sinfônico e coral”. Sua vasta produção para piano, “está repleta do sentimento de brasilidade, traduzida na trama polifônica e nas sugestões rítmico-melódicas. Possuidor de rara sensibilidade, sua intuição era como que uma antena receptora captando as pulsações da vida brasileira”. Escreveu obras pianísticas em formas diversas, como os Três Estudos em Forma de Sonatina (1929), a Valsa Suburbana (1932), três Suítes Brasileiras (1936-1938), Variações para piano e Orquestra, dois concertos para piano, além de criações com temas infantis e peças descritivas.

França (1950, p. 10-11) afirma que Lorenzo Fernandez produzia muito, e que não compunha nas melhores horas do dia, mas nas sobras de tempo que o professor de ofício consagrava à composição. Em entrevista, Marina Fernandez confirmou que “ele chegava em casa, jantava, lia o jornal e depois das nove horas da noite ia pro gabinete. Aí ficava em silêncio absoluto. Não gostava de barulho. Era nessa hora que ele compunha e ficava ali até às três, quatro horas da manhã. Essa era sua vida de artista e músico”. Para ela, “ele sempre pensava no que fazia. Tudo dele era muito pensado. A música não era improvisada, eu acho que ele pensava, repetia, fazia, rebuscava. A gente encontrava às vezes temas dentro da gaveta que ele depois aproveitava, mas são coisas que têm significado” (FERNANDEZ, 2012). As composições de Lorenzo Fernandez foram muito tocadas, ouvidas e apreciadas em sua época, e como sempre “dividia as suas atividades entre a pedagogia e a criação musical” (...) havia “penetrado o pórtico da maturação criadora, e sua fecundidade vinha sendo incessantemente atestada por novos trabalhos” (FRANÇA, 1950, p. 42). Recebeu vários prêmios como o 1º prêmio no Festival de comemoração do IV Centenário de Bogotá, Colômbia, instituído pela New Music Association da California, USA (CACCIATORE, 2005). Por ocasião do seu centenário de nascimento, foram realizados vários concertos em sua homenagem, bem como foi lançado o selo comemorativo conforme Figura 8.

Figura 8 - Selo Comemorativo do centenário de Lorenzo Fernandez Fonte: stamps-ef.blogspot.com.br

Sobre seu estilo, Mariz (2005) comenta:

A paixão de Lorenzo Fernandez pelo estudo da harmonia fez com que o seu idioma musical fosse, a princípio, extremamente torturado. Não lhe agradava porém, a complexidade de algumas partituras modernas, e evoluiu de modo progressivo para um estilo singelo, mas refinado, que acabou por caracterizá-lo. Produziria obra de grande importância no cenário musical brasileiro, tanto pela riqueza e fluência da inspiração, quanto pela sólida estrutura formal (MARIZ, 2005, p. 199).

Em 27 de agosto de 1948, após reger o concerto comemorativo da Escola Nacional de Música, falece de forma súbita durante a noite. Sua trajetória, apesar de curta, foi altamente significativa nas atividades musicais do Rio de Janeiro entre 1928-1948. Desempenhou cargos importantes, teve prestígio como compositor, regente e professor, "uma personalidade extremamente insinuante e simpática, sua obra quase toda impressa davam-lhe um futuro muito promissor na música brasileira" (MARIZ, 2005, p. 197).

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