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Aspectos gerais da elaboração do concernimento no período em que a relação é ainda dual

O pai no estágio do concerniment o

1. Aspectos gerais da elaboração do concernimento no período em que a relação é ainda dual

Na primeira fase deste estágio, a criança descobre, paulatinamente, que ela é a mesma pessoa que vive tanto estados calmos e tranqüilos como também estados de forte

excitação, e isso ocorrejuntamente com a descoberta de que a mãe que ela ataca (mãe-

objeto) é a mesma que ela tanto ama e de que tanto necessita (mãe ambiente).

Essa descoberta traz ansiedade, medo e culpa, pois, segundo Winnicott, é quase intolerável “a um ser humano suportar a destrutividade que está na base dos relacionamentos humanos, ou seja, do amor instintivo” (1988, p. 93), juntamente com a evidência de que ela pode pôr a perder tudo aquilo de que ela mais precisa. Antes, quando a fome tomava conta, a criança não discriminava que a fome surgia dela mesma, e tampouco que era esse impulso voraz que a fazia atacar, e produzir “um buraco no

corpo cheio de riquezas da mãe” (1955c, p. 363). A criança dá-se agora conta de que não só faz buracos no corpo da mãe como sempre os fez e, pior, que continuará a fazê- los, pois estar vivo e continuar vivo implica em usar o mundo (pessoas e objetos) no qual se vive. Ou seja, ela constata a situação presente, retroage ao passado e projeta a necessidade futura. É essa a razão de Winnicott afirmar que, durante a conquista da capacidade para o concernimento, a criança alcança também um sentido mais completo de temporalidade.

Devido a esse novo alcance da experiência instintual, integrada agora na pessoalidade, começa a surgir na criança a capacidade para o sentimento de culpa, que vai dar início à capacidade de sentir-se responsável pela destrutividade que acompanha sua impulsividade amorosa. Ela passa agora a ser habitada por um sentimento de preocupação ou compadecimento (concern) em dois sentidos: quanto ao objeto do amor excitado e quanto às conseqüências no si-mesmo da experiência excitada (1955c, p.363)49. Aqui ocorre algo importante, pois surge na criança o sentido de valor, de que há coisas que merecem ser preservadas: a mãe tem valor por ser uma pessoa, tal como a própria criança, isto quer dizer: se dói em mim, dói na minha mãe também. A criança adquire, assim, a capacidade de se pôr no lugar do outro, ao que Winnicott denominou de identificação cruzada. Essa capacidade, porém, só é alcançada porque tem uma pré- história: a criança já foi objeto de identificação e de respeito por parte da mãe. Devido à sua identificação com o lactente, a mãe foi capaz de respeitar a condição de dependência extrema do bebê, reconhecendo e atendendo às necessidades deste, oferecendo uma experiência consistente de confiabilidade ambiental, que é a base para o desenvolvimento da capacidade de acreditar em... Tudo isso constitui o que Winnicott chamou de bondade originária (1963d). Dito de outro modo: o bebê que teve uma mãe suficientemente boa tem, em si, as pré-condições para desenvolver gradualmente a capacidade de ser moral, isto é, de tornar-se responsável pelas conseqüências que advêm do fato de estar vivo e de querer permanecer vivo.

Mas, bem no começo dessa fase, a criança teme a destruição que advém de sua excitação. Ela fica muito assustada com a potência impulsiva e destrutiva que acaba de

49 Estou adotando, para o termo concern, a tradução sugerida por Elsa O. Dias e Zeljko Loparic, de

concernimento; e para o termo ruthlessness, a tradução por incompadecimento. David Bogomoletz, tradutor de Winnicott para o português, também tem adotado esta mesma terminologia, criticando duramente, por exemplo, os casos em que ruthlessness foi traduzido por crueldade (conforme ocorreu na

descobrir. É nesse momento que a atitude da mãe é essencial para que a criança possa elaborar todas as conseqüências da recém-descoberta impulsividade. Dois aspectos fundamentais dessa atitude devem ser salientados. O primeiro é relativo à sobrevivência da mãe: esta sobrevive ao ataque impulsivo da criança no sentido de não revidar, como se tivesse sido pessoalmente atacada e espoliada, e de não reagir moralmente ao ataque da criança, como se se tratasse de crueldade a ser domesticada. Ao contrário, a mãe continua consistentemente sendo ela mesma, a mesma mãe que a criança conhece, mesmo que um pouco zangada. A mãe não trai a confiança da criança, não altera a disposição amorosa fundamental, mesmo que ponha limites ao uso impulsivo que esta, em vias de tornar-se compadecida, faz dela.

Essa atitude geral da mãe humaniza as idéias aterrorizantes da criança, e dá condições para que a criança possa ir encontrando uma dose de tolerância com relação à ansiedade que advém dos seus impulsos destrutivos:

A criança fica excitada, com impulsos agressivos ou destrutivos que se manifestam através de gritos e desejos de morder, e, imediatamente, o mundo parece repleto de bocas mordentes, garras e dentes hostis, e toda sorte de ameaças. Assim, o mundo infantil seria um lugar aterrador se não fosse o papel protetor da mãe que, de um modo geral, encobre esses medos enormes que pertencem à experiência inicial da vida do bebê. A mãe (e não estou esquecendo o pai) altera a qualidade dos medos da criança pequena por ser um ser humano. Gradualmente, ela é reconhecida, pela criança, como um ser humano. Assim, ao invés de um mundo de retaliações mágicas, a criança adquire uma mãe que compreende, e que reage aos impulsos da criança. Mas a mãe pode ser ferida e ficar zangada. Quando digo as coisas deste modo, vocês podem perceber imediatamente que faz uma enorme diferença, para a criança, se as forças retaliatórias forem humanizadas (1993c, p. 122).

O segundo ponto, essencial, é que a mãe “segura a situação no tempo”. Isto quer dizer que existe um tempo, entre a manifestação da impulsividade e o susto com relação ao possível estrago feito, durante o qual a criança terá que conviver com a culpa, após o que ela retorna à mãe para certificar-se de que esta sobreviveu e para reparar o estrago, oferecendo um pequeno gesto de reparação. A mãe deverá estar lá para receber a dádiva que repara. Se ela se ausentar, nesse

meio tempo, ou se não souber reconhecer o gesto da criança, esta não saberá o que fazer com a culpa. Winnicott diz que

a criança está capacitada para começar a aceitar plena responsabilidade por toda essa implacável destruição, porque também reconhece os gestos que indicam um impulso para dar, e sabe por experiência que a mãe estará presente no momento em que aparecerem os verdadeiros impulsos amorosos (1993c, p. 124).

Se, ao contrário, todo o ciclo for completado repetidas vezes, a criança é introduzida no chamado círculo benigno, cuja legenda poderia ser: machucar e sarar ou fazer buracos e remendar. Se a mãe sustenta a situação no tempo e sobrevive, dia após dia, “o bebê tem tempo para organizar as numerosas conseqüências imaginativas da experiência instintiva e resgatar algo que seja sentido como ‘bom’, que apóia, que é aceitável, que não machuca, e com isto pode reparar imaginativamente o dano causado à mãe” (1988, p. 90).

Quando a atitude da mãe favorece a entrada no círculo benigno – reconhecendo a enorme necessidade que seu filho tem agora de, repetidas vezes, experienciar esse destruir-reparar sem qualquer tipo de retaliação por sua parte –, a impulsividade deste fica preservada, pois, como a destrutividade é inerente, ele, ao invés de inibir o impulso, o exerce e machuca, sabendo já o caminho para fazer sarar. Isso significa que a criança que se apropria de sua potência, tanto para a destrutividade quanto para a reparação, estará apta a fazer uso de sua impulsividade destrutiva sem medo da destruição total.

Gradualmente, irá se desenvolver, na criança, uma tolerância cada vez maior com respeito ao sentimento de culpa e uma possibilidade aumentada de aguardar pela oportunidade de reparação. Esta irá se traduzir no sentimento de que há sempre algo a fazer para melhorar as coisas. Winnicott fala que “a criança vai ficando gradualmente apta a tolerar sensações de ansiedade a respeito dos elementos destrutivos nas experiências instintivas, conhecedora de que haverá oportunidades para a reparação e reconstrução” (1993c, p. 124). À medida que amadurece, e ao longo da vida, a necessidade de reparação será exercida em termos de brincadeiras criativas e trabalho construtivo. Em outro texto, Winnicott reforça a idéia de que “a conseqüência do fortalecimento, dia após dia, do círculo benigno é a de que o bebê torna-se capaz de

sentimento de culpa. Esta é a única culpa verdadeira, visto que a culpa implantada é falsa para o eu” (1955c, p. 365). Ela nasce da experiência pessoal da criança de saber que o objeto de amor e de destruição sobrevive e que, depois de ferir, ela terá a chance de curar. O autor diz que “o equilíbrio aí implícito [entre destruir e reparar] acarreta um sentido de justo e de errado mais profundo do que quaisquer normas meramente impostas pelos pais” (1949g, p. 108).

Vale ressaltar que, na linha do amadurecimento, as experiências de potência da criança que, no início da vida, começam com o poder, experimentado pelo bebê, de iluminar o rosto da mãe, e se desenvolvem de maneira específica no decorrer de cada fase, ganham aqui, na experiência que caracteriza o estágio do concernimento, uma nova força, abrindo caminho para novas conquistas em estágios mais avançados. Ou seja, é essa potência que a criança reconhece em si, de fazer danos à mãe e de também poder reparar esses danos, que irá contribuir e desembocar na potência sexual e relacional do Complexo de Édipo, como explicitarei adiante. Como se pode ver, essas experiências de potência nem sempre são de caráter instintual – como é a que ocorre no estágio do concernimento – pertencendo muitas vezes à linha identitária do amadurecimento, como foi a de iluminar o rosto da mãe.