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O pai na fase de dependência relativa

2. Aspectos do pai que começam a ser diferenciados pelo bebê nos cuidados maternos

Mas assim que o bebê dá mais um passo em direção a um maior amadurecimento, certas características do pai – força, determinação e solidez – começam a ser sentidas pelo bebê, ainda que nesse momento todas essas características sejam vividas como sendo aspectos da mãe (o bebê começa a entrar em contato com os

aspectos duros da mãe).Segundo Winnicott, a figura materna vai sendo duplicada como

resultado da experimentação que o bebê começa a realizar, no transcorrer do período de dependência relativa, com uma mãe que é subjetiva, ou seja, faz parte de seu si mesmo, mas também, e ao mesmo tempo, já pode ser vista pelo bebê com suficiente objetividade para ser colocada, digamos assim, na linha de fronteira de sua onipotência.

É com relação a essa duplicação do papel materno que o que é paterno46 começa a se

esboçar.

O pai entra no quadro geral de duas maneiras. Até certo ponto, ele é uma das duplicações da figura materna Nos últimos cinqüenta anos, tem havido nesse país uma mudança na orientação, de tal modo que os pais se tornaram muito reais para seus filhos no papel de duplicações da mãe do que eles eram, parece, décadas atrás. No entanto isso interfere com outra característica do pai, segundo a qual ele acaba entrando na vida da criança como um aspecto da mãe que é duro, severo, implacável, intransigente, indestrutível, e que, em circunstâncias favoráveis, vai gradualmente se tornando aquele homem, alguém que pode ser temido, odiado, amado, respeitado. (1986d, p. 127)

O fato do pai, cada vez com maior freqüência nos dias atuais, ocupar o lugar da mãe, fazendo às vezes dela por determinados momentos, não deve interferir, como diz o autor, na outra importante atuação sua no ambiente, que tem mais a ver com seu lado masculino. O bebê, que só passa a ter maturidade suficiente para se relacionar diretamente com o pai na época em que está vivendo as questões relativas ao estágio do

concernimento tem, antes disso, via mãe, essas experiências originárias com o que, um dia, será majoritariamente reunido na pessoa do pai. Aos poucos a criança terá condições de discriminar essas diversas características da mãe e atribuirá à figura

46 Acho possível interpretar que as palavras “materna (o)” e “paterno (a)” são utilizadas por Winnicott, na maioria das vezes, respectivamente, como sinônimos de “elemento feminino puro” e de “elemento masculino puro”. Mais à frente detalhei um pouco mais essa questão.

masculina do pai, a maioria dos aspectos da mãe que estão relacionados à firmeza, solidez, força, rigor, etc. Diz Winnicott:

Se começarmos pelos primeiros tempos, podemos observar que o bebê, antes de mais nada, conhece a mãe. Mais cedo ou mais tarde, certas qualidades maternas são reconhecidas pela criança e algumas delas – maciez, ternura – ficam sempre associadas à mãe. Mas a mãe também possui toda a sorte de qualidades austeras: por exemplo, pode ser ríspida, severa, e rigorosa; com efeito, a pontualidade dela acerca das mamadas é tremendamente apreciada pelo bebê, logo que pode aprender a aceitar o fato de que não pode ser alimentado exatamente quando lhe apetece. Eu diria que certas qualidades da mãe, que não fazem essencialmente parte dela, reúnem-se gradualmente na mente infantil; e essas qualidades atraem sobre si próprias os sentimentos que o bebê, com o tempo, acaba por dispor-se a alimentar em relação ao pai. É incomparavelmente melhor ter um pai forte, que pode ser respeitado e amado, do que apenas uma combinação de qualidades maternas, normas e regulamentos, permissões e proibições, coisas inúteis e intransigentes. Assim, quando o pai entra na vida da criança, como pai, ele chama para si sentimentos que a criança já alimentava em relação a certas propriedades da mãe e, para esta, constitui um grande alívio verificar que o pai se comporta da maneira esperada. (1945i, pp. 128-129; os itálicos são meus)

É interessante, nesta citação, sublinhar a idéia de que é o bebê que começa, a seu tempo, a reunir, na figura do pai, determinadas qualidades que antes eram atribuídas à mãe. Não é, portanto, o pai que decide sobre sua entrada na vida do filho, embora esteja disponível e desejoso de ser “o papai”, mas sim o bebê que, à medida em que se separa da mãe, e do ambiente total, vai reunindo e, de certa maneira, criando a presença do pai em sua vida: o bebê amadurece e, a partir dos cuidados maternos, avançando na direção da independência, encontra o pai.

Um outro aspecto da citação merece nota: neste trabalho já foi falado que o pai

não pode ser a mãe (1945i, p. 128), mesmo que alguns consigam ser excelentes

substitutos maternos durante certo período de tempo. Aqui encontramos também a idéia de que, quando chegar o momento do pai entrar na vida da criança como pai, tampouco a mãe poderá ocupar o lugar do pai; ao menos não aquele pai que a criança precisará

comparece, no máximo, como “uma combinação de qualidades maternas, normas e regulamentos, permissões e proibições, coisas inúteis e intransigentes”(idem). Porventura, se não houver um pai (ou substituo paterno), há que se encontrar alguma boa saída para essa dificuldade, sem que isso signifique, apenas, uma sobrecarga para a mãe.

Note-se também que essas primeiras experiências com o que é paterno estão dentro do âmbito do conjunto de cuidados que constituem o si-mesmo do bebê, e nada têm a ver com a situação, muito posterior do processo de amadurecimento, na qual o pai é vislumbrado ou representado pela criança como um outro, (sendo que, primeiramente, ele será um não-eu, diferenciado da mãe e dela mesma e, mais tarde, será um dos pólos do triângulo edípico) num momento em que a criança já está integrada o suficiente para reconhecer as pressões instintuais como suas e, portanto, ter condições de viver as relações com o casal parental também nos seus aspectos eróticos. Aqui, a entrada do pai na vida da criança ou, mais precisamente, do contato com aspectos paternos, não é uma entrada violenta ou traumática, e nada tem a ver com qualquer situação em que esteja implicada uma separação da mãe: as mudanças vão ocorrendo dentro da relação mãe- bebê, na natureza desta relação, e não a partir da dissolução desta. O pai aqui não é interventor ou interditor desta relação, ao contrário, ele é o sustentador dela para que o amadurecimento natural da relação mãe-bebê possa ir ocorrendo.

Os aspectos paternos que a criança começa a sentir nos cuidados maternos – de uma mãe que já não mais precisa adaptar-se totalmente ao bebê, deixando transparecer, assim, aspectos de sua exterioridade, de sua independência, de já não ser mais totalmente assimilável pelo bebê – têm uma qualidade, uma textura, por assim dizer, diferentes daquelas que a criança sempre conheceu na mãe: trazem firmeza, ordem, uma maior objetividade, um certo aspecto de dureza e de inflexibilidade na vida da criança. É interessante notar que se o colo da mãe não estiver, neste período em que a dependência esta sendo aliviada, acrescido dessas qualidades paternas, a mãe possivelmente contará apenas com sua própria força e não terá, por assim dizer, o reforço de que necessita – precioso nesse momento devido a árdua tarefa que já vem desenvolvendo há meses e ao seu possível estado de cansaço –, encontrando, assim, maiores dificuldades para operar a separação que precisa realizar com o bebê. Por outro lado, o bebê que não entra em contato com um colo – que é seu ambiente mais familiar – acrescido agora dessas novas características, também não é ajudado pelos sinais que

expressariam algo do início da desmistura da mãe, tornando mais difícil, deste modo, o processo de separação.

É possível pensar, embora Winnicott apenas tenha apontado caminhos para tais hipóteses, que essas experiências originárias com o que é paterno dizem respeito ao contato do bebê com o “elemento masculino puro” da mãe, que começa a poder ser diferenciado pelo bebê a partir das conquistas referentes ao estágio do uso do objeto, quando ele não mais precisa viver sob os cuidados adaptativos de tipo absoluto de sua mãe e já conquistou a capacidade de se relacionar com objetos externos. O fato de relacionar-se com o que é paterno na mãe, discriminando qualidades no cuidado materno, expressa um amadurecimento do bebê. Antes, a relação do bebê era apenas com o “elemento feminino puro” (ser) presente tanto na mãe quanto no pai. Portanto, se no estágio de dependência absoluta, as relações do bebê eram apenas com objetos subjetivos (e as relações de cuidado eram todas baseadas na identificação primária), a partir desta etapa do amadurecimento, o bebê começa a poder se relacionar também com objetos objetivamente percebidos na realidade exterior e a confrontar-se com esses objetos, estabelecendo com eles um tipo de relação que agora também envolve o fazer. Ou seja, as relações que o bebê estabelece agora, com a mãe já externalizada, passam a comportar outros aspectos, sendo que alguns deles correspondem, como já foi dito, àquelas qualidades que dizem respeito ao pai.

Na parte III do texto, “Sobre os Elementos Masculinos e Femininos Ex-cindidos [Split off]”, Winnicott escreve: “No arcabouço deste conceito, que lida com um problema humano universal, pode-se ver que bebê = seio é uma questão de ser, não de fazer, enquanto que, em termos de confrontação, o encontro do bebê e do seio envolve fazer” (1972c, p. 150). Em um artigo recente, de 2006, ao analisar os elementos da sexualidade humana, Loparic conclui que

ao caracterizar como essencial o conflito entre ser o objeto e confrontar-se com o objeto, Winnicott deu um novo peso à transição da fase na qual o ambiente, identificado com o bebê, lhe facilita “surfar” na onda das tensões instintuais para a fase em que o próprio bebê precisa começar a agir sobre os objetos externos, separados dele e constituídos devido aos impulsos efetivos de destruir objetos subjetivos.47 (Loparic 2006b, p. 349)

Ao começar a se diferenciar da mãe, mas, ainda, de dentro da unidade que forma com ela, o bebê pode, por vezes, como que num relance, “olhar” para fora dos limites dessa unidade e encontrar ali o pai, ainda que essa possibilidade, que está nascendo agora para o bebê, logo se perca, misturando-se novamente aos cuidados da mãe. Embora isto não esteja descrito literalmente em Winnicott, é possível hipotetizar aqui que, nos bons casos, a existência não-invasiva, mas constante do pai no ambiente (como se ele não desistisse de estar ali a despeito das possibilidades do bebê de percebê-lo), alternando com a mãe os cuidados com o filho, contribua e propicie para que o bebê tenha essas rápidas “sensações” do próprio pai.