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O pai na fase de dependência relativa

3. O pai como primeiro vislumbre de unidade

Num texto tardio, 1969, “O uso de um objeto no contexto de Moisés e o

Monoteísmo”, Winnicott aponta um outro importante uso que o bebê pode fazer da figura paterna, utilizando-o como uma espécie de diagrama para a sua própria

integração48, num momento em que esta integração ainda não foi conquistada por ele.

Diz o autor:

À medida em que o bebê se desloca do fortalecimento do ego, devido a ser ele reforçado pelo ego da mãe, para a posse de uma identidade sua, própria, isto é, à medida em que a tendência herdada à integração faz o bebê avançar no meio- ambiente suficientemente bom para o expectável médio, a terceira pessoa desempenha ou parece desempenhar um grande papel. O pai pode ou não ter sido um substituto materno, mas em alguma ocasião ele começa a ser sentido

deixa claro que a identidade bebê=seio é uma questão de ser, enquanto que a confrontação entre bebê e seio envolve fazer. Ele permite também entender porque a oposição entre ser e fazer se constitui num “problema humano universal” que decorre da incompatibilidade entre a tendência para integração por

identificação primária, definitória da natureza humana e inerente à experiência de ser, e a tendência, igualmente presente nessa natureza, para a desintegração – perda da integração resultante da identificação primária – por objetificação, característica essencial do fazer. Muito mais do que o desmame, o que dói no ser humano é a necessidade de reconhecer que, devido à estrutura temporal do seu existir, depois de experienciar a identidade total como o real, base inicial da sua capacidade de existir, ele terá que passar, para poder continuar existindo, pela experiência da diferença total. Dito de outra, maneira, o seu dilema básico é insolúvel. Não havendo meios de ser resolvido, pode ser esquecido ou, então, assumido e

suportado, isto é, tolerado” ( Loparic 2006b, pp. 350 -351).

48 Note-se que Winnicott não usa neste momento a palavra modelo, que é um termo

mais relacionado à percepção objetiva. Winnicott utiliza aqui a palavra diagrama provavelmente por estar se referindo à elaboração imaginativa, à possibilidade de o bebê fazer, via elaboração imaginativa (“dação de sentido”), um diagrama da coesão psicossomática que faz parte da integração do eu. (Cf. Loparic 2000a).

como se achando lá em um papel diferente, e é aqui que sugiro que o bebê tem probabilidade de fazer uso do pai como um diagrama para a sua própria integração, quando apenas se torna, às vezes, uma unidade. Se o pai não se encontra lá, o bebê tem de fazer o mesmo desenvolvimento, mas de modo mais árduo, ou utilizando algum outro relacionamento que seja bastante estável com uma pessoa total. (1989xa, p. 188)

Essa citação é interessante, pois ela serve para exemplificar um dos pontos da mudança paradigmática proposta por Winnicott: ao invés de simplesmente interventor, o pai surge antes, não como lei, mas como modelo de integração, antecipando o indivíduo unitário que vai chegar a si.

Vale a pena observar que o “Moisés” de Winnicott, em seu texto “Moisés e o

monoteísmo”, não produz leis – aos homens atormentados pela ambigüidade de seus desejos –, mas oferece – à criança que amadurece rumo ao estatuto de unidade – o diagrama do ser unitário, o diagrama da integração. Trazendo a questão para o contexto do estágio do uso do objeto, portanto, para um momento anterior ao do contexto edipiano, Winnicott reinterpreta o sentido do monoteísmo dado por Freud. Neste último, figura um ‘pai’ que está ligado à idéia de um Deus uno, todo-poderoso, idealizado, fruto da necessária repressão dos laços libidinais e agressivos nutridos em relação a ele: um pai detentor de poder, que outorga leis, e que é, ao mesmo tempo, temido e amado como protetor. Em Winnicott, o pai faz parte do ambiente em que o bebê amadurece, um bebê que ainda depende, agora de maneira relativa, da sustentação da mãe para dar continuidade ao alcance do estatuto de um ser unitário. É justamente nesta tarefa de se tornar uno que o pai ajudará o bebê. Winnicott diz: “Pode-se ver que o pai pode ser o primeiro vislumbre que a criança tem da integração e da totalidade pessoal” (1989xa, p. 188). Acredito que, por nunca ter estado tão misturado ao bebê como a mãe esteve, por suas próprias características masculinas que o diferenciam daquilo que são os cuidados maternos, por ser sempre ele mesmo, o pai é aquele que fornece à criança a primeira configuração da pessoa total. Winnicott explica:

É fácil fazer a presunção de que, como a mãe começa como um objeto parcial ou uma conglomeração de objetos parciais, o pai vem a ser apreendido pelo ego da mesma maneira. Mas eu sugiro que, num caso favorável, o pai começa como

organização do ego e na conceptualização mental do bebê. (ibid., pp. 188-189)

Um outro ponto da mudança paradigmática introduzida pela psicanálise winnicottiana está em que, nesta teoria, a cultura não tem sua origem na relação com o pai. Na psicanálise tradicional ao contrário, a cultura, entendida como fruto do redirecionamento da libido para atividades espirituais mais elevadas, tem seu começo exatamente por causa das interdições paternas ao livre escoamento da libido. Freud reduz a cultura a uma questão de sublimação dos impulsos sexuais ou destrutivos, pensados sempre no quadro de um romance edípico, no qual o pai tem o papel central de interventor e representante da lei. Em seu texto de 1939, sobre Moisés e o

monoteísmo, ele faz uma relação entre os valores culturais e a figura paterna, e diz que “o que nos parece tão grandioso a respeito da ética, tão misterioso, tão auto-evidente, deve essas características à sua vinculação com a religião, à sua origem na vontade do pai” (Freud 1939a, p. 136). Mas, o próprio Freud, ao final de Totem e Tabu, se surpreende que a cultura e tantos outros aspectos da vida do homem estejam referidos apenas à questão da relação com o pai:

Gostaria de, ao final desta investigação, condensada ao extremo, enunciar este resultado: no Complexo de Édipo convergem os começos da religião, da moralidade, da sociedade e da arte, em perfeita concordância com o que constata a psicanálise, a saber, que o complexo forma o núcleo de todas as neuroses, tanto quanto elas se deixaram compreender, por nós, até aqui. Aos meus olhos, é uma grande surpresa que os problemas da vida da alma dos povos sejam susceptíveis de serem resolvidos, eles também, a partir de um único ponto concreto, como o da relação com o pai. (Freud 1912-13, p. 377)

Em Winnicott, as atividades culturais não estão ligadas e nem têm sua razão de ser em elementos repressivos da instintualidade. Para esse autor, a cultura está ligada: a) originalmente, à criatividade originária, de que todo ser humano é dotado, mas que requer favorecimento ambiental para desenvolver-se ao longo da vida e b) às conquistas do estágio da transicionalidade, que têm início num momento em que o bebê ainda habita no interior da relação dual com a mãe e quando o pai, ali, tem o papel de sustentar essa relação, isto é, de possibilitar a natural continuidade da relação mãe-bebê, e não de reprimi-la. As conquistas da transicionalidade se expandem na direção da

capacidade de brincar, e, mais tarde, da cultura, da religião, das artes etc. Em Winnicott, a cultura é, antes, fruto da confiança que o bebê experimentou durante todo o período inicial de sua vida, de onde o brincar pôde surgir e ter espaço, e de onde, também, a criança adquiriu a confiança de poder sempre criar, recriar e reinventar, de maneira pessoal, o mundo já existente. As atividades culturais, as produções artísticas, assim como o trabalho, são formas através das quais o indivíduo, ao longo da vida, criando construtivamente, repara a destrutividade que é inerente à natureza humana e que volta e meia retorna, nos momentos de excitação derivados do estar vivo e dos afetos que ocorrem em meio às relações interpessoais. A sublimação freudiana nada tem a ver com confiabilidade e criatividade, não diz respeito à experiência de poder habitar num espaço potencial, ou seja, na terceira área da experiência, como chama o autor, diferente da realidade psíquica interna e da realidade externa compartilhada (cf. 1971g, p. 148).

Para Winnicott, a entrada na cultura corresponde a um processo de expansão (e não de repressão) do indivíduo em direção à sua própria integração. O pai entra no processo de amadurecimento, primeiramente, como aquele que co-participa da sustentação desta expansão da criança para o mundo cultural, ainda que também caiba a ele dizer “não” e fazer proibições, mas não é este o principal motor e nem de onde parte o processo de aculturação. O amadurecimento saudável leva o bebê, inicialmente uno com o ambiente, para a integração num EU diferenciado do não-EU e, daí, para uma relação na qual haverá três pessoas (a trindade familiar) que, por sua vez, também se expandirá para o campo social mais e mais amplo.

O estado de unidade é a conquista básica para a saúde no desenvolvimento emocional de todo o ser humano. Com base neste estado, a personalidade unitária pode se permitir a identificação com unidades mais amplas – digamos, a família, o lar ou a casa. Agora, a personalidade unitária é a parte de um conceito de totalidade mais amplo [...] A base da tal divisibilidade é o self unitário, talvez transferido (por medo de ataque) para Deus. E aí retornamos ao monoteísmo e à aquisição de um significado para um, solitário, único; como é veloz a quebra de um em três, a trindade! Três, o número da família mais simples possível. (1984h, p. 47)

Uma vez que estas coisas tenham se estabelecido, como ocorre na normalidade, a criança se torna gradativamente capaz de se defrontar com o mundo e todas as suas complexidades, por ver aí, cada vez mais, o que já estava presente dentro de si própria. Em círculos cada vez mais abrangentes da vida social, a criança se identifica com a sociedade, porque a sociedade local é um exemplo de seu próprio mundo pessoal, bem como exemplo de fenômenos verdadeiramente externos. (1965r, p. 87)

Isto não ocorre como conseqüência da repressão dos instintos, o princípio do prazer sendo barrado pelo princípio da realidade, mas porque é justamente no encontro com os objetos da cultura que o ser humano poderá realizar a si-mesmo. Como disse Phillips, ao afirmar que Winnicott não pensa a cultura como Freud – ou seja, como sublimação ou compensação pelas frustrações impostas pela realidade –, mas como a única maneira do ser humano auto-realizar-se (1988, p. 171):

Na escrita de Winnicott, a cultura pode facilitar o crescimento, assim como o pode a mãe; para Freud, o homem é dividido e compelido, pelas contradições de seu desejo, na direção de um envolvimento frustrante com os outros. Em Winnicott, o homem só pode encontrar a si mesmo em sua relação com os outros, e na independência conseguida através do reconhecimento da dependência. (1988, p. 29)