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O pai no estágio da dependência absoluta

3. O pai como holding para a mãe

Para que a mãe tenha condições de propiciar esse tipo de ambiente suficientemente bom para o bebê, a presença, iniciativa e disponibilidade do pai para fazer a sua parte são indispensáveis. Além de mãe substituta, um outro importante papel do pai, nesse início da vida do bebê, poderia ser reunido no conjunto de formas de suporte que a mãe necessita para realizar suficientemente bem a sua tarefa com o bebê, tratando-se, em última análise, de um tipo especial de holding à mãe.

Winnicott fala que, entre outras coisas, a mãe cria, com seu corpo e cuidados, um espaço para o bebê habitar. É interessante notar que, de certa maneira, o pai também cria um espaço para que a mãe, seguramente assentada nele, possa se entregar ao estado de preocupação materna primária. Ele diz que

Nesse ponto o pai pode ajudar. Pode ajudar a criar um espaço em que a mãe circule a vontade. Adequadamente protegida pelo seu homem, à mãe é poupado o trabalho de ter que se ocupar das coisas externas que aconteçam à sua volta, numa época em que ela tanto precisa concentrar-se, quando tanto anseia por preocupar-se com o interior do círculo formado pelos seus braços e no centro do qual está o bebê. (1949b, p. 27)

Isso é necessário, pois, nesses momentos, as mães se encontram, também elas, num grande desamparo devido a seu estado de preocupação materna primária e elas têm “necessidade de proteção enquanto se encontram neste estado que as torna vulneráveis” (1968d, pp. 83 e 91). Nesse sentido, Winnicott lembra que

certamente algo acontece às pessoas quando elas se vêem confrontadas com o desamparo que supostamente caracteriza o bebê. [...] Poderíamos quase dizer que as pessoas que cuidam de um bebê são tão desamparadas em relação ao desamparo do bebê quanto o bebê o é. Talvez haja até mesmo um confronto de desamparos. (1987d, p. 91)

Em muitas passagens de sua obra, Winnicott aponta esse desamparo da mãe, insistindo na extrema importância do suporte que o pai oferece a ela quando, identificada com seu bebê, está também parcialmente regredida e, de alguma maneira, dependente. Ele diz que é

importante, embora óbvio, notar que, estando a mãe no estado que descrevi, ela se torna uma pessoa muito vulnerável. Nem sempre isso se nota, devido ao fato de em geral haver algum tipo de proteção estendida em torno da mãe, proteção esta organizada talvez por seu marido... É no caso de uma ruptura das forças protetoras naturais que se constata o quão vulnerável é a mãe. (1965vf, p. 23)

Os chamados distúrbios mentais puerperais, a que as mulheres estão sujeitas, se vinculam, não raras vezes, a um possível colapso dessa cobertura protetora. Quando isso acontece, diz Winnicott, pode ficar difícil às mães se voltarem para dentro e esquecerem de todos os perigos externos, e, assim sendo, elas dificilmente chegam a atingir o estado de preocupação materna primária.

A tarefa da mãe envolve grande responsabilidade e dedicação praticamente exclusiva, pelo menos neste começo de vida do bebê. Ainda que quase tudo neste início diga respeito mais diretamente a ela – a própria gravidez, a amamentação, os cuidados específicos, – sentir-se sozinha nisto tudo ou acompanhada e ajudada, faz uma imensa diferença. Winnicott lembra que

A expressão holding the baby (segurar o bebê) tem um sentido preciso em inglês; alguém que o estava ajudando a fazer alguma coisa desapareceu, e você

ficou “segurando o bebê”. Por aí podemos ver que todos sabem que as mães têm, naturalmente, um senso de responsabilidade, e se estiverem com um bebê em seus braços estarão envolvidas de algum modo especial. É claro que algumas mulheres são deixadas literalmente “segurando o bebê”, quando o pai não consegue gostar da parte que lhe cabe e não é capaz de dividir com a mulher a enorme responsabilidade que um bebê deve sempre representar. (1957m, p. 14)

Nesse ponto, não seria demais afirmar que o papel do pai, de protetor da mãe ou de organizador de uma proteção estendida para a mãe, torna-se uma das condições fundamentais – sem esquecer das outras condições que dependem da própria saúde física e emocional da mãe – para o desempenho daquilo a que chamamos de mãe suficientemente boa. Vai nesse mesmo sentido esta outra afirmação de Winnicott:

Esta orientação especial da parte da mãe para com seu lactante não depende apenas de sua saúde mental, mas é afetada também pelo ambiente. No caso mais simples o homem, apoiado pela atitude social que é, em si, um desenvolvimento da função natural do mesmo, lida com a realidade para a mulher, de modo a tornar seguro e razoável para ela se tornar temporariamente introvertida e egocêntrica. (1965m, p. 135)

É natural a constatação de que todo esse efetivo cuidado paterno – com relação à qualidade do ambiente em que a dupla mãe-bebê habita e com relação ao atendimento das necessidades especiais da mãe –, faz parte do colo materno que o bebê recebe. Daí a necessidade de se conjeturar que, nas formulações de Winnicott, está contida a idéia de que a mãe e o pai, juntos, compõem o ambiente (total) que o bebê precisa encontrar para amadurecer, ainda que o lugar do pai não seja o mesmo da mãe na relação direta

com o bebê. Nesse sentido, o colo da mãe é, por assim dizer, composto, sendo o pai um componente dele (se pensarmos em um raio ainda maior de abrangência, poder-se-ia, então, afirmar que o colo da mãe é múltiplo, e aí se incluiriam também as qualidades da

mãe da mãe, das suas irmãs, amigas, tias etc42). A partir disso é também necessário

considerar, que o “mal” que o pai pode vir a fazer à mãe, descuidando, não a acolhendo ou mesmo desfazendo-se dela, fica na mãe e atinge o seu colo, não como símbolo, mas como experiência vivida: é também com essa experiência que o bebe irá, de alguma forma, se relacionar. É com relação a este ponto que Winnicott faz uma consideração interessante, chamando a atenção para os prejuízos da ausência do pai real no ambiente, o que isso pode causar ao bebê e também à mãe, nos seus sentimentos, no seu colo e no seu comportamento.

Se o pai morre, isso é importante, bem como o momento exato da vida do bebê, em que ele falece, e há muita coisa também a ser levada em conta que tem a ver com a imago do pai na realidade interna da mãe e com o destino dessa imago aí. Encontramos hoje todas essas questões aparecendo para revivescência e correção no relacionamento transferencial, questões que não são tanto de interpretar, mas de experienciar. (1989xa, p. 188)

O conceito de imago, usado por Winnicott nessa passagem, é junguiano. Para evitar que seja confundido com simples representação inconsciente, derivada da percepção, é importante esclarecer que, em Jung, o termo “imago” designa a imagem de um objeto enriquecida de elaboração imaginativa e, mais tarde, de fantasia, e dotada de uma força, a qual não provém da libido – energia que, como tal, não tem história –, mas da memória das situações interpessoais, guardadas como uma história pessoal.43

Portanto, uma interpretação possível do sentido de imago, para Winnicott, nesse trecho, é aquilo que permanece, como memória viva, embora nem sempre consciente, dos modos de presença e da relação viva e significativa com determinadas pessoas, ao longo da história pessoal, no presente caso, da história das relações pessoais da mãe com o pai e do que permaneceu, nela, após a morte dele.

Sabemos que Winnicott acredita ser a esquizofrenia infantil um grave problema de falha ambiental. Ele diz: “Em meu trabalho ‘Psicose e cuidado infantil’, que

complexa (à medida que a criança fica mais velha) de introduzir o princípio de realidade, ao mesmo tempo em que devolve a criança à criança” (1971f, p. 5).

43 Ao usar o termo imago pela primeira vez, em sua obra, Jung afirma que a imago da mãe, por exemplo, tira a sua força “única e exclusivamente da inclinação do filho de não olhar tão somente para frente, e de não trabalhar tão somente para o futuro, mas de retornar o olhar para trás, para as macias doçuras da infância, para aquela maravilhosa irresponsabilidade e segurança na vida com as quais, alguma vez no passado, a guarda protetora da mãe nos cercou” (Jung 1938, p. 289). Agradeço ao meu orientador, Zeljko Loparic, a indicação e a tradução do texto de Jung. Para maiores esclarecimentos sobre o sentido de imago, em Jung, conferir Laplanche e Pontalis 1986 [1967], p. 305).

apresentei em 1952, surpreendi a mim mesmo dizendo que a esquizofrenia é uma doença de deficiência ambiental [...] (1989vl, p. 97). Assim, uma boa parte da profilaxia de graves transtornos e doenças emocionais têm na qualidade desse ambiente, na sua existência ou não, a sua possibilidade. A mãe, que é o ambiente direto do bebê que acaba de nascer, precisa, para poder ser devota a seu filho, ter assegurada as condições para isto, e a contribuição do pai, nesse sentido, ao dar holding a ela e ao compor junto com ela o ambiente total do bebê, é fundamental. A carta de Winnicott ao Observer, de 12 de outubro de 1964, ilustra a importância dessa devoção da mãe, e eu aqui chamo a atenção para algumas das fundamentais condições, no caso o holding que o pai dá à mãe, que a viabilizam. Diz o autor:

Aquilo que um bebê precisa da mãe, bem no início, ou seja, pouco antes do nascimento e logo depois, é algo que tem pouco, se é que tem alguma coisa, a ver com inteligência. Parece-me razoavelmente óbvio que aquilo de que o bebê necessita é, antes de mais nada, da capacidade da mãe de dispensar atenção plena. Introduzi, neste caso, a palavra ‘devoção’ sob risco, porque existem pessoas que associam essa palavra a sentimentalismo. É provável que exista uma concordância bastante ampla quanto a isso, e em minhas pesquisas percebo que é um fracasso neste ponto que predispõe ao autismo às vezes chamado esquizofrenia infantil. O oposto da devoção é a carência de devoção, ou uma incapacidade da mãe se devotar por algumas semanas a essa função especial. Uma mãe que mantém certa porção de si mesma não envolvida durante os últimos estágios da gravidez ou durante os estágios iniciais imediatamente após o nascimento do bebê, corre o risco segundo minhas pesquisas, de interferir nos processos de desenvolvimento emocional do bebê, de modo tal que existe o perigo da doença da espécie que é classificada como autismo. (1964e, p. 123)

O que poderia se passar com o bebê se a mãe ao invés de estar despreocupadamente atenta às necessidades de seu filho, estivesse, por outro lado, tensa e aflita com respeito, por exemplo, às dificuldades referentes a seu trabalho, a seu marido, ou à escola de seu filho mais velho, ou se ela se sentisse sozinha, ou ficasse deprimida, achando-se a única responsável por isso tudo. Winnicott fala sobre essas

no meu trabalho, aprendi muito sobre as dificuldades que as mães enfrentam quando não desfrutam uma posição favorável. Talvez tenham grandes dificuldades pessoais, de modo que não podem ter um bom desempenho, mesmo quando são capazes de ver o caminho; ou têm maridos que estão longes, ou que não fornecem um apoio adequado, ou que interferem, que são até ciumentos; algumas não têm marido, mas têm ainda que criar o bebê. (1993f, p. 36)

Winnicott ressalta a obviedade destas questões e, talvez, também por isso mesmo, não deixa de enfatizá-las, pois é exatamente delas de que depende, em grande parte, a maneira como a criança poderá ou não ter as condições necessárias para um amadurecimento saudável. Retomando essa questão, ele descreve como o pai pode ser uma pessoa importante

ajudando a criar um lar, e pode ser um bom substituto para a mãe, ou pode ser importante de um modo mais masculino ao dar à esposa o apoio e o sentimento de segurança que ela pode transmitir à criança. Não será necessário considerar completamente esses detalhes tão óbvios, ainda que muito significativos. Verificar-se-á, contudo, que esses detalhes variam muito, e que o processo de crescimento do próprio lactente é impelido nesse sentido e de acordo com o que ele obtém. (1965r, p. 84)

Conceição Serralha Araújo, em sua pesquisa sobre “As contribuições de D.W.Winnicott para a etiologia e a clínica do autismo” (2002), detalha e aprofunda a idéia de que uma grande insegurança e desamparo da mãe, logo no início da vida do bebê, poderia impedi-la de regredir a um estado de preocupação materna primária que lhe daria as condições para a identificação e o atendimento das necessidades do bebê, ela diz:

Na minha experiência clínica com crianças autistas, um dos pontos evidenciados por Winnicott consonantes com a minha prática, que gostaria de destacar, é a situação de desamparo da mãe. Esse desamparo nem sempre percebido à primeira vista, às vezes não é reconhecido nem mesmo por ela, em razão das defesas erigidas contra os sentimentos de se encontrar “perdida”, só, vulnerável. (Araújo 2006, p. 63)

É importante sublinhar que, além do pai, a mãe também já necessitou de um obstetra e de uma enfermeira, da estrutura competente de um bom hospital, e continua a precisar de um bom pediatra44 que a oriente no que diz respeito à saúde do bebê, de um médico que a conheça e com quem possa contar, do acolhimento e da segurança que a família proporciona, e, de uma forma mais geral, o casal depende de algumas condições sociais e de uma razoável estabilidade, por exemplo, em termos de moradia, da constância e do sentimento de pertencimento ao ambiente social no qual estão inseridos (cf. 1949n, p. 121). Winnicott diz

Acontece que este adaptar-se dos processos de maturação da criança é algo extremamente complexo, que traz tremendas exigências aos pais, sendo que inicialmente a mãe sozinha é o ambiente favorável. Ela necessita de apoio por esta época, que é melhor dada pelo pai da criança (digamos seu esposo), por sua mãe, pela família e pelo ambiente social imediato. Isso é terrivelmente óbvio mas, apesar disso, precisa ser dito. (1965r, p. 81)

Embora não restem dúvidas de que todos esses elementos de sustentação sejam importantes, e, de certa forma, interdependentes, cada qual desempenhando um papel específico, Winnicott nunca deixa de ressaltar a qualidade e o valor diferenciado do apoio que o próprio pai da criança, ou o marido, pode oferecer à mãe – dada à natureza da relação entre eles, à cumplicidade de ambos com relação aos filhos, a responsabilidade na tarefa de educar, e a estrutura familiar que, como casal, eles estabelecem. É o pai que, em última instância, ocupa o papel princeps de dar holding à mãe, especialmente durante todo esse período em que ela está cuidando do desamparo de seu bebê. Winnicott considera que

a tentativa que os pais fazem de proporcionar a suas crianças um lar onde elas possam crescer enquanto indivíduos, adquirindo aos poucos uma capacidade de identificar-se com os pais e com agrupamentos mais amplos, esta tentativa, dizia, deve estar presente desde o início, quando a mãe trava contato com seu

bebê. O pai, aqui, tem a função de um agente protetor que, cuidando de tudo ao mais, permite que a mãe se dedique inteiramente ao bebê. (1950a, p. 236)

Mas é claro que o principal é a saúde emocional e a disponibilidade da mãe e do pai para criarem o bebê. Mas de forma alguma seria correto, nesse ponto, o esquecimento do fator acaso, daquilo tudo que pode acontecer, mas que está fora do alcance e controle dos pais. Os fatos da sorte e os do azar, por assim dizer: a mãe que precisa ser hospitalizada assim que o bebê nasce, ou o pai que por qualquer motivo involuntário não pode estar presente em casa, ajudando e cuidado da mãe e do bebê. Situações como estas podem mudar e distorcer irremediavelmente aquilo que, na origem, seriam os bons cuidados de que o bebê necessita. Como fica claro em Winnicott, a responsabilidade com relação aos filhos, continua sendo dos pais, e isso não é o mesmo que atribuir culpas. Em todo o caso, dependerá principalmente dos pais, – mas também daqueles que perfazem o círculo total no qual o bebê habita, ainda que num nível diferente – a remediação do problema, seja através do mimo, da procura de ajuda profissional para os problemas que se apresentaram, etc..

Um outro aspecto do papel paterno, diz respeito ao fato de que a presença do pai no ambiente acrescenta, aos cuidados maternos de que o bebê tanto necessita, juntamente com as qualidades de segurança e bem-estar para a mãe, os alicerces do sentido de família (que só serão solidamente apropriados pela criança numa etapa posterior de maior amadurecimento, por volta do período edípico, como será mencionado mais à frente). O suporte que o pai fornece é, por assim dizer, mais do que o suporte comum que uma pessoa dá a outra, ele é a pessoa mais indicada para, ao lado de sua esposa, criar o ambiente estável, indestrutível e acolhedor onde seus filhos vão crescer.

Capítulo III