• Nenhum resultado encontrado

3.4 O bem jurídico-penal

3.4.1 Aspectos gerais

O conceito de bem jurídico-penal é dos mais controvertidos na doutrina. Está em constante modificação e até os dias atuais não se pode afirmar que se trata de um conceito fechado e acabado.221

A história do bem jurídico está ligada ao desenvolvimento do conceito material de crime. Na época do Iluminismo, o crime era concebido como a lesão de um direito.222 Ainda

sob o influxo das ideias iluministas, Feurbach tratou de definir o conceito material de crime como violação a um direito subjetivo da pessoa ou do Estado.223

221 “A impressão que a história do bem jurídico deixa é a de um processo em espiral ao longo do qual se

sucederam fenómenos de revolução no sentido etimológico, (revolutio) de retorno ao que se julgava já irrepetivelmente abandonado. Não menos vincada é a impressão de extrema liquidez e mimetismo do conceito, capaz de assumir os conteúdos e desempenhar os papéis aparentemente mais inconciliáveis e antinómicos” (ANDRADE, A nova lei dos crimes contra..., in: Direito penal econômico e..., p. 391).

222 MONTE, Da proteção penal do..., p. 271. Assim também: FIGUEIREDO, Crimes ambientais à luz do..., p. 40. 223 PRADO, Bem jurídico-penal e..., p. 27. Conforme ainda Regis Prado, “A concepção material do delito como

lesão de um direito subjetivo decorre da teoria contratualista aplicada no âmbito penal. Esse posicionamento – resultado da ideologia liberal dominante – apresenta-se como um conteúdo sistemático funcional – conduta

Birnbaum224, no século XIX, preconizava o bem jurídico225 como bem material

tutelado pelo Estado, podendo referir-se ao indivíduo ou à coletividade226, o qual poderia ser

suscetível de lesão em sentido naturalístico.227 De acordo com Birnbaum, o delito é concebido

como lesão a um bem, e não a um direito.228 Para o autor alemão229,

[...] se o perigo é um estado no qual temos receio de perder algo ou de nos privar de um bem, então resulta extremamente inapropriado falar de uma lesão de direitos. Que perdamos algo ou se nos prive de uma coisa que é o objeto de nosso direito, que se nos subtraia ou coloque em risco um bem que nos compete juridicamente, isso, sem dúvida, não diminui ou suprime um nosso direito.

Binding ofereceu um conceito positivista de crime, o qual era considerado uma lesão a um direito subjetivo do Estado. No raciocínio dele havia uma congruência entre bem jurídico e norma, sendo esta a revelação daquele.230 Conforme ainda Binding, bem jurídico é

tudo aquilo que o legislador idealizou como condição para uma vida sã e digno de valor para a comunidade jurídica.231

Von Liszt realiza a migração da concepção de bem jurídico como direito subjetivo para a de “interesse protegido juridicamente”, alçando-o ao posto central da estrutura do delito.232 Para Liszt, a conduta socialmente danosa pertencia à vida e a sua configuração

préexistia ao direito.233 Essa perspectiva trazia ao Estado um limite a seu poder punitivo, o que

representou certo avanço em relação ao paradigma do crime como violação ao direito, incapaz na realização de tal tarefa.234

punível é aquela lesiva a um direito sobjetivo e liberal concreto-imanente – proteção também do direito individual na esfera objetiva da liberdade pessoal” (PRADO, Bem jurídico-penal e..., p. 28).

224 Ressalte-se que é controvertida a existência de influência das ideias iluministas no pensamento de Birbaum,

entendendo alguns, como Amelung, que houvera verdadeira ruptura (Veja-se: SILVEIRA, Direito penal supra- individual..., p. 41; FIGUEIREDO, Crimes ambientais à luz do..., p. 46.

225 Esclarece Renato de Mello Jorge Silveira que, em realidade, Birbaun não chegou a utilizar-se da expressão

bem jurídico, mas a partir das várias considerações que fez, é possível atribuir-lhe a paternidade dessa noção (SILVEIRA, Direito penal supra-individual..., p. 41).

226 BIRNBAUM, Sobre la necesidad de uma..., p. 58-9.

227 JESCHECK; WEIGEND, Tratado de derecho penal, p. 274. 228 BIRNBAUM, Sobre la necesidad de uma..., p. 57.

229 BIRNBAUM, Sobre la necesidad de uma..., p. 53-4. 230 SILVEIRA, Direito penal supra-individual..., p. 43.

231 JESCHECK; WEIGEND, Tratado de derecho penal, p. 274-5. 232 JESCHECK; WEIGEND, Tratado de derecho penal, p. 274-5. 233 DIAS, Questões fundamentais de..., p. 57.

Honig, adepto da filosofia neokantiana, ofereceu um conceito metodológico ou puramente hermenêutico de bem jurídico.235 Para o referido autor, o bem jurídico identificava-

se com o fim e com o sentido das normas de direito penal.236 Tal concepção de bem jurídico,

antes de contribuir para um conceito material de crime, acaba promovendo um esvaziamento do seu conteúdo e a sua transmutação num conceito formal237, o que se pode verificar através

da simplista ratio legis que essa noção enseja.

Noutra perspectiva, há determinada corrente doutrinária que realiza uma abordagem sociológica para conceituar o crime sem recorrer à noção de bem jurídico. Nesse sentido, tendo como marco teórico a teoria dos sistemas sociais (Parsons e Luhman), Amelung pretendeu resgatar a noção de danosidade social, dando-lhe novos contornos.238

Noutro quadrante, tem sido adotada a visão constitucionalmente orientada do bem jurídico239, bastante aceita atualmente pela doutrina. Por meio dela, pretende-se buscar base

material para o bem jurídico nos valores e princípios existentes na Constituição. A adoção dessa perspectiva tem por fim limitar o arbítrio legislativo na criação de tipos penais.240

É possível distinguir algumas vertentes dessa visão constitucional do bem jurídico. Numa primeira formulação, os bens jurídicos que interessam ao direito penal derivam da forma do Estado adotada na Carta Política, bem como de seus princípios.241 Nesse

sentido, é possível sustentar a ilegitimidade de incriminações que tolhem a liberdade

235 DIAS, Questões fundamentais de..., p. 64. Na Itália, Arturo Rocco era também representante da chamada

concepção metodológica do bem jurídico (RAMACCI, Corso di diritto penale, p. 28-9).

236 ROXIN, Derecho penal, p. 54-5.

237 DIAS, Questões fundamentais de..., p. 64.

238 Conforme Roxin, “Amelung pretende basar el concepto material de delito em uma teoría del daño social –

que debe evitarse mediante conminación penal -, para cuya precisión em su contenido recurre a la moderna teoría de los sistemas sociales (sobre todo Parsons). Ahora bien, esa atención a la funcionalidad para el sistema de una conducta conduce a que se proteja a la persona no por sí misma, sino sólo em interés de la sociedad, a la que por tanto también se podría sacrificar sólo com que el sistema permanezca inalterado” (ROXIN, Derecho penal, p. 68). Nessa concepção, “danoso para a sociedade é um fato disfuncional, um fenômeno social que impede ou pelo menos dificulta ao sistema social a superação dos problemas de sua própria existência [...] O crime é apenas um caso especial de fenômeno disfuncional e, por via de regra, o de maior grau de perigo. Ele é disfuncional na medida em que contraria uma norma institucionalizada que é necessária para resolver o problema da sobrevivência da sociedade [...] A função do direito penal é a de agir em sentido contrário como mecanismo de controlo social” (RUDOLPHI, Die verschiedenen aspekte..., in: Festschrift für..., p. 161 e ss., apud ANDRADE, A nova lei dos crimes contra..., in: Direito penal econômico e..., p. 395). Sem dúvida, a concepção expressada por Amelung prestigia a atividade legiferante ao fundamentar a disfuncionalidade do delito como infração à norma. Desse modo, tal orientação teórica mostra-se avessa ao controle político-criminal das incriminações, olvidando por completo o bem jurídico como referencial crítico do sistema penal. Há um retorno, por assim dizer, às idéias do positivista Binding, segundo as quais o objeto da tutela penal é tudo aquilo que, do ponto de vista do legislador, constitui-se condição para a vida em sociedade.

239 As mais expressivas formulações dessa vertente teórica são creditadas aos italianos Bricola e Enzo Musco.

Na alemanha, dentre os seus adeptos, citam-se Sax, Roxin, Rudolphi, Otto e Michael Marx.

240 SALES, Escritos de direito penal, p. 122-3.

individual de modo arbitrário, ou com finalidades puramente ideológicas ou visando a punir meras imoralidades.242

Identifica-se outra concepção da noção constitucionalmente orientada do bem jurídico, segundo a qual o legislador, ao formular a sua opção penal, deve-se ater aos valores expressamente acolhidos na Constituição.243 Numa versão menos rígida da orientação

constitucional dos bens jurídicos, permite-se fundamentar os tipos penais a partir da proteção de valores implicitamente acolhidos na Constituição.244

A orientação constitucional para a seleção dos bens jurídicos não é poupada de críticas. A abrangência com que permite a opção do legislador não viria para limitar o direito penal, senão para propiciar demasiado aumento no âmbito do punível245 por intermédio de

indicações crminalizadoras.246 Como adverte Figueiredo Dias, a utilização dos critérios de

seleção dos valores constitucionais (ainda que implícitos) contribui para o surgimento de uma função promocional do direito penal.247 Tal função surge em meio a um discurso tecnológico

desenvolvimentista, que tem ingressado no direito penal atual, a reclamar novos espaços de tutela em face de transformações socias verificadas principalmente na seara econômica.248

Parece inquestionável que o bem jurídico deve provir de valores dispostos na Constituição249, preexistindo, portanto, à atividade legiferante. A razão de sua preexistência à

lei incriminadora se dá para impossibilitar a livre criação de bens jurídicos por parte do legislador. Há de se convir, entretanto, que a escolha de valores constitucionais penais

242 ROXIN, Derecho penal, p. 56. Conforme o Mestre de Munique, são exemplos de incriminações com

finalidades puramente ideológicas aquelas que visassem eventualmente “manter a pureza do sangue alemão”. Seriam exemplos de incriminações de meras imoralidades aquelas que proibissem o relacionamento homossexual entre adultos.

243 SALES, Escritos de direito penal, p. 123.

244 Bens de implícita relevância constitucional são aqueles que possuem uma relevância indireta, sendo ligados

diretamente a bens de relevância explícita (RAMACCI, Corso di diritto penale, p. 31).

245 Nesse sentido: PELARIN, Bem jurídico-penal:..., p. 141.

246 Manifestam-se favoravelmente às indicações constitucionais criminalizadoras: PALAZZO, Valores

constitucionais e..., p 103 e ss; LUISI, Os princípios constitucionais..., p. 41-3.

247 DIAS, Questões fundamentais de..., p. 72. Essa função instrumental do direito penal é ressaltada por Palazzo

como pertinente à tutela de interesses supraindividuais e coletivos, e decorre das indicações de criminalização. Para Palazzo, tais indicações de criminalização “contribuem para oferecer a imagem de um Estado empenhado e ativo (inclusive penalmente) na persecução de maior número de metas popiciadoras de transformação social e da tutela de interesses de dimensões ultraindividual e coletivas, exaltando, continuadamente, o papel instrumental do direito penal com respeito à política criminal, ainda quando sob os auspícios – por assim dizer – da Constituição” (PALAZZO, Valores constitucionais e..., p. 102). Conforme crítica de Evandro Pelarin, a concepção que extrai da Constituição valores não individuais como prerrogativas do Estado Democrático aproxima-se das teorias sistêmicas, tamanha a sua preocupação com o social em detrimento do individual, o que rompe com o caráter liberal do direito penal iluminista (PELARIN, Bem jurídico-penal:..., p. 142).

248 PELARIN, Bem jurídico-penal:..., p. 142.

relevantes não pode deturpar a função protetiva e liberal do direito penal quanto à pessoa. Disso resulta que a tutela penal não deve olvidar o seu posto de ultima ratio.250